"Adolescendo Solar", Cultura, Jornalismo Cultural, Notícia, Reportagem Especial

MerrECA: cadê as políticas culturais voltadas para adolescentes?

Em Salvador, faltam ações culturais pensadas para os adolescentes e profissionais do setor reconhecem a lacuna

Por Raulino Júnior ||Reportagem Especial|| 

No seu Capítulo IV, ao tratar do direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) traz o seguinte: “Art. 59. Os municípios, com apoio dos estados e da União, estimularão e facilitarão a destinação de recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância e a juventude”. Um pouquinho antes, no artigo 4º, há uma alínea que diz que crianças e adolescentes devem ter “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas”. Isso, em Salvador, e também considerando o estado da Bahia, não passa de uma falácia. Desde o fim de fevereiro, o Desde apura essa questão para esta reportagem e o resultado de todas as pesquisas feitas é de que há uma lacuna nas ações voltadas para esse público. A ausência de políticas públicas de cultura para adolescentes é evidente e reconhecida por pessoas do setor, como Fernando Guerreiro, atual presidente da Fundação Gregório de Mattos (FGM), “órgão vinculado à Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (SECULT), que tem como finalidade formular e executar a política cultural do Município de Salvador”, como consta no site. Questionado sobre esse problema, Guerreiro não titubeou: “Recentemente, George [Vladimir], que é hoje é o meu gerente de produção cultural, teve um encontro com Marcone Araponga, que é um grande produtor dessa área infantojuvenil, provocou justamente essa questão e George chegou para mim, semana passada [a entrevista foi feita em 27 de março, durante evento comemorativo pelo aniversário de Salvador, na sede da Associação dos Procuradores do Município do Salvador] com essa demanda: ‘Guerreiro, a gente precisa trabalhar pra esse segmento’. Então, a gente já está estudando como é que a gente vai entrar, dentro dos editais, com especificidade para esse segmento”. O gestor tocou num ponto crucial dentro do debate, que é a formação de público para espetáculos de cultura: “Porque tem um negócio interessante: se a criança não vai ao teatro e o adolescente não vai ao teatro, o adulto não vai. Se ele não está acostumado a ir ao museu, ele não vai quando ficar adulto. Se ele não está acostumado a ir ao cinema, ele

Fernando Guerreiro: “O adolescente fica num limbo quando se trata de política cultural”. Imagem: Arquivo do Desde/Janeiro de 2017

não vai. Então, a coisa tem que começar desde pequeno. Hoje, você já tem teatro para bebê […] e a grande lacuna você sabe onde é? Adolescente. Você tem teatro infantil, mas o segmento adolescente fica num limbo aí. Então você vai, leva o seu filho, quando ele chega aos dez, doze anos ‘Eu não quero ver peça infantil! Coisa ridícula!’, e muitas vezes não quer ir para o adulto. Então, você tem uma lacuna que a gente vai ter que se debruçar. A gente teve um projeto em Salvador brilhante, chamado Cuida Bem de Mim, que foi um projeto criado pelo Liceu de Artes e Ofícios, que circulou durante muito tempo. Wagner Moura passou por lá, Lázaro Ramos passou por lá, que é um projeto, justamente, voltado para esse público, em cima de preservação das escolas. No final do depoimento, o presidente da FGM reforçou a ausência e falou sobre a importância de convocar artistas adolescentes para construírem ações voltadas para eles, uma vez que vão traduzir o que gostam e o que querem ver sendo implementado. “Então, é um segmento que eu acho que a gente precisa ter uma atenção especial. O infantil, mas, principalmente, o adolescente, porque hoje ele está com o celular colado no rosto o dia inteiro. […] Então, é um trabalho que a gente tem que fazer muito passo a passo, para trazer esse público para o teatro. E aí eu venho com o diretor também ligado no público. Ele tem que ser ágil, tem que tocar em temas que interessem, tem que ter a tecnologia no meio, dialogar com eles. Tem que trazer, inclusive, atores adolescentes para construírem isso junto, porque eles vão dizer o que é que eles querem ver. Eles vão colocar ali o que é que vai ser interessante”.

