#Esquenta10AnosDoDesde, #NoveAnosDoDesde, Cultura, Desde 1950: 70 anos da TV no Brasil, DESDEnhas, Jornalismo Cultural

Ruth de Souza: uma estrela (também) da TV!

 Atriz brilhou no teatro, no cinema e deixou a sua marca na televisão brasileira

Ruth de Souza: talento e perseverança. Imagem: reprodução do site da Imprensa Oficial

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

É impossível comemorar os 70 anos da televisão brasileira sem citar pessoas que dedicaram toda a vida para essa fantasia acontecer. Nesse sentido, o nosso destaque vai para a atriz Ruth de Souza (1921-2019). Em 2007, foi publicada a biografia Ruth de Souza: estrela negra, de autoria de Maria Angela de Jesus. A obra integra a famosa e bem-sucedida Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que tem como objetivo “preservar a memória da cultura nacional e democratizar o acesso ao conhecimento”.
O livro parte de um depoimento de Ruth a Maria Angela e isso torna a narrativa bem intimista, como se o leitor estivesse na sala da homenageada, ouvindo aquela conversa interessante. Ao tomar parte do bate-papo, ele fica sabendo que a artista carioca não gostava de revelar a idade, de palavrões, nem de falar de sua vida íntima. Embora, se sentindo à vontade diante da autora, soltava uma coisa aqui outra ali. Como, por exemplo, o relacionamento que teve com Abdias do Nascimento, considerado um dos mais marcantes da sua vida. A propósito, com Abdias, fundou, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), importante referência nas artes cênicas do Brasil. No TEN, fez grandes papéis e foi, de acordo com o que é documentado na biografia, a primeira Desdêmona negra do Brasil. Tal personagem integra a peça Otelo, do inglês William Shakespeare. Ao longo da carreira no teatro, atuou em Vestido de Noiva (Nelson Rodrigues) e Quarto de Despejo (adaptação de Edy Lima com base no livro de Carolina Maria de Jesus). Em 1983, Ruth voltou a representar Carolina num episódio de Caso Verdade, programa exibido pela Rede Globo. “Foi um dos melhores trabalhos que fiz na televisão. Era um ótimo papel, interpretando uma pessoa viva, e com uma produção extremamente caprichada da Rede Globo”, p. 62.

Ruth de Souza e Abdias do Nascimento em Otelo, de Shakespeare. Imagem: reprodução do livro

Nascida no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, Ruth viveu um tempo em Minas Gerais e voltou para o Rio quando tinha nove anos, onde fixou residência em Copacabana. Filha de Alaíde Pinto de Souza e de Sebastião Joaquim Souza, a atriz sempre foi apaixonada por cinema. Apesar de o livro trazer a informação de que Ruth evitava fazer discursos sobre preconceito racial, a atriz tinha consciência da violência racista que estava presente nos estúdios e nos palcos pelos quais passou: “O fato é que realmente não existia espaço para o ator negro. Era uma realidade da época. Hollywood também massacrava seus atores negros. Isso é uma verdade”, afirma na página 29.
O sonho de trabalhar com cinema se concretizou na vida adulta e Ruth passou pela Atlântida e pela Vera Cruz, companhias cinematográficas que revolucionaram a sétima arte brasileira. Nelas, entre outros, fez os filmes Terra Violenta (Atlântida, 1948) e Sinhá Moça (Vera Cruz, 1953), que rendeu a sua indicação para o Prêmio Saci, do qual foi vencedora.

Ruth de Souza: linda pela própria natureza. Imagem: reprodução do livro

A biografia mostra a parceria de Ruth com alguns notáveis colegas de trabalho, como Grande OteloOscarito e Mazzaropi. Faz críticas duras em relação a esse último: “[…] Mazzaropi era uma pessoa muito difícil e era muito pão-duro. Era até um pouco racista. Ele não me dava muita atenção. Não era meu amigo. Nunca foi! Ele não era nem um pouco generoso”, p. 83. Durante um ano, estudou teatro nos Estados Unidos. Para ela, “o teatro é a base da arte de representar”, p. 74. Ainda na mesma página, complementa: “Acho que todo ator tem de fazer teatro para depois partir para o cinema ou televisão. Só assim o artista vai realmente entender o que está fazendo, o que é ser ator”.
Brilho na TV
Na televisão, Ruth fez novelas, especiais e participou de programas de humor, como Os Trapalhões. Passou pela ExcelsiorTupiRecordTV e Rede Globo. A primeira novela que fez foi A Deusa Vencida (Excelsior, 1965) e considerava o trabalho em A Cabana do Pai Tomás (Globo, 1969) com um dos mais importantes da sua carreira na TV: “Se fizer um balanço da minha carreira na televisão, o trabalho em A Cabana do Pai Tomás foi um dos mais importantes. Foi a única novela que estrelei mesmo, fazendo o papel principal da trama: a mulher do protagonista, Sérgio Cardoso”, p. 96. Na trama, Ruth fazia Cloé,  principal papel feminino da novela.

Ruth como Cloé em A Cabana do Pai Tomás (1969). Imagem: reprodução do livro

No livro, ela cita outros trabalhos marcantes que fez na caixinha setentona: Duas Vidas (1977), Sétimo Sentido (1982) e O Grito (1975), todos da Rede Globo; mas também critica outros, como Sinal de Alerta (Globo, 1978) e O Rebu (Globo, 1974). Sobre Sinal de Alerta, esbraveja “Que novela horrorosa! Era sobre poluição, com direção de Walter Avancini. Um papel chato, que não me traz grandes lembranças”, p.  101. Sobre O Rebu, é categórica: “Era um papel que não ia me acrescentar nada. Pedi para sair!”, p. 102. A atriz também não via com bons olhos a pressão imposta em produções de TV, julgava desnecessária: “A televisão tem uma capacidade muito maior do que o cinema para fazer uma cena bonita, mesmo com toda a correria. Aliás, uma correria que não tem tanta necessidade. Não vejo porque é preciso correr tanto, fazer tudo para ontem, o que é um horror! E o que é a televisão? É uma boa história, um bom texto. Quando você percebe cada ponto, cada vírgula, isso é um bom texto”, p. 70 e 71.
Ler a biografia de Ruth de Souza é estar diante de uma mulher determinada, segura, sem meias palavras, consciente do seu talento e que sempre estava disposta a trabalhar. Durante toda a vida, Ruth mostrou que ser perseverante era o caminho para conquistar os próprios sonhos. Num dos trechos da excelente obra, Maria Angela de Jesus destaca uma reflexão da atriz sobre essa característica: “A força de uma pessoa que tem talento, que persiste no sonho e tem um objetivo, acaba fazendo as coisas acontecerem. Só é preciso planejar. A gente tem de planejar no seguinte sentido: O que eu quero?! Como é que vou conseguir isso? Como é que vou chegar onde quero?“, p. 52. Ruth nunca se casou nem teve filhos, mas deixou para a cultura brasileira um legado que vai atravessar gerações.
Referência:
 
JESUS, Maria Angela de. Ruth de Souza: estrela negra. 2. ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. (Coleção Aplauso).
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#NoveAnosDoDesde, Cultura, DESDEnhas, Jornalismo Cultural, Resenha

Em autobiografia, Rita Lee se mostra, se “amostra” e se zoa

Considerada a Rainha do Rock Brasileiro, artista também merece a coroa de Rainha do Deboche

Rita Lee não esconde a verdadeira identidade em autobiografia lançada em 2016. Imagem: reprodução do site da Globo Livros

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Rita Lee: uma autobiografia (Globo Livros, 2016) é uma daquelas obras que interessam a quem gosta de música, de cultura brasileira e de rir. Pois é. Se você gosta de rir, a leitura do livro da paulistana Rita Lee Jones de Carvalho é um ótimo mote. Quem lê o exemplar, ri o tempo todo. E não é exagero. A forma como madame Lee relata os fatos de sua vida arranca o riso de qualquer mal-humorado. Até nas passagens mais dramáticas, como no trecho em que ela narra o estupro que sofreu na infância: “Se meu pai ficasse sabendo, provavelmente iria atrás do sujeito para matá-lo e não seria bom para ninguém o chefe da família ir pra cadeia. Portanto, as mulheres seriam as únicas guardiãs do meu ‘tesourinho’ arrombado. […] Acredito que foi a partir daquele momento que las mujeres passaram a relevar meus desajustes comportamentais”, p. 17. O sujeito citado por Rita foi um técnico que tinha ido ao casarão onde a família morava para consertar a máquina Singer da mãe, dona Chesa. É importante dizer que o riso vem, obviamente, da forma como Rita narra, não da violência sofrida, que deve, a qualquer tempo, ser rechaçada e denunciada.

No livro, a cantora parece fazer questão de mostrar tudo que fez na vida, inclusive o que é reprovado socialmente. A lista é grande: o avô que lhe dava cerveja preta com açúcar, quando ela era criança, sem que os adultos da casa soubessem; o roubo do vestido de noiva usado por Leila Diniz na novela O sheik de Agadir, que pertencia ao acervo da Rede Globo e que Rita guarda até hoje; outro roubo: um par de botas de uma famosa butique de Londres, que a roqueira ainda tem também; as “viagens” de ácido (a cantora chega a usar a expressão “o pó nosso de cada dia”, no capítulo Bad in Rio); a única overdose que teve; a curtição de fileira de pó a convite de Nelson Gonçalves; as inúmeras vezes que foi internada para tratar do alcoolismo. Como resposta a tudo isso, Rita sugere, no capítulo intitulado Profecia, o seu epitáfio: “Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”, p. 278. “Nossa Senhora da Malandragem”, que a cantora cita no capítulo Malandragem, que o diga. Não deixa de citar também as polêmicas nas quais se envolveu durante a carreira, como a confusão no Festival Verão Sergipe, em 2012.

