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Felipe Soares: um cara que se vira

Engajado, crítico e guiado pela arte, o ator Felipe Soares faz questão de não ficar na zona de conforto

Felipe Soares, no Dique do Tororó, em Salvador. Crédito: Raulino Júnior

Felipe Baptista Soares se distancia de tudo que é considerado estereótipo. Quem disse que mineiro é calado? O menino falastrão, nascido em Belo Horizonte há 26 anos, vive nadando contra a maré. Abandonou o emprego na capital de Minas, no qual ganhava muito bem, para viver de teatro em Salvador. Deixou para trás projetos, família e amigos. Devido a distância, o namoro de 11 meses chegou ao fim recentemente. “Está sendo muito difícil lidar com sonhos e sentimentos. Racional e emocional. É possível conciliar? Como? Se alguém souber a fórmula, me diga”, lamenta.  Ao falar da própria realidade, não se mostra arrependido, apesar de ter consciência de que as coisas não serão fáceis. “Eu ganhava bem em BH, tinha um carro, podia conquistar a minha casa, mas vim pra cá porque queria sair da minha zona de conforto. Eu larguei meu trabalho porque quero viver de teatro. Estou um pouco desesperado, porque tenho que arranjar um emprego e não sei como vou sobreviver. Minha família não tem condições de mandar dinheiro. Estou vivendo um momento crítico”, reconhece. Contudo, afirma que é capaz de superar os próprios limites em nome da arte. “Eu faço qualquer coisa para atingir o que quero, para me comunicar artisticamente da forma que acredito. Só não vou me vender. Certa vez, ouvi o Hermeto Pascoal falar algo interessante: ‘O meu negócio é ser feliz, não é fazer negócio’. Às vezes, as pessoas fazem muito negócio com a própria imagem e se queimam”.

Viver de teatro

Muito antes de querer viver de teatro, Felipe representou outros papéis na vida: fez propaganda eleitoral para político em BH, começou (e não concluiu) o curso de Tecnologia da Informação na UniBH,  trabalhou numa ONG (organização não-governamental), fez assessoria de comunicação digital para um deputado, foi técnico de informática no jornal Estado de Minas e funcionário de call center. Numa época, trabalhou 16h por dia. O motivo? Queria comprar um carro. O que ele não sabia é que esse mesmo carro mudaria os rumos de sua vida e o aproximaria da arte teatral. Quando conseguiu adquirir o veículo, perdeu um pouco o foco do que queria e só pensava em sair para, como afirma, “pegar a mulherada”. Porém, sofreu dois acidentes de carro, sendo que o último foi mais grave, porque quase ficou cego de um olho. Estava sem cinto de segurança e assume que era meio inconsequente. Depois do segundo acidente, teve um baque: pensou que os amigos estariam do seu lado, ficou de cama e os amigos não apareceram. O telefone não tocava e Felipe ficou depressivo. “Quando eu estava com dinheiro, com carro, bem, todo mundo estava ao meu redor; meu telefone não parava. Aí, quando eu sofri o acidente e estava precisando ainda mais daquelas pessoas, ninguém me procurava. Cadê as relações verdadeiras? Foi uma das piores épocas da minha vida”.

As relações verdadeiras estavam na arte. Convidado por um amigo para fazer uma viagem a Milho Verde, distrito do Serro, interior de Minas Gerais, Felipe viu a sua vida se transformar. “Era festival de inverno que a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fazia nessa cidade e iam várias atrações: teatro, circo, dança, performances, música, artistas plásticos, pintores e gente de vários lugares. Eu nunca tinha vivido esse universo da arte. Aí, me confrontei com isso e me apaixonei. Tanto pela a arte quanto pelas pessoas que faziam a arte. Pela veracidade que elas tinham, pelas relações verdadeiras. As pessoas não queriam saber se eu tinha carro ou não tinha, tampouco do meu passado. Não queriam saber o que eu tinha de concreto, mas sim como eu era, meus valores. Eu percebi isso e conheci pessoas incríveis. A partir daí, a arte me transformou. Quando voltei para BH, fui logo fazer teatro. Comecei a estudar e, desde então, não parei”.