George Vladimir: diálogo aberto com os fazedores de arte para os adolescentes. Imagem: reprodução das redes sociais

O Desde aproveitou o ensejo e conversou também com George Vladimir,  gerente de promoção cultural da FGM, para saber quais, de fato, são as ações que estão sendo pensadas dentro do órgão para o fomento cultural do público em debate e ele citou três ações que estão prestes a ser colocadas em prática. “A gente, por enquanto, ainda está pensando nisso, vendo quais as vertentes de política cultural a gente pode fazer para esse segmento, mas uma coisa a gente já está decidido: a gente vai destinar uma parcela dos contemplados dos nossos editais, exclusivamente, para projetos voltados para infâncias e juventudes. A outra política que a gente tem pensado, é trazer para próximo esse público consumidor para um diálogo. Então, vamos nos reunir com fazedores de arte adolescentes para pensar junto com eles políticas públicas para esse segmento. A outra coisa é garantir, dentro das nossas pautas do programa Boca de Brasa, sempre um percentual fixo destinado para a produção de arte desse segmento. Então, acho que a primeira coisa é a gente garantir a presença desse segmento dentro das políticas que a gente já desenvolve, com uma parcela realmente de foco. E, juntamente com esse público consumidor, com os fazedores de arte voltada para esse público, é chegar no entendimento do que mais a gente pode fazer”.

O blog entrou em contato com a assessoria do atual secretário de Cultura e Turismo de Salvador, Pedro Tourinho, a fim de saber qual é a posição da pasta sobre o assunto, mas até o fechamento desta matéria não obtivemos resposta. Enviamos três e-mails, nas seguintes datas: 27 de março, 5  e 17 de abril. Nas mensagens, a secretária do gestor pedia para a gente aguardar o retorno, que ainda não chegou. Assim que acontecer, vamos atualizar a reportagem.

O que é política pública

Em linhas gerais, políticas públicas são decisões governamentais (de todas as esferas: municipal, estadual e federal) que têm como objetivo assegurar os direitos dos cidadãos. Tanto para a sociedade como um todo quanto para um determinado segmento, como está sendo discutido aqui. Como já foi colocado no texto, a política pública de cultura é assegurada no ECA, só para citar uma legislação. O infográfico abaixo, copiado do site da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), é bem didático ao explicar todo o processo para que uma política pública seja implementada:

Políticas Públicas - Sobre

Em 2021, o Tribunal de Contas da União (TCU), que é, reprodução do site, “responsável pela fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos órgãos e entidades públicas do país quanto à legalidade, legitimidade e economicidade”, publicou uma cartilha para que a sociedade civil entendesse o que é política pública. Intitulada Política Pública em Dez Passos, a publicação conceitua: “Políticas públicas podem ser definidas como o conjunto de diretrizes e intervenções emanadas do estado, feitas por pessoas físicas e jurídicas, públicas e/ou privadas, com o objetivo de tratar problemas públicos e que requerem, utilizam ou afetam recursos públicos”.

Adolescentes com a palavra

Carla Silva: “Eu acabo indo para os mesmos lugares”. Imagem: reprodução das redes sociais

O Desde, obviamente, foi ouvir os maiores interessados na pauta: os próprios adolescentes. Conversamos com duas meninas, ambas de 17 anos, para saber quais são os anseios delas sobre as ações culturais. As opiniões de cada uma foram bem diferentes. Carla Silva, que é modelo, atriz, poetisa e cantora, acha que Salvador não tem boas opções de atividades culturais para adolescentes. “Salvador é uma cidade conhecida pelos seus talentos, onde você for irá encontrar pessoas movidas pela arte, porém, dificilmente você encontrará locais onde oportunizem crianças e adolescentes a terem uma formação artística. Quando achamos, são projetos sem nenhum apoio governamental. Projetos criados por pessoas que não tiveram oportunidade e resolveram mudar essa rota de falta de acessibilidade”. De acordo com a artista, ela acaba indo sempre aos mesmos lugares, quando quer se divertir. “Mesmo que Salvador seja uma cidade turística, uma cidade que recebe muita gente, para quem mora aqui, acredito que falta investimento cultural. Eu, como adolescente, acabo indo para os mesmo lugares, como o cinema, por exemplo”. Para ela, a cidade deveria valorizar mais os artistas e potencializar projetos de formação artística. “Uma cidade tão bonita e tão potente deveria valorizar a gama de artista que tem; patrocinando peças de teatro (em horários acessíveis também, porque quando surgem são no turno da noite e a cidade infelizmente é muito perigosa), potencializando projetos que formam artistas, criando projetos para incentivar jovens a se descobrir no mundo da arte. A gente cansa de ouvir artistas dizendo que se descobriram na arte por meio de concurso de canto, por exemplo, e acho que seria um investimento bom pra cidade, atrairia essa curiosidade até de quem ainda não está imerso nesse meio, de quem não se reconhece como artista”.