Mesmo publicada em 2016, quando algumas questões sociais, como o racismo, já estavam sendo discutidas com mais afinco, a filha caçula de Charles e Chesa traz um desfile de expressões preconceituosas na sua narrativa. Ao descrever a irmã mais velha, Mary, ela diz: “Seu grande complexo era o cabelo pixaim (de onde vinha aquilo?), usava tudo quanto era produto químico para alisar, até ferro de passar roupa, além da mania de fazer nozinhos e arrancá-los”. p 21. No meio do caminho, os leitores também encontram “uma ex-escrava da família do meu bisavô…” (p. 36), “lista negra” (p. 107), com sentido negativo, e “mulata peituda/bunduda” (p. 151).

Rita conta sobre os casinhos amorosos que teve, com Paulo Coelho e André Midani, por exemplo; que, dos ícones da Jovem Guarda, seus preferidos eram Erasmo (pela atitude) e Wanderléa (pelo encanto); explica a sua rusga com Ezequiel Neves, a quem chamava de “Abominável das Neves”: “[…] foi quem plantou na imprensa o boato de que eu estava com leucemia”, p. 179; critica os críticos de música: “Críticos de música adoravam me crucificar, não importava o que eu fazia ou deixava de fazer, um ranço que durou por todos os meus cinquenta anos de estrada. Até hoje é quase impossível encontrar matérias falando bem de um trabalho meu. Os caras não escondiam que eram membros do bocejante time ‘Pra fazer rock tem que ter culhão'”, p. 215. Contudo, na mesma página, para não ser injusta, diz que dois jornalistas a achavam bacana e aproveita para criticar o jornalismo cultural da atualidade: “Dois que hoje fazem a maior falta nessa mesmice tediosa do panorama jornalístico rabo-preso: Telmo Martino e Paulo Francis, gênios rebeldes para os quais tiro meu chapéu e lhes faço cortesia. Com esses dois do meu lado, quem precisava de ‘amiguinhos’ na imprensa?”. Ainda nessa seara, a ex-apresentadora do TVLeezão (MTV, 1991) e do Madame Lee (GNT, 2005) critica dois apresentadores de TV: “Entre as poucas apresentações de tv de que participei para divulgar o Acústico, fiz questão de incluir o Programa do Ratinho, algo considerado vulgar por artistas de calibre, onde cantei ‘Alô, alô marciano’ com orelhinhas de et e recebi um tratamento muito melhor do que naqueles dois programas onde os apresentadores falam mais do que o convidado e o interrompem quando você está cantando”, p. 251. Ela também não deixa de falar o quanto era uma estudante que dava trabalho: “Fui uma ginasiana medíocre, sempre passando de ano raspando, sempre me sentando no fundão, sempre conversando muito e sempre sendo expulsa da classe. Tinha que manter a minha fama de mau”, p. 57.

Rita e suas peraltices: “Nunca fui santa”. Imagem: reprodução do livro

Quem lê a autobiografia, fica sabendo que a mulher de Roberto de Carvalho teve uma experiência homossexual: “Bêbados adoram o tema ‘tem que comer quiabo para saber que não gosta’ e nessas troquei uma figurinha íntima com uma mocinha bonitinha que encontrei num bar e levei para casa. Ficou lá meia hora, tempo suficiente para tirar a prova de que eu não gostava mesmo de quiabo, momento minissaia”, p. 237; que foi presa e o motivo disso, e que fez um aborto, do qual se arrependeu. Inclusive, ao tratar do tema, é a primeira vez que a gente sente seriedade na narrativa. Vale a pena reproduzir aqui o depoimento forte e contundente de Rita:

“Nenhuma mulher faz aborto sorrindo. Cabe a elas, e somente a elas, a decisão de interromper uma gravidez, assim como de segurar sozinhas as consequências moral, espiritual e oskimbau. Me refiro ao ‘sagrado feminino’, de nós meninas que temos um buraco a mais no corpo para administrar, do nosso universo complexo demais para machos, religiosos e políticos meterem o bico, esses para os quais prevalecem mais o direito do feto que ainda nem nasceu ao da mãe que não deseja pari-lo por motivos que não nos cabe julgar, psicológicos, econômicos, neurológicos, até mesmo espirituais.

Aborto não é uma mutilação no corpo da mulher. Há em suas entranhas um ser indesejado advindo de estupro, acefalia e de tantas deformações irreversíveis já detectadas nas primeiras semanas de gestação. Parir e abandonar o bebezinho numa lata de lixo é criminoso. Parir e pôr para adoção é irresponsavelmente confortável. Parir e criar em condições sub-humanas é indigno. Parir para ganhar bolsa família é humilhante”, p. 174.

Exibição

A icônica capa do bem-sucedido álbum de 1979, que ficou conhecido como Mania de Você. Imagem: reprodução do livro

Claro que o relato autobiográfico de Rita Lee é, obviamente, um espaço para ela exibir as suas conquistas. E não há nada de errado nisso. É legítimo. Se ela não fizer, quem vai fazer, não é? De acordo com o texto, ela é a mulher brasileira que mais vendeu discos no país, a artista com mais músicas em aberturas de novelas e a pioneira no formato acústico. Inclusive, o seu pioneirismo aparece várias vezes no texto: “Enquanto a crítica vinha com a farinha, minha antena futurista já comia o bolo. Ser pioneira tem um preço”, p. 198; “O disco vendeu bacana, algumas faixas bem executadas nas rádios. Tanto agradou que o formato acústico virou tendência entre roqueiros brazucas. Ser pioneiro tem um preço, mas também faz escola”, ao falar do álbum Rita Lee em Bossa N’Roll. Quando fala de Os Mutantes, grupo que fundou com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, e do qual foi expulsa, tira onda:

“Alguns podem achar que deprecio a fatia que cabe aos Mutantes dentro da cena musical daquela época. Ao contrário, sei da importância das modernidades eletrônicas que levaram ao movimento tropicalista contribuindo com a proposta, entre outras audácias, de proibir o proibido dentro da mpb. Hoje, os Mutantes são considerados cult, especialmente a fase da qual fiz parte, o que muito me orgulha. Estávamos sim anos-luz à frente do nosso tempo, pena a nossa alegria espontânea ter perdido para a falsa ilusão da glória passageira.

Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela”, p. 118.

Na obra, a cantora faz duras críticas aos irmãos, apontando desvios de caráter e falta de higiene. Ela teve um relacionamento com Arnaldo e até casou com ele, para não envergonhar a mãe diante da sociedade conservadora da época.

A compositora orgulhosa fala das diversas músicas que fez e que foram gravadas por notórios intérpretes da Música Popular Brasileira, como Alô, alô marciano (Rita Lee/Roberto de Carvalho), gravada por Elis Regina; e Balada do Louco (Rita Lee/Lucio Eduardo Antonio Baptista), que, mesmo já tendo sido gravada antes pelos Mutantes, ganhou notoriedade na gravação de Ney Matogrosso. Cita também algumas canções feitas por encomenda: Cor de rosa choque (para o programa TV Mulher, da Rede Globo) e Flagra (para a abertura de uma novela. No livro, Rita não cita nem a emissora nem a novela). Obviamente, todos os marcos da época do Tutti Frutti também estão contidos nas páginas do livro. Algo bacana também é que muita coisa que é narrada pode ser vista no YouTube, como o encontro dela com Elis Regina e João Gilberto.

Deboche, autozoação e curiosidades

Rita Lee por Rita Lee? Debochada! Isso fica perceptível a cada página lida da autobiografia. Além de Rainha do Rock Brasileiro, ela pode carregar o título de Rainha do Deboche sem nenhuma dúvida. Ao elencar as qualidades dos integrantes dos Mutantes, fala assim de si própria: “Quanto a mim, não tocava nem cantava porra nenhuma, fazia a ‘bonitária, mas orditinha’, contribuindo com 80% das letras, 40% das músicas, 30% dos arranjos e 100% dos figurinos. O lance é que na hora de mostrar serviço, nós três juntos desempenhávamos bonito”. A propósito, Rita brinca com expressões ao longo do texto, além de “bonitária, mas orditinha”, usa “Gente coisa é outra fina”, p. 177. Ao falar de uma prima dos Baptistas que tinha muito apetite sexual e que, hoje, é uma monja radical, solta (com ironia): “Adoro ex-vedetes convertidas”. Diz que o sonho de dez entre dez jovens tolinho da época dela era montar uma comunidade hippie e implica com a própria voz em várias passagens: “De tanto berrar nos shows, minha voz, sempre micra, competia corajosamente com os eletrônicos no volume máximo…”, “Realmente perdi os agudos, mas para quem também não tinha nem médios nem graves na voz, não fez diferença. Cantora fake tinha suas vantagens”, p. 142; “Ah, se eu tivesse um nono daquela voz!”, exclama na página 182, referindo-se à voz de Elis, de quem ficou muito amiga; “Cantar com João Gilberto e orquestra sem ter ensaiado uma só vez era missão impossível para uma roqueira porra-louca e desafinada feito eu”, p. 189. No capítulo batizado de Autocrítica, decreta: “Sempre soube da minha voz fraquinha e meio desafinada, sem potência alguma. Cantar nunca foi natural pra mim, dos passarinhos eu sou o pardal”, p. 255.