Adepto da bicicleta, Felipe criou o projeto “CiclOlhar: olhar de biker para o mundo”. Crédito: Raulino Júnior 

Chão de Pequenos

Em 2009, Felipe começava a sua caminhada em busca de aprimoramento artístico. Além de participar de todas as oficinas (de corpo, de dança, de teatro de rua, de palhaço e de teatro do oprimido) de que tinha conhecimento, passou por alguns espaços de formação em BH, teve experiência com o renomado Grupo Galpão (estudou no Galpão Cine Horto), fundou uma companhia de improvisação chamada ImproColetivo, foi para a Argentina e estudou improvisação e máscara neutral em Buenos Aires, até chegar aonde queria: no concorrido curso de teatro do Centro de Formação Artística (Cefar), no Palácio das Artes, da Fundação Clóvis Salgado, do Governo de Minas. “Foi uma grande realização na minha vida”, orgulha-se. Mas, inquieto do jeito que é, não se contentava apenas em assistir às aulas, queria colocar em prática os conhecimentos adquiridos. “Não adianta ficar na escola e só produzir depois. É possível produzir durante os estudos”, pontua. Foi assim que se juntou a Ramon Brant, seu colega de turma no Cefar, e transformou a vontade em algo real. “Ramon é um grande parceiro e amigo. A gente tem uma ligação bem forte e nos identificamos de cara. Aí, eu propus: ‘Vamos montar um espetáculo? Mas vamos começar com uma cena curta. O que a gente quer falar? Eu sou negro, você é branco; vamos fazer dois irmãos? Mas um é adotado e gente não sabe quem é’”. Ramon topou o desafio e eles começaram a pesquisar sobre o tema. “Pesquisamos durante três meses e reunimos um material muito rico, que mudou toda a nossa cabeça em relação à adoção; um assunto delicadíssimo, que é pouco abordado”. Dessa imersão, nasceu Chão de Pequenos. A cena foi selecionada num projeto do próprio Cefar e apresentada em mostras e festivais de teatro, sempre com boa receptividade do público. Inclusive, ganhou prêmios em festivais de São Paulo (atuação coletiva e pesquisa e composição de dramaturgia) e do Rio de Janeiro (melhor texto). “A gente quase não fala. O nosso corpo fala muito mais”. Os prêmios não envaideceram nem envaidecem Felipe. “Eu não gosto de prêmios. É tanto que eu e Ramon não colocamos nas mídias. Não divulgamos isso. Está no nosso currículo porque enriquece. Quando você premia, você mais separa, divide o bom do ruim, do que agrega. O que é bom e o que é ruim?”, indaga. Mas não nega ter gostado do reconhecimento: “Serviu para constatar que estava no caminho certo, que o trabalho tinha valor”.

Teatro político

“Eu sempre pensei o teatro como política”, Felipe Soares. Crédito: Raulino Júnior

Para Felipe, Chão de Pequenos foi o espetáculo mais marcante de sua carreira. “A cena me fazia chorar demais. É um espetáculo muito autoral. Eu não estava entrando num projeto do outro, era um projeto pessoal. Eu consegui associar a minha arte àquilo que eu quero dizer. A gente conseguiu alcançar o nosso intuito. As pessoas assistiam à peça e saíam chorando, emocionadas. A gente conseguia inquietá-las. Fala-se muito mais de adoção de cachorros do que de adoção de pessoas”, critica. Na sequência, confidencia que, em alguns festivais, antes de apresentar a cena, ele e Ramon fingiam ser meninos de rua, com balas para vender e tudo. O objetivo da performance era o de testar a reação dos futuros espectadores. “Poucas pessoas compravam as balas. Elas não sabiam que nós éramos os atores. Quando viam a gente em cena, o espanto era evidente”. Essa atitude, que pode passar despercebida como uma simples brincadeira é, para o ator, um ato político. E ele é categórico: “Eu sempre pensei o teatro como política. O teatro tem um poder muito forte. Me tocou dessa maneira e de onde eu vim influencia totalmente o que eu quero dizer com o teatro também”.