Stephanie Braga: “Gostaria que tivesse mais shows para a nossa faixa etária”. Imagem: reprodução das redes sociais

Stephanie Braga acha que a capital da Bahia tem boas opções de atividades culturais para os adolescentes. “Eu adoro visitar lugares assim aqui em Salvador, mas muitos não possuem tanta visibilidade e acabam ficando meio descuidados ou repetitivos”. Quando sai com os amigos, ela costuma ir ao shopping, para ver algum filme, aos parques ou vai para a Barra só para andar mesmo. Ela queria que a cidade tivesse mais shows voltados para os adolescentes, com preço modesto. “Gostaria que tivesse mais shows para nossa faixa etária, mais atrações em teatros ou em rua mesmo. E também com um preço mais acessível, porque muitas vezes deixamos de ir por serem bem caros”, reclama.

O que o estado (não) tem feito

No estado, a situação não difere muito do município. A Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) foi categórica ao responder o e-mail enviado pelo Desde: “Informamos que está [sic] Fundação não tem nenhum projeto especifico [sic] para o público adolescente, porém temos projetos direcionado para o público infantil que se chama Dança para Infância que terá sua terceira edição em 2023”. A mensagem foi enviada por Aline Lepingard, assessora da diretoria das artes da FUNCEB. Entramos em contato também com a Fundação Pedro Calmon (FPC). Solicitamos, no dia 22 de fevereiro, uma entrevista com o atual diretor geral, Vladimir Pinheiro, não obtendo êxito. Entre as muitas mensagens trocadas, Weslana Azevedo, secretária da Diretoria Geral da FPC, disse, no dia 15 de março, que “ainda não conseguimos ajustar uma possível data”. Ligamos para a fundação no dia 20 de março informando que, na impossibilidade do encontro presencial, mandaríamos as perguntas para Pinheiro responder. Assim foi feito. No dia 27 de março, recebemos um e-mail de Weslana em que ela dizia que as perguntas encaminhadas para o diretor foram respondidas por Tamires Neves Conceição, diretora do sistema estadual de bibliotecas públicas da Bahia. Decidimos reproduzir aqui a íntegra das respostas, para que os leitores tirem as próprias conclusões:

  1. Quais os projetos culturais da FPC pensados para o público adolescente?

A Fundação Pedro Calmon por meio da Diretoria de Bibliotecas Públicas do Estado da Bahia (DIBIP), desenvolve Projetos Culturais, voltados a todos os perfis de públicos. Estes estão categorizados em: projetos temáticos mensais e subprojetos que ocorrem durante todo o ano. 

Tanto nos projetos temáticos, como também nos específicos, existem ações que tem por objetivo atingir o público-alvo que são adolescentes, tais como: Gravidez na Adolescência; Oficinas de Grafite; bate papo com temáticas diversas desde a questão da Mulher na [sic] Adolescente ao Mercado de Trabalho; Oficinas Literárias voltadas ao desenvolvimento de escrita criativa;  Apresentação teatral; Mediação de leitura, entre outros.

Além dos citados, tem também: Aulões nas Bibliotecas (voltados principalmente para o ENEM) e o Projeto Companhia de Teatro da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato que atende ao público de 8 a 17 anos.

  1. Esses projetos acontecem quando? São calendarizados?

Todas as ações culturais são executadas, seguindo como base um Calendário Cultural que é construído anualmente, em conjunto, pelas unidades de bibliotecas. Neste calendário é considerado temáticas guarda-chuva que norteiam grande parte das ações de determinado mês, além de listar datas comemorativas e/ou de conscientização, aniversário de grandes personalidades do mundo da cultura e marcos históricos. Ex: uma palestra no mês de Março pode trazer em seu tema algo relacionado ao Dia das Mulheres, que é comemorado neste mês, bem como em Novembro pode ser realizado um evento que faça referência ao Dia da Consciência Negra. 