Rita Lee: a Rainha do Deboche. Imagem: reprodução do livro

Rita, como muitos outros artistas da música, teve canções censuradas pelo governo ditatorial. Contudo, num trecho do livro, ela diz que, às vezes, até torcia para que isso acontecesse: “Confesso que às vezes até torcia para uma composição preguiçosa minha ser censurada por imbecilidade”. Essa autozoação toda tem justificativa? A autora responde: “Debochar de mim mesma é uma estratégia que sempre dá resultado positivo. Uma das coisas que mais me dão prazer é fazer o que não devo, tipo fumar na frente de quem faz campanha anticigarro. Não é tarde para ser o que eu deveria ter sido. Eis-me aqui, uma pós-famosa anônima observando os macro e micro-omniversos dentro e fora de mim”, p. 281.

O relato de Rita é dinâmico, divertido, debochado e tem ótimas tiradas. A cantora se despe, se olha de fora e consegue se distanciar dela. Fala de sua paixão por animais, única bandeira que carrega, e confidencia que o “Lee” não é sobrenome de família. O pai acrescentou ao nome das três filhas em homenagem ao general Robert E. Lee e outros membros da família adotaram também. A ironia está presente o tempo todo nas histórias contadas. Para criticar artistas que usam ghost writers em autobiografias, Rita dá vida a um fantasma chamado Phantom, que a auxilia nas suas falhas de memória. Também faz críticas a filhos que pegam carona na fama de pais: “Meus meninos nunca usaram meu nome para conseguir uma boquinha onde quer que fossem, não rolou ‘mãetrocínio’, falo isso com admiração e orgulho”, p. 271. Alguns capítulos são insossos, desnecessários, mas, em geral, a autobiografia é convidativa, interessante. Vale a pena conhecer um pouco mais de perto essa filha do “roque enrow”, que foi umas das pioneiras em tratar, na MPB, da liberdade da mulher e do prazer feminino.

Referência:
 
LEE, Rita. Rita Lee: uma autobiografia. 1. ed. São Paulo: Globo, 2016.
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Síndrome da projeção: as pessoas que acham que você quer aquilo que você nem quer

 Não é minha culpa a sua projeção*

Por Raulino Júnior ||Texto de Quinta|| 

Psicologia trata a projeção com um mecanismo de defesa e isso não é muito difícil de perceber nas relações humanas do dia a dia. Algumas pessoas projetam nas outras aquilo que está nelas e que, por alguma razão, elas não aceitam; tanto de bom quanto de ruim. Quando a característica é ruim, fica fácil de entender por que elas querem se livrar. Quando é boa, não, mas Freud explica: “Dentre as teorias psicológicas, a que mais utiliza a projeção no arcabouço teórico é a Psicanálise. Para explicitar a manifestação da projeção, a teoria psicanalítica ampliou o sentido e definição do conceito, concebendo-a como uma operação na qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro, pessoa ou coisa, as qualidades, os desejos, os afetos, os sentimentos e até mesmo os ‘objetos’ que estão internalizados e ele desdenha e/ou recusa aceitar e/ou admitir que lhe são pertencentes”. Esse trecho foi retirado do artigo Desvendando o Mecanismo da Projeção, escrito pelas professoras Ana Lucia Barreto da Fonsêca e Maria do Socorro Sales Mariano, e publicado em 2008, na Revista Psicologia em Foco. A reflexão feita aqui vai se concentrar nos desejos que, muitas vezes, pertencem a uma pessoa e ela sai por aí projetando nos outros. Eu, hein!

O ser humano é, como bem diz o clichê, uma caixinha de surpresa. Quando você menos espera, ele te surpreende. Afinal, o que é que faz uma pessoa supor o que a outra quer da vida? Ou deve se achar muito poderosa ou, e é o mais lógico, é uma forma de extravasar aquilo que se reprime. Só pode. Deve ter uma satisfação, algum prazer bem estranho, em achar que todo mundo quer aquilo que, provavelmente, quem projeta é quem deseja. Não é todo mundo. Nunca vai ser, por sinal. Isso também é problema de leitura. Ou seja: de como a gente lê o outro. Por puro preconceito, e não tem outro nome para isso, a leitura pode ser bastante equivocada. Nesse sentido, o dono da projeção perde um tempo supondo algo que acredita ser um desejo da vida alheia e abdica da própria vida e dos próprios sonhos. Evocando o poeta: eu não consigo entender essa lógica.

Uma pessoa sabe muito bem o que ela quer para si. Sempre sabe. Pode acontecer de ela ficar insegura, de não querer falar para o mundo de imediato, de protelar, mas sempre vai achar um caminho para se mostrar e outras pessoas que vão apoiá-la no sonho que ela tem. Agora, quem faz projeções achando que alguém quer ou deveria fazer isso ou aquilo, deve, numa boa, procurar ajuda, porque “alguma coisa está fora da ordem”**.

Às vezes, a pessoa está ali, na dela, fazendo as coisinhas dela, sendo bem-sucedida nos objetivos que ela traçou, e o que ela quer é, simplesmente, ter saúde para continuar fazendo o que ela faz. Qualquer projeção alheia é só uma projeção alheia mesmo. Fica para quem projetou. Principalmente, porque, com certeza, deve ser uma vontade dessa pessoa, não do projetado. “Perceba que não tem como saber/São só os seus palpites na sua mão“.

Então, e isso não é uma projeção, é apenas um exemplo, se você quer ser o novo digital influencer, seguido por 7 bilhões de pessoas, e quer participar do Encontro com Fátima Bernardes para discutir pautas que têm relação com o que você faz nas redes sociais digitais: vai lá, fio! Traça os seus objetivos, entra de cabeça e faz acontecer. Joga para o Universo! Lembre-se: esse é um desejo seu, não é de todo mundo. É verdade que muita gente quer isso, mas tem muita gente também que não quer! Eu não quero! Não considero que isso seja importante para a minha vida nem para os objetivos que traço para mim. Mas você quer? Se sim, vai, fio! Boa sorte! Arrebenta! Vou torcer por você! Pode acreditar!

Eu quero ser o que eu sou. Eu sempre quis ser jornalista. E sou. Sempre quis fazer atividades ligadas à produção cultural. E faço. Sempre gostei de cantar. E canto. Adoro dançar. E danço. Até ser professor, que foi algo que nunca almejei, aconteceu na minha vida e levo com paixão e responsabilidade, pois quero ser uma referência positiva na vida dos meus educandos e contribuir para um mundo melhor. Sou, exatamente, o que eu quero ser, não o que projetam. Sei muito bem o que quero para a minha vida. Desde o final da adolescência.

Portanto, não projete o que você quer para uma outra pessoa (a ambiguidade é de propósito!). Fique para você. Não reprima o seu id, considere o seu ego e não se importe tanto com o superego. Seja o que sente. Faça o que sente. Muitas vezes, o que a pessoa quer mesmo é só dançar o Tchan na frente do espelho (e postar, se ela quiser!), e você aí achando que ela quer “mitar” nas redes sociais digitais. Não, fio. Isso é próprio da sua geração. Quer? Vai lá e faz. Boa sorte! “Sou mais do que o seu olho pode ver“. “Lide com isso”, como diz Djamila Ribeiro.

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A telona se rende à telinha: o olhar do cinema para a televisão

 Curtas mostram como a televisão provocou mudanças nos hábitos das famílias

Cenas de Túnel e 29 Polegadas: a TV no cinema. Imagens: reprodução do vídeo

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Durante esses 70 anos de presença no Brasil, a televisão foi tema de um monte de coisa. Nem o cinema nacional ficou alheio à revolução provocada pelo aparelho que chegou por aqui em 1950, numa aventura capitaneada por Assis Chateaubriand. Das produções feitas pelos amantes da Sétima Arte, vamos destacar dois curtas-metragens: Túnel (Bruno Kennedy e Mayra Jucá, 5 min, 1994, Rio de Janeiro) e 29 Polegadas (Bernard Attal, 21 min, 2004, Bahia).
Em Túnel, a televisão ganha uma relevância tão grande que nada é mais importante do que aquilo que está sendo exibido nela. Há um círculo vicioso que faz com que algumas famílias retratadas no filme não percebam (ou não façam nenhum esforço para isso) o que acontece ao seu redor. O curta apresenta um adolescente que assiste a um programa de TV no qual uma família aparece fazendo a maior algazarra na mesa, enquanto o pai assiste a outro programa, que, por sua vez, traz uma família preconceituosa que só para de despejar a sua violência verbal quando a vinheta do Jornal Olho de Vidro, da TV Olho de Vidro, entra no ar. O telejornal é daqueles que mostram “o mundo cão”, com repórter fugindo de tiroteios e protesto de moradores. No final, o adolescente do início volta a aparecer. Dessa vez, com partes do corpo gangrenadas. Inclusive, a orelha até cai. Ou seja: o ser humano se anulando por causa da programação da TV. Atualmente, isso acontece com o vício nos smartphones, não é?
29 Polegadas retrata um lugarejo em que o marido, funcionário público, sai para trabalhar e a sua mulher, que é dona de casa, sai para traí-lo com o vizinho. O curta, produzido na Bahia, é estrelado pelos atores Bertho Filho (um gênio da atuação), Claudia Di Moura e AC Costa. Quando o marido, interpretado por Bertho, compra uma TV de 29 polegadas, há uma mudança de comportamento no casal de amantes. Em vez de a mulher ir para a casa do vizinho, é ele quem passa a visitá-la, em busca de prazeres (sexuais e os proporcionados pela programação das emissoras). É o “televizinho”. O marido, por outro lado, se mostra como um cara apenas preocupado em prover o seu lar. Quando compra a televisão, isso fica ainda mais evidente: ele chega do trabalho, não interage com a companheira, mas tem todo o tempo do mundo para assistir aos programas veiculados na TV.
Ninguém duvida do poder de transformação que a caixinha de 70 anos provocou na sociedade. Os dois curtas abordam isso. Os filmes mostram, com leveza e com um tom crítico, como um aparelho é capaz de dominar o homem. As produções servem para suscitar debates em ambientes de produção de conhecimento, como escolas e universidades. A TV no cinema é uma TV para ser repensada. Isso é sempre bom.
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Morar numa cidade e votar em outra: a contribuição para o Brasil ser como é

Imagem: reprodução da Wikipédia

Por Raulino Júnior 

Quantas pessoas da sua órbita têm domicílio eleitoral diferente do domicílio civil? O que você acha disso? Eu acho bem problemático. Morar numa cidade e votar em outra, para mim, é contribuir para o Brasil ser do jeito que é: um país com democracia representativa frágil, cheio de trambiques e, claro, de conchavos. Isso causa problemas no âmbito municipal, estadual e federal. Para o Executivo, Legislativo e Judiciário. É a Lei do Menor Esforço prevalecendo sobre a vontade, de fato, de transformar o país num lugar melhor. Ou seja: o nosso discurso é, quase sempre, uma eterna fantasia. Típico.