E ele vem de uma família de classe média baixa, moradora de Venda Nova, bairro Serra Verde, zona periférica de BH. É filho do serralheiro e técnico em segurança eletrônica, José Soares; e da massagista, cuidadora de idosos e vendedora de lingerie, Jane Victor. Tem um irmão por parte de pai e mãe e outros tantos só por parte de pai. A família o apoia nessa busca pela arte. “Se eles não apoiassem, daria no mesmo. Eu não deixaria me influenciar porque eu sei o que eu quero. A minha vontade é muito maior”, explica. Admira o trabalho e a postura artística de Wagner Moura e cita também Lázaro RamosHermeto Pascoal e o saudoso Chico Science como suas referências. Além deles, destaca Ana Cristina Colla, do LUME Teatro; Bruno Godinho, da Yepocá Ciade Teatro; e o carioca Eduardo Marinho, autor do blogue Observar e Absorver.

Na dramaturgia, é fã do alemão Berthold Brecht e dos brasileiros Augusto BoalZé Celso Martinez Correa Nelson RodriguesGianfrancesco Guarnieri, que nasceu na Itália e veio para o Brasil com dois anos de idade, também é um dos ídolos de Felipe. Porém, elege Um inimigo do povo, do norueguês Henrik Ibsen, como seu texto de teatro preferido. Gosta de ler muita coisa ao mesmo tempo e está focando suas leituras em obras que tratam do universo teatral e de empreendedorismo cultural. Recentemente, viu o espetáculo Namíbia, Não!, do ator e dramaturgo baiano Aldri Anunciação, e adquiriu o livro. “Aldri já é uma referência para mim. Um artista com um pensamento além”. Está lendo ainda Da minha janela vejo… relato de uma trajetória pessoal de pesquisa no LUME, de Ana Cristina Colla; Aarte de ator: da técnica à representação, de Luís Otávio Burnier, fundador do LUME; e A guerra não declarada na visão de um favelado, de Eduardo Taddeo.

Quando o assunto é música, afirma ter aprendido a escutar de tudo. Gosta de pagode, samba, funk, música clássica, hardcorepunk rock, mas se identifica mesmo com rap. “Posso passar por todos os estilos, mas o estilo que eu mais me identifico é rap. No Brasil, Facção Central é uma referência para mim. Tenho escutado muitos raps de outros países. Por exemplo, o Calle 13, de Porto Rico. É um grupo sensacional”. Admira também Wilson Simonal e gosta da interpretação e das letras de Chico Buarque. “Mais politizadas que elas, não existem”. Da música baiana, reverencia Gilberto Gil e Caetano Veloso. Por este, tem admiração pela voz, pelas letras, pela poesia e pela pessoa; por aquele, que considera um mestre, tem admiração pela energia. Pitty Daniela Mercury também fazem parte de sua predileção musical. “A Pitty tem músicas politizadas e a Daniela consegue ser comercial e, ao mesmo tempo, cultural. Ela junta tudo num balaio”. Não gosta de axé music, considera engraçado, mas acha a letra de Lepo Lepo, da banda Psirico, genial. “Vai na contramão do Camaro Amarelo. Mostra que a mulher está com o cara porque realmente gosta. Desbanca todos esses sertanejos chatos”.