Nesse sentido, existem ações que são semanais, outras mensais, ou mesmo anuais, a depender da data, projeto ou subprojeto, o qual está relacionado, como é possível ver abaixo: 

Assim sendo elencamos os Projetos desenvolvidos pela Diretoria de Bibliotecas (DIBIP)

      Projetos Guarda-Chuva

  • Verão Nas Bibliotecas ( janeiro e fevereiro)
  • Março Mulher ( março)
  • Abril do Livro Infantil ( abril)
  • Maio da liberdade ( maio)
  • Festas Juninas ( Junho) 
  • Comemorações ao Dois de Julho ( julho)
  • Cultura Popular (agosto)
  • Leitura para Todos ( setembro)
  • Mês da Criança ( outubro)
  • Novembro Negro ( novembro)
  • Natal Solidário ( dezembro)
Outro Projetos que compõem as DIBIP que acontecem durante todo o ano, independente do mês.
  • Saúde nas Bibliotecas 
  • Aulões nas Bibliotecas
  • Companhia de Teatro da BIML
  • Projeto Encontro com o Escritor
  • Terça do Empoderamento
  1. Há algum documento institucional que embase tais projetos? Ele está disponível? Onde?

Os Projeto são acompanhados internamente pelo Sistema Eletrônico de Informações (SEI) e publicizados por meio do site oficial da FPC: http://www.fpc.ba.gov.br/ o qual contém a programação cultural das bibliotecas públicas estaduais (https://sway.office.com/sEBW4XjnOB3Ga7R4?ref=Link) (https://sway.office.com/BC1KnEPiHEbW2Rbk?ref=Link). 

  1. Em 2023, quais projetos serão, de fato, implementados para esse público? E quando vão acontecer?

Como dito anteriormente, ações culturais tais como palestras, cursos, oficinas entre outros, ocorrem periodicamente nas Bibliotecas Públicas que integram o SEBP. Quanto a especificamente aos Aulões nas Bibliotecas (voltados principalmente para o ENEM)  (abri [sic] a dezembro) e Projeto Companhia de Teatro da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato que atende ao público de 8 a 17 anos. abril a dezembro.

A gerência do Sistema Estadual de Bibliotecas está à disposição nos seguintes contatos: 71 3277-3253/ gesb.programacao@fpc.ba.gov.br/ gesb.fpc@fpc.ba.gov.br

De fato, o público adolescente merece mais atenção dos órgãos de fomento à cultura. Caso contrário, a formação de plateia para os espetáculos ficará comprometida e, quando todo mundo se der conta, será tarde demais para resolver o problema. É preciso cumprir o que está preconizado no ECA. Muitos profissionais do setor, ouvidos para esta reportagem, reconheceram que a lacuna existe. Quais serão as ações planejadas para mudar essa realidade?

Padrão
"Adolescendo Solar", Audiovisual, Cultura, Entrevista, Fotografia, Jornalismo Cultural, Produção Cultural, Sem Edição

Sem Edição| Lalo Batera, Música, Cheiro de Amor e Etarismo

Lalo Batera. Foto: Raulino Júnior

A 9ª temporada do Sem Edição, conteúdo audiovisual do Desde, está no ar e o convidado que marca a estreia é Mário Augusto Cardoso de Almeida, o Lalo Batera. O baterista, oriundo do bairro de Periperi, em Salvador, começou a carreira cantando músicas de Fagner no bar do pai. Em seguida, fundou uma banda de heavy metal com os irmãos, a Sinal Vermelho, e a partir daí foi construindo a sua carreira como músico. Durante quinze anos, foi baterista da banda Cheiro de Amor, quando o grupo esteve no auge do sucesso, na época das vocalistas Márcia Freire e Carla Visi. Obviamente, Lalo falou sobre a passagem pelo Cheiro e por que saiu de lá. Nesse trecho da entrevista, o etarismo, preconceito contra pessoas mais velhas, entrou em pauta. O artista contou como foi a experiência de tocar com a dupla sertaneja Marlon e Maicon e como é estar na banda de Luiz Caldas, expoente da música brasileira e precursor da Axé Music. No final, explicou o conceito do projeto Lalo Toca os Mestres, que vai divulgar em breve. Não deixe de ver!

Agradecimentos mais que especiais a Lalo Batera! Obrigado pela confiança e disponibilidade, Lalo! Você é maravilhoso! Mais sucesso! Estendo os agradecimentos a Guilherme Cunha, amigo em comum que viabilizou o encontro. Obrigado, Gui!

Padrão