O Brasil é um país em que as migrações internas sempre foram muito constantes. As pessoas mudavam de cidade em busca de uma vida melhor, de seus sonhos. Nos últimos anos, de acordo com os dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a migração mais intensa foi aquela entre municípios de um mesmo estado, em vez de região para região. E isso é percebido sem lupa. Quantas pessoas, nos últimos dez, quinze anos, saíram de suas casas e deixaram as suas famílias porque precisavam/queriam trabalhar ou estudar? Inúmeras! Eu conheço algumas. Você também deve conhecer.

Tais mudanças trazem impactos individuais e coletivos. E um que é, podemos dizer, um misto dessas duas esferas, é o ato de votar. Quem se muda, quer mudança, e isso não pode ficar apenas no plano pessoal, pois denota um egoísmo daqueles. Fazer a transferência do título do eleitor para o município em que fixou residência deveria ser uma obrigação consciente de todo e qualquer cidadão, mas não é. Vale destacar que essa ação é bastante simples e pode ser feita em qualquer cartório eleitoral. Quer dizer: não há dificuldade nenhuma. Quem não o faz, não faz porque não quer e por achar que não é importante. Mas é. Quando você passa a exercer a sua cidadania num outro lugar, você passa a ser cidadão desse lugar. É para ele que vai todas as taxas tributárias dos impostos que você paga.

Os municípios têm algumas fontes de receita, entre elas, os impostos: IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana), ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis) e ISS (Imposto Sobre Serviços). Quem paga qualquer um deles, contribui para o orçamento da cidade em que mora. Isso significa que escolas e postos de saúde, por exemplo, são beneficiados com esse aporte financeiro. Você ajuda nisso. No município que mora, não no que vota.

Quem ainda vota na cidade em que não mora mais, só atrapalha o desenvolvimento dela. Como não vive mais lá, não sabe dos problemas e não tem como escolher de forma consciente quem vai atuar no Executivo e na Câmara Municipal. Não tem como. Não adianta alegar que trabalha lá, que vai com frequência, que conhece todo mundo. Não adianta. Você não vive mais a cidade, não sabe o que ela precisa, quais são as principais demandas, quais os planos dos candidatos, se são coerentes e viáveis.

Ir à cidade de origem de vez em quando é ter contato apenas com as coisas boas dela. É rever parentes, amigos e tomar o seu sorvete predileto, que lembra os melhores gostos da infância e da adolescência. Quem tem compromisso com o país, e não vive de discursos cheios de pompa nas redes sociais digitais, age de outra forma. Sabe que as funções de prefeitos e vereadores são fundamentais para o crescimento e cidadania de um lugar, e que é preciso escolher com muita consciência esses representantes. Caso contrário, não vai poder criticar os faltosos do Congresso Nacional que não vivem o dia a dia do Senado e da Câmara dos Deputados. No fundo, é a mesma coisa. Vale tudo.

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Weslei Machado Cazaes: de axé, da dança, das ciências e de mulheres

Criado por mãe, por vó, pela dança e pela UNILAB, Weslei Machado Cazaes celebra as suas raízes

Weslei Machado Cazaes: dança como afirmação de identidade. Foto: Marcela Barravento

Por Raulino Júnior

Entre tantos significados que encontramos da palavra axé em dicionários de iorubá, energia e força são os que mais têm a ver com a vida de Weslei Machado Cazaes. O santo-amarense de 27 anos é daquelas pessoas que passam uma energia boa, mesmo para quem o conhece apenas pelas redes sociais digitais, e que usa a força que tem para começar, recomeçar e alcançar os seus objetivos. Filho único de Evandro e Nara, foi dentro de casa, tendo como referência duas das mulheres de sua vida [a mãe, Nadijanara; e a avó, Antonia (Toinha)], que ele aprendeu a percorrer bons caminhos. “Sou daqueles que dizem: ‘Filho criado por mãe e por avó’. Nesses 27 anos, percebo que sou grato demais a elas por ter sido criado tão somente por elas. Acho que a minha ida para a universidade, entrando em debates que antes não me interessavam ou meio que já tinha naturalizado em meu cotidiano, como a maioria dos meus, foi o ponto chave para eu refletir sobre minha vida, minhas relações com o mundo. Principalmente, na questão da mulher nessa sociedade defeituosa. Minha avó, como a realidade de uma maioria de mulheres, sobretudo negras, foi largada para criar sozinha de cinco crianças. Passou fome e se lançou ao mangue para amenizar. Lavou roupa dos outros, fez moqueca na folha pra vender, fez pamonha. Além de tudo, depois de ter vencido a fome total, ajudou a criar os filhos de meu avô com outra mulher. Minha mãe, mulher negra e quilombola, foi a filha que cuidou do caçula e teve que ficar para cuidar da mãe. Foi deixada sozinha para me criar! Interrompeu o ensino médio e só terminou quando eu já estava com uns dez anos, mais ou menos. Ela abdicou dos sonhos de jovem para se tornar uma adulta forçada! Enfim, essas coisas não são para eu dizer que são guerreiras, como se passar por isso fosse algo positivo. Não! Isso serve para eu lembrar que sou grato por elas não desistirem de viver e nem de me dar essa vida que hoje tenho. Por mais que eu esteja condenado a reproduzir atitudes machistas dessa sociedade patriarcal, tive uma criação capaz de me colocar em bons caminhos, que me levaram a analisar essas dinâmicas e me policiar em não cometer o mesmo erro com mulheres que aparecessem em minha vida. Melhor do que isso, é tentar criar um ser humano capaz de respeitar as pessoas sem distinção de raça, gênero, sexualidade, religião etc., mas sempre atento à perversidade humana”, desabafa.
Quem também contribuiu muito para a sua formação humana, cidadã e atuou como uma mãe na sua vida foi a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), instituição na qual se formou em Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades e Licenciatura em Ciências Sociais. “Ter a UNILAB nesta região, politicamente massacrada, é dar à nossa região oportunidade de levantar ainda mais a voz, utilizando outras ferramentas para combater as diversas violências que sofremos por sermos pretxs, baianxs, interioranxs etc. Se formos fazer uma pesquisa com xs brasileirxs da UNILAB, sobretudo daqui do Recôncavo, cada um vai dizer que é o primeiro da família a ir à universidade. Isso é resultado de um processo de exclusão que passamos. Além de termos uma educação básica precária, fomos educados [a pensar] que a nossa escolarização é apenas até o ensino médio. Depois disso: trabalho! A UNILAB vem para quebrar muitos paradigmas. O primeiro, é esse limite que nos deram; o segundo, é nos localizar na história, pois, até antes da UNILAB, eu sabia muita coisa da Grécia, Roma e nada dos povos que nos deram origem ou da comunidade que sou. A UNILAB vem me dizer que devemos desnaturalizar as coisas do mundo, deixar de achar que as coisas são porque são. Ela vai nos mostrar que existem diversas visões de mundo e essa que naturalizamos foi totalmente arquitetada por colonizadores, que tentaram apagar a história afro/indígena, e assim tivemos a chance de desconstruir muitas coisas que antes tínhamos como normal. Entender que África não é um país, mas um continente com 54 países dentro, é se libertar das correntes mentais que foram colocadas em nós”.
Dança, candomblé e intolerância religiosa
Weslei leva a energia dele também para a arte. Nesse caso, a dança, que entrou na sua vida desde que tinha seis anos de idade. Passou pela Companhia de Dança Afro do Vale do Iguape, pelo Balé Afro do Recôncavo e pelas quadrilhas Raízes do Iguape e Girassol do Iguape. Cada experiência deixou um ensinamento, principalmente porque aprendeu a conviver em grupo e a respeitar ainda mais as subjetividades. “O Balé Afro do Recôncavo me fez dar muito mais de mim em relação à expressão na dança dos orixás. Lá, pude aprender outros movimentos e tomei conhecimento das origens. Por exemplo, o movimento de Xangô, eu fazia no antigo grupo afro, só que nunca me disseram da relação ou não lembro se me disseram. No Girassol do Iguape, passei um curto tempo, fazendo abertura na dança. Daí, depois de um tempo parado, em 2011, volto ao Raízes. Na Companhia de Dança, eu era o mascote, único homem da minha idade e isso me fez passar por preconceito, pois nessa época, e talvez um pouco hoje, as pessoas imaginam que quem dança afro é mulher ou ‘viado’, usando o termo popular ofensivo que usam. Nessa Companhia, eu me inicio na dança afro. Por último, Raízes do Iguape. Sempre digo e ninguém discorda: o grupo Raízes do Iguape é uma escola de vida. No Raízes, eu aprendi a conviver em grupo, a trabalhar para não só dançar, mas levar um legado ancestral que a gente traz na forma de andar, falar, dançar, sorrir. Quando a gente sai para os concursos, fazemos questão de dizer que nunca vamos sozinhos/as, sempre levamos nossa comunidade, pois é através dela que temos condições de estar em quadra, ano após ano. O Raízes ensinou regras de convivências, de respeitar a religião, sexualidade, opinião política de todos e todas. Somos uma família, nos momentos difíceis e alegres. Falar do Raízes é falar de uma história de gerações. São mais de 40 anos de (r)existência!”.