Salvador e Bando de Teatro Olodum

Felipe veio para Salvador a fim de ter experiências teatrais e para participar da audição que selecionaria atores para uma oficina de performance negra, promovida pelo Bando de Teatro Olodum. Durante três dias, o artista participou de atividades intensas, que envolviam teatro, dança e música. No final, conseguiu ser selecionado e, desde então, está vivendo a cidade. “Estou vivendo a rua dessa cidade. Se eu fosse ficar só na parte nobre, como os turistas comumente ficam, não estaria vivendo a cidade. Você só vê os pontos turísticos, o que o governo maquiou. Eu quero estar na periferia, em todos os lugares”. E não deixa de elogiar a capital baiana: “As pessoas daqui me encantam. É o que tem me deixado feliz. A cidade é bonita, não tem como ficar de mau humor. Você olha a paisagem da cidade e já se abre, se entrega”. Contudo, o mineiro reconhece alguns problemas com os quais os salvadorenses convivem há algum tempo, como a sujeira e a deficiência no transporte público. “Tem poucas lixeiras e as pessoas têm a cultura de jogar lixo no chão. A cidade acaba fedendo. E a questão do transporte público, que é um problema nacional, é mais agravante aqui”, analisa. Toda a vivência e visões sobre a cidade são compartilhadas no blogue Aprender, experimentar e compartilhar, que criou no intuito de dividir as experiências de teatro.

Para ele, o contato com o trabalho do Bando está sendo uma experiência sensacional. “Como reafirmação do negro, como disciplina, como levar o teatro como trabalho, como responsabilidade. É uma formação artística completa: você atua, dança, toca, canta e é um ser político. É uma verdadeira faculdade”.

Legado

“Quero levar cumplicidade e amor para as pessoas”, Felipe Soares.  Crédito: Raulino Júnior

Aonde Felipe Soares quer chegar? “É difícil pensar num fim, né? Penso em construir algumas coisas. Quero que minha arte chegue às pessoas. Hoje, eu penso em falar de uma inquietação minha, que é o teatro negro na arte. Até por isso que eu estou estudando no Bando, porque a minha relação com a questão racial é muito forte. Eu sofri preconceito desde a minha primeira escola. Penso em fazer teatro de rua, trabalhar com a linguagem mais popular. Quero ser um artista múltiplo, a ponto de viajar o mundo inteiro com a minha arte”. O ator, que já participou de vários espetáculos teatrais, curtas, comerciais e de uma série, tem o sonho de gravar um longa-metragem e quer deixar para o mundo o legado de uma pessoa humana e generosa. “Às vezes, as pessoas falam que eu sou doido, mas eu não sou. As pessoas é que estão na zona de conforto e têm medo de sair dela. Eu busco sair dela todos os dias. A vida é muito mais. Não é esse sistema do jeito que é, em que se vive só pra ganhar dinheiro. Eu quero levar cumplicidade e amor para as pessoas”. E reforça o seu pensamento citando um trecho da música Ainda há tempo, de Criolo: “As pessoas não são más, mano. Elas só estão perdidas. Ainda há tempo”.

Uma frase que ele não gosta…

Uma frase que eu não gosto é quando falam: “Eu luto pelas minorias. Somos negros, somos minorias. Somos mulheres negras, somos minorias. Somos gays, somos minorias”. Você não é minoria! Você é uma grande parcela da sociedade. Fazem a gente pensar que somos minorias. É diferente.

  • O que dizem sobre ele…

Yuri Castilho

Crédito: Raphaela Simões

“Felipe sempre teve uma energia muito contagiante. Nota-se, claramente, o fascínio que ele causa às pessoas ao seu redor, espectadores ou não. Acho que é o sorriso, com uma pureza sem igual! Ao longo dos mais de 15 anos de amizade, o vi perseguir sonhos e alcançá-los, mesmo os mais difíceis. Tem uma incrível capacidade de aceitar o outro e também de ver a vida sempre em cores.”

 Ana Torga

Crédito: Gigi Favacho

“A representação artística do ator Felipe Soares tem sua marca pessoal, a qual se manifesta por meio de sua singular criatividade, do seu natural improviso e de sua versatilidade interpretativa. Sua vivência na arte popular deu asas para alcançar voos no teatro de improviso e possibilitou sua total imersão na arte dramática. A Estrela Negra, de nome Felipe, ganhará os céus dos palcos e das telas desse planeta Terra”.

Série Perfis do Desde| Ficha Técnica:

Convidado: Felipe Soares

Data da entrevista: 1º/4/2014

Local: Dique do Tororó (Salvador-Bahia)

Idealização/produção/texto: Raulino Júnior

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