Weslei trocando energia com o mar. Foto: Uiny Lene

Da dança afro para o candomblé, foi um pulo. De alguns anos, é importante ressaltar. Como é muito comum na sociedade brasileira, Weslei teve toda a sua formação religiosa baseada no catolicismo. Ia à catequese, sem muita empolgação, só porque a mãe mandava. Mais tarde, para agradar uma namorada, visitava a Assembleia de Deus. Antes dessa experiência, fazia estudos bíblicos com Testemunhas de Jeová, mas não se sentia bem. “Faz pouco tempo que estou no candomblé. Sempre visitava um candomblé lá da comunidade, só que não entendia nada, só sei que não queria sair dali. Em 2015, quando entrei na UNILAB, fui com uns colegas em uma festa de Caboco aqui em Santo Amaro. O motivo que me levou entrar no candomblé, eu tenho certeza, foi a minha ancestralidade que me direcionou. Sempre dancei movimentos de orixá na Companhia de Dança Afro, mesmo não sabendo do que se tratava, gostava; visitava um candomblé, mesmo sem incentivo de amigo ou familiar, e eu gostava. Quando estou em função no axé, é como se eu estivesse no meu real cotidiano. Eu defendo muito que o candomblé é um mundo à parte desse que vivemos. O candomblé é uma escola, é uma casa, é uma comunidade. Temos uma língua, culinária, uma interpretação da realidade, natureza. Falamos de economia, política etc. Minha mãe pequena fala que o candomblé é um poço fundo que ninguém nunca consegue chegar. Ela fala isso para afirmar que o aprendizado que se tem é infinito e nem tem muito tempo para aprender tudo, até porque existem orientações dos nossos orientadores/as (babalorixás/ialorixás) e do nosso próprio Orixá”.
Contudo, apesar de toda a contribuição do candomblé para a cultura brasileira, independentemente da vinculação religiosa, a intolerância faz parte do cotidiano do povo de santo. Para Weslei, pequenas ações coletivas podem contribuir para derrubar essa estrutura. “Para combater a intolerância religiosa, tem que colocar o debate racial dentro, pois não se separa. É muito difícil falar de intolerância religiosa e não falar de racismo, pois a maioria dos casos de desrespeito à religião do outro está relacionada às religiões de matriz africana e essas são de origem africana, mesmo que tocadas pelo catolicismo e religiões indígenas. Um exemplo de que é difícil acabar com a intolerância, é quando encontramos, nos Tribunais de Justiça, um crucifixo; quando encontramos na Câmara de Vereadores, uma bíblia; ou quando temos “uma lá ela” de um presidente que retira obras dos orixás do Palácio do Planalto. Percebemos que a intolerância é difícil de acabar a nível macro, quando temos novelas hoje com timidez e pouca bagagem para incluir o candomblé no cotidiano das pessoas do Brasil todo. Mas a nível municipal, podemos, ao menos, promover um debate maior sobre o assunto, criar organizações das religiões, fazer parcerias com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi). Tudo depende da administração. Acredito, inclusive, que é a partir do micro que atingimos o macro, ao menos nesse contexto que estamos… Daqui de baixo que é fácil derrubar as estruturas”.

Santiago do Iguape, Brasil e a Lua

Weslei Machado Cazaes. Foto: autorretrato

“Minha relação com Santiago do Iguape é ancestral, pois os que me antecederam viveram ali e isso já cria esse laço, esse cordão umbilical, entende?!”. É assim que Weslei se refere à vila que lhe deu régua e compasso. Embora tenha nascido em Santo Amaro, é em Iguape que ele é. “É justamente o meu lugar no mundo, no sentido de pertencimento. Esse sentimento de pertencer a um lugar, eu penso em uma raiz de árvore, que constrói uma ligação de energia com aquele solo, aquele território que ela não só nasceu, mas cresceu e se adaptou”, filosofa. Ao ser indagado se o Brasil tem jeito, analisando pela ótica das Ciências Sociais e das Humanidades, Cazaes é esperançoso: “Tem jeito, sim, só não sei para quem. Acredito que a raça humana tenha sede de poder sempre. Assistir a uma série, The 100, que mostra um pouco disso. Mudam de planeta, criticam o modo de outros governar, mas nunca deixam de estar sempre acima de um povo. Então, pensar que o Brasil é um país que tem jeito, no sentido de ser o tal paraíso, acho que ainda está no campo da fantasia. Mas quem sabe, sei lá, no século 30, isso comece a mudar… “A esperança é a última que morre”.
Para Weslei, os amigos é mais uma versão de família. “Digo, muitas vezes, que família não é necessariamente, para mim, de sangue. Eu acredito muito que é o orixá que coloca na minha vida pessoas que valem a pena. Outras passaram por mim e não ficaram, por não conseguirem alguma coisa… Eu já peguei pessoas falando mal de mim e mesmo assim agia na falsidade. Então, essas pessoas, naturalmente, sumiam de minha vida e isso é massa”. Amizade verdadeira ele tem com a Lua, que exerce um fascínio desde sempre: “Minha relação com a Lua sempre foi curiosa… Talvez, por ser algo que está distante desse planeta e que, talvez, se eu pudesse ir para lá, me livrava de muita coisa desnecessária. Só sei que ela me emociona. Em 21 de dezembro de 2018, se tornou ainda mais especial, pois minha namorada me pediu em namoro numa noite em que a Lua estava cheia. Então, ela foi a nossa plateia. Inclusive, em momentos em que estamos distantes e vemos a Lua, nos reconectamos e lembramos um do outro. Aí, mandamos fotos”. Weslei tem força, energia e romantismo.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

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Canais de Weslei Machado Cazaes nas redes sociais digitais:
 
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Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Weslei Machado Cazaes
Data da entrevista (feita por e-mail): 7/10/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
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Discurso de favela e promessas monumentais: o pleito de 2020 e as práticas de 1500

Imagem: reprodução do site do jornal A Plateia

Por Raulino Júnior ||Opinião de Segunda||

Eleição que é eleição tem que ter enganação. Isso poderia ser um slogan, mas não é. É só uma percepção mesmo. No próximo dia 15 de novembro, mais de 147 milhões de brasileiros vão escolher prefeitos e vereadores, em 5.569 municípios, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Para isso acontecer de forma responsável, é preciso ficar bem atento a várias questões, inclusive ao marketing político de cada candidato. Gente que nunca foi favela está usando tal discurso para se eleger. Você não vai cair nessa, não é? Estamos em 2020 e não podemos mais aceitar práticas eleitoreiras de 1500.

Pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a favela, ou para ser mais fiel ao termo que é utilizado pelo órgão desde 2010, o aglomerado subnormal “é uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação”. Dizer que é favela é bem diferente de ser favela. Se o candidato não vive essa realidade, não pode dizer que é favela, porque não é. O uso adjetivado do termo, já incorporado pela linguística, é passarela de oportunismo em período de eleição. Muita gente desfila, busca os flashes e quer associação com o lugar que carece de políticas públicas adequadas. Além disso, a visão retratada pelo marketing político é sempre estereotipada, como se toda favela fosse igual. E não é.

Coisa que político entende é de fazer promessas. As desse ano, são mais monumentais ainda. Por exemplo: como alguém vai gerar 50 mil empregos em pleno período de recessão da economia, que, ao que parece, vai se estender? Essa é uma promessa descabida, que não precisa ser cientista político ou economista para concluir o quanto será difícil colocá-la em prática nos próximos quatro anos. Não por maldade, mas por falta de condições mesmo. Isso tem que ser avaliado criticamente pelos eleitores. Afinal de contas, não dá para acreditar em quem promete o mar e não tem nem água para isso. É sempre muita promessa e pouca proposta.

Nos debates, o que se vê é a política infinita do ataque. Todos os candidatos seguindo a mesma gramática. É bem primária a forma como a política partidária se configurou no Brasil. Tem sempre os mesmos tipos: o candidato ridículo, o que apela para o emocional, o que se apega aos clichês, o engomadinho, robótico e leitor de “teleprompter”. Para piorar, não superam a argumentação de quem está brigando pela bola. Difícil…

Para que isso mude, é necessário ter uma sociedade mais instruída, que saiba os seus direitos e deveres. Lima Barreto afirmou: “O Brasil não tem povo, tem público”. Quando isso, de fato, vai deixar de ser uma verdade? É preciso ler, investigar, comparar e cobrar. Caso contrário, os discursos falsos vão se perpetuar e a política do Brasil vai continuar sendo a do “vou fazer” sem nunca ter feito.

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Televisão na Música: a crítica de Chico Buarque e dos Titãs

Artistas usam canções para criticar a TV, enfatizando a alienação causada por ela

A MPB e a crítica a um dos canhões da indústria cultural: a televisão. Imagens: reprodução da internet

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

A televisão sempre esteve no centro dos debates, para o bem ou para o mal. E a arte, com a sua capacidade de expressar valores de uma época, e até de prenunciar o que não é percebido num momento presente, é um instrumento eficaz para manifestar opiniões acerca de comportamentos e da indústria cultural. Foi o que Chico Buarque fez, em 1967, ao refletir sobre a caixinha mágica que completou 70 anos há um mês. O artista carioca, que nasceu seis anos antes da chegada da TV no Brasil, fez uma crítica sobre ela através de um samba-canção lançado 17 anos após o feito de Assis Chateaubriand. A música A Televisão, de autoria do próprio Chico, que integra o disco Chico Buarque de Hollanda – Volume 2, o terceiro da carreira do artista, mostra o poder de alienação do objeto septuagenário.
Na obra, um narrador-onisciente conta a história de um “homem da rua” que, a princípio, resiste, mas, com o tempo, se rende à magia da televisão. O homem da rua, no contexto, é um boêmio, que é cooptado pela telinha. Na primeira estrofe do samba, a resistência do personagem em relação ao novo meio de comunicação fica bem evidente:
Na obra, um narrador-onisciente conta a história de um “homem da rua” que, a princípio, resiste, mas, com o tempo, se rende à magia da televisão. O homem da rua, no contexto, é um boêmio, que é cooptado pela telinha. Na primeira estrofe do samba, a resistência do personagem em relação ao novo meio de comunicação fica bem evidente:
O homem da rua
Fica só, por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa, não vai não
Ou seja: o homem prefere ficar só a acompanhar o entusiasmo da família diante da programação da TV. Para um boêmio, ficar sem companhia é um teste de fogo. Vale ressaltar que, por muito tempo, algumas famílias tinham o hábito de se reunir diante da televisão para acompanhar os seus programas. Nesse sentido, as reuniões serviam como uma prática de lazer. A segunda estrofe complementa a primeira e justifica o motivo pelo qual o homem não vai para casa:
Em casa, a roda
Já mudou, que a moda muda
A roda é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão
Em casa, todos estão hipnotizados e mudos. Ninguém se comunica. “A roda é triste/A roda é muda”. Quem reina é a televisão. Aqui, Chico consegue trazer uma imagem emblemática para o que é cantado. Fazendo uma associação com os dias de hoje, é possível substituir a palavra “televisão” por “smartphone”. Além disso, quando fala que “a roda já mudou, que a moda muda”, se refere aos diferentes públicos que acompanham a programação. Alguns atrações são mais voltadas para os adultos, outras para crianças e adolescentes. Dessa forma, a audiência  vai mudando. Toda hora é uma moda, um programa diferente, para um público diferente.
Até a lua, em vão, tenta chamar a atenção dos telespectadores:
No céu, a lua
Surge grande e muito prosa
Dá uma volta graciosa
Pra chamar as atenções
 
O homem da rua
Que da lua está distante
Por ser nego bem falante
Fala só com seus botões
Chico, de forma genial, traz o verso “Fala só com seus botões”, mostrando que o homem da rua está tão isolado quanto quem está em casa, falando com os botões da TV. E o verso é propositalmente ambíguo: o homem fala “sozinho com os seus botões” e fala “somente com os seus botões”. Nas estrofes seguintes, a crítica ao fato de a TV mudar os hábitos e substituir algumas práticas culturais:
O homem da rua
Com seu tamborim calado
Já pode esperar sentado
Sua escola não vem não
 
A sua gente
Está aprendendo humildemente
Um batuque diferente
Que vem lá da televisão
E a lua, como elemento da natureza, insiste em chamar a atenção: muda de fase, evolui, mas não é percebida nem pelo homem da rua, pois “não estava no programa” (outra ambiguidade!):
No céu, a lua
Que não estava no programa
Cheia e nua, chega e chama
Pra mostrar evoluções
 
O homem da rua
Não percebe o seu chamego
E por falta doutro nego
Samba só com seus botões
Nestas estrofes, Chico fala da alienação de forma mais contumaz. É a TV interferindo nas relações humanas e fazendo até com que a vida pare diante dela:
Os namorados
Já dispensam seu namoro
Quem quer riso, quem quer choro
Não faz mais esforço não
 
E a própria vida
Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida
Que vem lá da televisão
O homem da rua, enfim, é vencido e vai ligar os botões da TV. A máquina dominou o homem.
O homem da rua
Por ser nego conformado
Deixa a lua ali de lado
E vai ligar os seus botões
 
No céu, a lua
Encabulada e já minguando
Numa nuvem se ocultando
Vai de volta pros sertões
A seguir, ouça o samba de Chico.

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Em 1985, com três anos de vida, foi a vez da banda Titãs criticar a televisão. Contudo, a crítica do grupo paulistano foi muito mais ácida que a de Chico. Tanto que Lulu Santos, um dos produtores do disco Televisão (o segundo da carreira do grupo), que traz a canção homônima, ponderou a presença dela no álbum. “Dizia-se atingido pela canção de Arnaldo AntunesMarcelo Fromer e Tony Bellotto, cujos versos não poderiam ser mais diretos: ‘É que a televisão me deixou burro, muito burro demais/E agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais‘. Lulu alegava que também dependia da TV e que a música poderia abortar o sucesso do LP na mídia. Mas os Titãs estavam decididos a não abrir mão da faixa”, afirma Natan Barros Pereira, em seu Trabalho de Conclusão de Curso defendido em 2010, na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e intitulado “Ó, Cride! Fala pra mãe que o discurso anticonsumismo dos Titãs os capturam [sic]: Análise do álbum Televisão. O fato é que o receio de Lulu não se confirmou. A música fez bastante sucesso e a banda se apresentou em diversos programas de TV.

Contudo, quando a gente analisa a letra, a tendência é concordar com Lulu, que, em 2017, regravou a música com um arranjo totalmente diferente do original. Os dois primeiros versos da canção já prenunciavam o que estava por vir:
A televisão me deixou burro, muito burro demais
Agora, todas coisas que eu penso me parecem iguais
Aí está uma crítica à massificação e a uma padronização de comportamento estimulado pelos programas de TV. O eu lírico denuncia que já não reflete sobre nada que vê e se assume vítima da globalização. Os dois versos seguintes abordam a alienação do indivíduo, que, em primeira pessoa, fala de sua própria vida com o advento da televisão:
O sorvete me deixou gripado pelo resto da vida
E, agora, toda noite quando deito é: “Boa noite, querida”.
 
O “Boa noite, querida” pode ter duas interpretações: a primeira, como se o sujeito fosse tão manipulado pela TV que a considera como uma pessoa, membro da família. É aquela pessoa que responde ao “boa noite” dos apresentadores de jornal, tendo a falsa impressão de uma companhia; a segunda, é o eu lírico reproduzindo aquilo que vê na TV, o comportamento visto como ideal. Então, antes de dormir, tem que se cumprir esse ritual de dar boa noite. A citação do sorvete remete ao consumismo exagerado de algo que a TV anunciou e considerou como bom.
No refrão, os Titãs utilizam o bordão do personagem Pacífico, interpretado por Ronald Golias no humorístico A Praça da Alegria (embrião de A Praça é Nossa), que estreou em 1956,  na TV Paulista:
Ô, Cride, fala pra mãe!
Que eu nunca li num livro que um espirro fosse um vírus sem cura
Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!
Ô, Cride, fala pra mãe!
 
Cride é o apelido de Euclides Gomes dos Santos, amigo de infância de Golias. O verso “Que eu nunca li num livro que um espirro fosse um vírus sem cura” complementa o crédito dado à TV quando o eu lírico diz “O sorvete me deixou gripado pelo resto da vida”É o pensamento de que tudo que é veiculado na TV, é verdade. Os Titãs mostram um sujeito que vive prostrado diante do objeto e o associam a um burro. De fato!
A mãe diz pra eu fazer alguma coisa, mas eu não faço nada
A luz do sol me incomoda, então deixa a cortina fechada
É que a televisão me deixou burro, muito burro demais
E, agora, eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais
 
O personagem está tão hipnotizado pela televisão que não desgruda da tela, a ponto de não fazer nada. “Esse menino passa o dia todo assistindo. Vai procurar alguma coisa para fazer”, diria a mãe dele. O próprio eu lírico tem consciência do efeito nocivo desse comportamento. O agressivo verso “E, agora, eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais” confirma isso. De acordo com a música, a televisão aprisiona e não faz pensar, ter criticidade.
No final, o poder da televisão fica tão evidenciado, que o eu lírico afirma:
Ô, Cride, fala pra mãe
Que tudo que a antena captar, meu coração captura
Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!
Ô, Cride, fala pra mãe!
Tudo que passa na TV, passa a fazer parte da vida do personagem. Ele crê em tudo! Se deu na TV, é verdade. Há uma passividade diante do que se vê. O cara foi capturado. Abaixo, ouça Televisão.

As duas músicas são pontos de vistas que, obviamente, devem ser considerados. “Assim caminha a humanidade”: com percepções diferentes sobre as coisas. A crítica é sempre importante e faz crescer. Que a TV dos próximos setenta anos não repita os erros do passado e seja ainda mais interessante.

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Série “Sementes da Educação” mostra práticas inovadoras da educação pública do Brasil

 Lançada em 2018, produção documenta experiências que contribuem para uma educação pública de qualidade

Sementes da Educação: para “semear, inspirar transformações” na educação pública do Brasil. Foto: divulgação

Por Raulino Júnior

Já imaginou se, no Brasil, tivesse uma escola rural que associasse a prática do campo com os conteúdos das disciplinas formais e os pais dos estudantes fossem parceiros desse processo? E uma outra que usasse como método alguns ciclos de formação humana, com base nas fases de vida dos educandos? E um instituto de educação que desse liberdade para cada estudante montar a sua própria grade curricular? Já pensou numa escola com proposta pluricultural, focada na arte e na valorização da cultura ancestral indígena e africana? E numa universidade que estimulasse a inclusão e a interdisciplinaridade? Pensou?! Então, fique feliz, porque isso tudo existe em território nacional e foi documentado na série Sementes da Educação, pela equipe da Oz Produtora, de São Paulo. Com 13 episódios de 26 minutos, a produção audiovisual tem como objetivo mostrar a potencialidade da educação pública, evidenciando algumas experiências que, mesmo diante das dificuldades, conseguem manter a qualidade do processo de ensino e de aprendizagem.
A série foi realizada com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), vinculado à Agência Nacional do Cinema (ANCINE), e integra a programação do canal CINEBRASiLTV. Contudo, pode ser vista, gratuitamente, na plataforma Videocamp. Para isso, a pessoa interessada em assistir deve fazer um cadastro. Lá, está disponível toda a primeira temporada da série, cujas gravações foram feitas em 2016 e o lançamento em 2018. Como protagonistas, instituições do Ceará, Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro.
Agora, prestes a estrear a segunda temporada, Hygor Amorim (diretor geral e criador da série) e Recy Cazarotto (produtora executiva e codiretora) concederam entrevista ao Desde e falaram sobre as novidades da produção, os desafios e os caminhos para, na opinião deles, termos uma educação pública de mais qualidade. Confira a seguir. As entrevistas foram feitas por e-mail.
Hygor Amorim é graduado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), fundador da Oz Produtora, que atua no mercado desde 2002, empreendedor em startup, criador e diretor da série de animação infantil Mytikah – O livro dos heróis. Hygor estudou em escolas públicas e particulares, em Minas Gerais e em São Paulo.

Hygor Amorim: “O ato de inovar não está intrinsicamente ligado à recursos digitais como muitos pensam”. Foto: Ederson Guilherme Antonio Silva

Desde que eu me entendo por gente: De onde vem o seu interesse por educação e pela escola pública?
 
Hygor Amorim: Aprendi com meus pais a importância da educação. Entendendo que no Brasil temos mais de 80% dos alunos do ensino básico na escola pública, é por ela que temos melhores possibilidades de futuro para as novas gerações. 
Desde: A série Sementes da Educação foi criada por você. Como e por que ela foi pensada?
 
HA: Na Oz, acreditamos que o audiovisual muda o mundo. Entendemos que o processo de mudança, para melhor, passa pela transformação da educação. Dessa forma, dedicamos nossos projetos a esse tema, fazendo nossa parte ao distribuir conteúdos que inspirem as transformações tão necessárias. 
Desde:O critério estabelecido para escolher as instituições que participam é o fato de terem práticas inovadoras. Contudo, como vocês chegaram a cada instituição? Houve abertura de inscrições?
 
HA: Convidamos especialistas em educação para participar desse processo, reunimos centenas de exemplos de escolas inovadoras e realizamos a seleção final, incluindo critérios de diversidade regional, faixa etária dos alunos e também em relação ao relato inovador e contexto onde a transformação ocorreu. 
Desde: Noque difere a segunda temporada da primeira?
 
HA: A segunda temporada tem um recorte temático voltado para o impacto das escolas além dos muros, o papel da comunidade, as redes, a integração entre os saberes da escola e da comunidade local. 
Desde: Na Geniuscon.2018, você disse que a série é dedicada a todas as crianças do Brasil, que, sabemos, serão responsáveis pelo futuro do país. Para você, que documentou experiências de instituições que fazem acontecer mesmo diante de uma realidade, às vezes, complexa, o que falta para que a nossa educação pública seja completamente de qualidade e contribua para que os estudantes possam sonhar com um futuro melhor? 
 
HA: Essa é uma excelente pergunta e também muito complexa. Acredito que são diversos fatores que, somados, farão a diferença na transformação da nossa educação pública para o nível necessário e desejado. Entre eles, estão: valorização dos educadores, foco na autonomia do estudante, quebra de paradigma sobre o modelo educacional, mudança do modelo educacional falido atual para um novo estágio, onde as interações colocam os alunos e seus desafios no centro do processo de descobertas e aprendizagem, ressignificação do aprendizado. Enfim, é um processo de transição necessário, que tornará a escola um momento desejado pelos estudantes.

Registro dos bastidores da gravação do episódio 13, da segunda temporada, na Escola Municipal Waldir Garcia, em Manaus (AM). Foto: Amanda Castro

Desde: Como uma instituição de educação pode inovar, mesmo com poucos recursos?
 
HA: O ato de inovar não está intrinsicamente ligado à recursos digitais como muitos pensam e, sim, voltado para mudanças nas relações humanas. Muitas vezes criamos soluções e inovações diante dos desafios e obstáculos, a velha relação entre crises e oportunidades. No Brasil, não será diferente, temos um senso de urgência claro para a necessidade de transformação da educação. O importante é dar o primeiro passo, criar um pequeno grupo de pessoas com intenção de gerar a mudança, estudar exemplos, aplicar, considerando sempre o seu contexto e aprender com os resultados. É um ciclo contínuo de hipóteses, testes e aprendizados onde cada escola pode encontrar seu caminho transformador. 
 
Desde: Qual a importância da integração da escola com a comunidade da qual ela faz parte para o sucesso da prática pedagógica?
 
HA: São vários benefícios obtidos por essa integração, fazendo uma referência a Paulo Freire, uma das maiores referências de pensadores da educação, ao conectar as famílias (comunidade) à escola, trazemos o conceito da problematização, onde o afeto, acolhimento e amor passam a ser parte do processo de aprendizagem e evolução. Os desafios das comunidades passam a ser parte do processo de cocriação dos aprendizados e evolução social. O que temos hoje é a educação bancária, conceito também cunhado por Freire, que busca eliminar a capacidade crítica dos estudantes e os acomoda à realidade. 
 
Desde: É uma pergunta retórica: por que o nome Sementes da Educação?
 
HA: Pelo significado de semear, inspirar transformações através dos exemplos apresentados na série. 
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Recy Cazarotto é formada em Produção Executiva, pela Academia Internacional de Cinema; e em  Imagem e Som, pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Foi assistente de produção na 1º temporada da série Sementes da Educação e da série de animação infantil Mytikah – O livro dos heróis.

Recy Cazarotto: “As pessoas com os mesmos desejos e objetivos se atraem e fazem a mudança acontecer”. Foto: reprodução Oz Produtora

Desde que eu me entendo por gente: Como foi produzir uma série com uma temática tão importante? 
 
Recy Cazarotto: Para mim, pessoalmente falando, foi não só uma honra, pela relevância temática da série, como foi também uma oportunidade de crescimento profissional incrível. A segunda temporada de Sementes da Educação é minha primeira série como produtora executiva e também como codiretora de sete episódios. Está sendo uma dupla responsabilidade deliciosa de encarar. Quando enviei todos os episódios finalizados para o canal fazer a aprovação, bateu uma sensação indescritível de missão cumprida e de estar no caminho certo. O trabalho ainda não terminou. É preciso programar o lançamento com o canal, a partir da definição da data de estreia, e prestar contas do aporte financeiro para a ANCINE. Em paralelo, já estamos desenhando o recorte da terceira temporada para validar com o canal e recomeçar o processo de submissão do novo projeto à ANCINE, pois, enquanto aceitarem a série Sementes da Educação como um espelho da educação pública de qualidade, nós estaremos aqui produzindo novas temporadas para dar conta de registrar a quantidade de escolas e educadores incríveis que temos espalhados pelo Brasil.
Desde: Séries dessa natureza, muitas vezes, não interessam a órgãos federais de fomento. Como se deu o apoio da ANCINE?
RC: Não cabe à ANCINE analisar o mérito artístico e temático das obras e decidir ou não pelo apoio, a menos que os recursos destinados sejam através de editais específicos que deixem isso claro desde o início, o que não foi o caso das duas temporadas de Sementes da Educação. Em ambos os casos, a ANCINE financiou integralmente os projetos através do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), um fundo próprio, gerido pela Agência e que se alimenta através de impostos do próprio setor. Para esse financiamento acontecer, era preciso existir um projeto, ser avaliado em pareceres técnicos e orçamentários (não artísticos), e existir um contrato de licenciamento de janela de exibição entre a proponente (Oz Produtora) e um canal de televisão (CINEBRASiLTV). Dando tudo certo, o projeto é aprovado, financiado e tem até sete anos para devolver o recurso financeiro investido pelo FSA. As duas temporadas seguiram esse caminho.
Desde: Quais foram as dificuldades durante a produção? E as facilidades?
 
RC: As dificuldades da primeira temporada giraram em torno da inexperiência com esse tipo de produção. Por mais estrada que a Oz tivesse na época, esta era a primeira série produzida pela produtora nestas proporções. Outras dificuldades giraram em torno do orçamento, que era baixo para a ambição da série, e de agenda das escolas para marcar as diárias de gravação. As facilidades iam de encontro à sinergia da equipe entre si e com o propósito da Oz de produzir conteúdos com caráter educativo e inspiradores. Já para a segunda temporada, as dificuldades foram no sentido de aprovação do projeto, pois os avanços das avaliações técnicas da ANCINE demoravam cada vez mais para sair, e agora, durante a etapa de pós-produção que todos enfrentamos a pandemia de covid-19, não tivemos o trabalho totalmente paralisado, pois todas as gravações já haviam sido realizadas e o processo de pós-produção foi adaptado ao formato home office. Entretanto, mesmo com a adaptação, tivemos um atraso nas entregas para aprovação final do canal CINEBRASiLTV.

Equipe da Oz Produtora com especialistas nos bastidores da gravação do episódio 3 (segunda temporada), no Núcleo de Ação Educativa Descentralizada – Espaço Concórdia, em Campinas (SP). Foto: Amanda Castro

Desde: Você já se interessava por educação ou o interesse partiu depois da série?
 
RC: Venho construindo meu repertório sobre educação desde o final do ensino médio. Cresci em São Paulo e sempre estudei em escola pública, do ensino infantil ao superior, mas foi no 3º ano do ensino médio, tendo contato com alguns professores recém-contratados, que conheci a Rede Emancipa de Cursinhos Populares. Considero a Rede Emancipa como um divisor de águas na minha vida e sou extremamente grata a eles por transformarem minha visão sobre a educação pública, gratuita e de qualidade como um direito fundamental das pessoas e de total responsabilidade dos nossos governantes. Ter a oportunidade de, anos depois, trabalhar com duas temporadas de uma série que foca exatamente nesses temas, é não só um privilégio, como uma reafirmação pela luta a favor da educação pública brasileira de qualidade.
Desde: Vocês documentaram experiências positivas, inovadoras. Para você, o que faz essas experiências acontecerem, mesmo, muitas vezes, num contexto de dificuldades?
RC: Durante as gravações da segunda temporada da série, tive a oportunidade e privilégio de entrevistar o educador e pedagogo José Pacheco e ele disse uma frase que me marcou: “Escolas são pessoas. É preciso repetir: escolas são pessoas, não são muros, salas ou outros espaços”. Apesar de estar conhecendo muitas pessoas diferentes com a mesma paixão pela educação, quando ouvi essa frase foi como se tudo se encaixasse e passasse a fazer sentido. As pessoas com os mesmos desejos e objetivos se atraem e fazem a mudança acontecer. Não é fácil e a gente também registra isso na série, mas quando as pessoas certas se encontram e estão dispostas a comprar essa batalha, as mudanças acontecem. É preciso ter gente motivada a trilhar um mesmo caminho e, quanto mais gente, mais potência e inovação.
 
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Assista ao vídeo com o material promocional da primeira temporada da série

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Entre a Vitória e o Paraíso: os caminhos de Vagner de Alencar

Jornalista, escritor e mestre em educação que caminha entre a Bahia, São Paulo e o mundo

Vagner de Alencar: educação e comunicação para mudar o mundo. Foto: Ira Romão

Por Raulino Júnior

O filho mais velho de Osmilda e Valmir, irmão de WadilaUeslenDaniel e Daniele, nasceu em Vitória da Conquista, cresceu no povoado Cavada II, em Barra do Choça, e morou por mais de dez anos em Paraisópolis, considerado o maior bairro favelizado da cidade de São Paulo. Já foi para os Estados Unidos, Colômbia e Argentina. Contudo, questionado sobre qual é o seu lugar no mundo, não titubeia: “Meu lugar no mundo acho que é o mundo, ainda quero desbravá-lo mais e mais. Mas meu porto seguro sempre será o povoado na Bahia, onde cresci”. Vagner de Alencar Silva (“Embora eu raramente use o Silva”) é um ariano determinado e perseverante. Aos 33 anos, o baiano é escritor, jornalista (formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie), mestre e doutorando em Educação: História, Política, Sociedade (pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP), cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias (AMJP), projeto pioneiro que tem como missão “minimizar as lacunas de informação e contribuir para a desconstrução de estereótipos sobre as periferias da Grande São Paulo”, que completa uma década em novembro deste ano. Em 2011, com a pauta Educação para quê? Universos educativos desperdiçados em Paraisópolis, feita em parceria com Bruna Belazi, foi um dos vencedores do 3º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão. Em 2013, em outra parceria com Bruna, lançou o livro-reportagem Cidade do Paraíso – Há vida na maior favela de São Paulo, fruto do TCC do curso de Jornalismo. Ler e contar histórias sempre esteve presente na vida de Vagner. O ingresso no curso de Jornalismo potencializou ainda mais isso. “Eu sempre gostei de histórias, mas não imaginei que pudesse ser jornalistas, e sim professor. Como já fui e ainda quero. O Jornalismo meio que surgiu por acaso, quase como um devaneio. Eu já estava estudando Letras quando, com a mesma nota do Enem, tentei outros cursos por meio do Prouni. Jornalismo foi a primeira opção, fui aprovado no Mackenzie, então decidi migrar. A melhor decisão”, explica. O amor pelas letras pode ser lido nas crônicas que escreve no Medium. “Ainda vou escrever um livro de crônicas com histórias da Bahia chamado ‘O pé de angelim’, que é a árvore na qual minha mãe foi sepultada. O valor simbólico por si só já diz tudo”. No texto, Vagner narra parte da história da família e a morada de três vida no pé de angelim, que fica no quintal da casa de seu avô, em Barra do Choça. “É o texto mais bonito que já escrevi”

Jornalismo das Periferias

Vagner (também) de Paraisópolis. Registro feito por Anderson Meneses, em 2017

Ser agente de transformação social é uma premissa que acompanha Vagner em todos os projetos que atua. A Agência Mural é um deles e simboliza isso de forma contundente. Nela, junto com uma equipe, contribui para amplificar vozes de moradores das periferias. “Ter crescido sem ter espelhos para me inspirar foi difícil. Costumo dizer que hoje fico feliz em poder ser esse reflexo na vida de crianças e jovens da Bahia, da zona rural onde nasci, até mesmo das favelas de São Paulo. Se eu acreditava não ter uma missão na Terra, acho que ela já existe”. A AMJP nasceu de um curso de jornalismo cidadão ministrado pelo jornalista Bruno Garcez, que, na época, vivia em Londres e ganhou uma bolsa  de um instituto para trabalhar o tema em São Paulo. Após o curso, os jovens que participaram (cerca de 20 pessoas), com ajuda de um jornalista que trabalhava na Folha de S. Paulo, lançaram o blog Mural, hospedado no site do periódico, em novembro de 2010. Cinco anos mais tarde, lançaram, informalmente, a Agência Mural. Além de Vagner, Izabel MoiAnderson MenesesPaulo Talarico e Cíntia Gomes dirigem a organização.
De acordo com Vagner, a Mural mostra as periferias como elas são: “O noticiário sempre foi enviesado, com pautas estereotipadas, mostrando as periferias como algozes da cidade, violentas ou com o estigma de coitadinhas. Não nos sucumbimos ao terror. Ao contrário, mostramos as periferias como elas são: com seus problemas ligados à falta de infraestrutura e serviços, e as potencialidades que nelas existem, seja pelos moradores, por iniciativas locais etc.”. A Agência tem mais de 50 muralistas, como são identificados os correspondentes. Para atuar como tal, basta ser morador de periferia, ter interesse ou o mínimo de habilidade com comunicação. E de quem foi a ideia do nome? “O nome veio do Bruno, o cara que ministrou o curso em 2010: Mural Brasil. Daí, deixamos apenas Mural. Não há um sentido próprio, mas nós costumamos dizer que nos inspiramos na Revolução Muralista, uma revolução de artistas mexicanos, que pintaram muros no país como forma de protesto”.

O pesquisador e o cidadão do mundo

Vagner de Alencar. Foto: reprodução do Instagram

Vagner e a família deixaram a Bahia no fim dos anos 80. “A primeira favela na qual moramos foi Jardim Edite, perto da Rede Globo. Ela foi desapropriada e voltamos à Bahia. Alguns parentes migraram para Paraisópolis. Anos mais tarde, por conta do câncer de minha mãe, voltamos a São Paulo, dessa vez, para Paraisópolis, já que por lá tínhamos conhecidos. A minha história com Paraisópolis começa em 1995, onde vivi, em anos alternados, por mais de uma década”. E, de lá, partiu para o mundo: Colômbia (a passeio), Argentina (convidado para participar da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires) e Estados Unidos (representou o Brasil em um intercâmbio de jornalistas considerados líderes mundiais, numa conexão com outros 20 profissionais de todo o mundo). Na pesquisa de doutorado, faz uma investigação, na perspectiva histórica, comparando o fracasso escolar no Brasil, Argentina e Espanha. Para ele, a maior fragilidade da educação escolar brasileira vem da falta de visão dos governantes. “A maior fragilidade está ainda em os governantes não entenderem (talvez porque, infelizmente, este seja também um projeto de governo) que só a educação de qualidade transforma. Que ela é quem permite que jovens, de fato, entendam suas potencialidades para refletir, questionar, reivindicar. A falta de investimento (de recursos, formação etc.) é, para mim, o grande entrave para a transformação do país; pois, sem educação, não há como pensar para criticar, transformar, exigir”.
Vagner é o cidadão que está envolvido com várias causas e em muitos projetos. Requisitado, responde se tem facilidade de falar “não” para alguma proposta: “Para quem vem de uma vida de muitos ‘nãos’, até mesmo de coisas básicas (um brinquedo, um alimentado específico), você vai aceitando os ‘sins,’ justamente para cumprir essas faltas ou por conta delas. Hoje, felizmente, já posso (embora com muita dificuldade) dizer alguns ‘nãos’. É um exercício. Mas sou esse ser que (ainda) aceita muita coisa, porque todas são muito bacanas”. Vagner é o jornalista que admira Caco Barcellos e Maju Coutinho; o cronista que ama Nelson Rodrigues e Antonio Prata; o educador que faz reverência à Denise Paiero, professora, orientadora e “padrinha”, e a Paulo Freire. Vagner, como o pé de angelim e como diz a música popular, é “uma árvore bonita”.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

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Canais de Vagner de Alencar nas redes sociais digitais:
 
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Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Vagner de Alencar
Data da entrevista (feita por e-mail): 4/10/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
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