Lima Barreto e seu olhar contemplativo: crítica acima de tudo
Lima Barreto é um dos mais inspiradores e geniais escritores que o Brasil já teve. Caso alguém duvide disso, uma passada de olho nas suas crônicas, só para dar um exemplo de parte da sua produção, faz a dúvida ir para o espaço. O carioca, que nasceu sete anos antes da
Abolição da Escravatura (13 de maio de 1881) e morreu no ano da
Semana de Arte Moderna (1922), fazia um retrato contundente da sociedade da época nos seus textos. Com olhar apurado, irônico e debochado, Lima conseguiu desnudar a hipocrisia daquele Rio do início do século XX nas crônicas que deixou para a posteridade. Algumas merecem destaque, como
A Polícia Suburbana, de 1914 (
“Os policiais suburbanos têm toda a razão. Devem continuar a dormir. Eles, aos poucos, graças ao calejamento do ofício, se convenceram de que a polícia é inútil. Ainda bem”),
As Enchentes, de 1915 (
“Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social”),
Elogio da Morte, de 1918 (
“A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de independência; ela só quer acompanhadores de procissão…”, “Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas”) e
Não as Matem, de 1915 (
“Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor. Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento. Deixem as mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus!”). Ler Lima Barreto não é apenas ter contato com uma literatura social, criativa e política, é ler o Brasil de ontem e, infelizmente, ainda o de hoje. Mesmo passando por dificuldades e sofrendo todo tipo de exclusão, Lima conseguiu sobrepujar tudo isso e ser farol. Para sempre.
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Dias Gomes critica a Igreja Católica em peça de 1966
Dias Gomes, assim como Lima Barreto, descreveu o Brasil de forma muito peculiar, com críticas e humor. O Pagador de Promessas (1960) atesta isso e O Santo Inquérito (1966) também. A peça critica a Igreja Católica, destacando a violência da Inquisição e mostrando como a força religiosa pode fazer uma pessoa se sentir culpada, mesmo sem culpa. Branca Dias, a protagonista, prova isso na pele, ao ser punida por algo que não sabe, porque não cometeu nenhum ato que justificasse o seu julgamento. Padre Bernardo representa um líder religioso típico: manipulador e sempre cheio de razão. Contudo, Dias Gomes ultrapassa a dicotomia da mocinha e do vilão, compondo uma Branca altiva e debochada. Claro que, muitas vezes, ela cai na ingenuidade. Isso dá frescor à história, tornando a dramaturgia ainda mais interessante. O baiano, nascido em Salvador, em 1922 (ano da morte de Lima), sabia prender o leitor com as suas histórias. A leitura de O Santo Inquérito faz a gente querer virar a página o tempo todo, para saber as emoções que virão e como a injustiça com Branca e sua família vai acabar. É uma pena que o final reflete muito a realidade. A lei dos homens, muitas vezes, vence. “Até quando as fogueiras reais ou simplesmente morais (estas não menos cruéis) serão usadas para eliminar aqueles que teimam em fazer uso da liberdade de pensamento?”, questiona Dias Gomes numa das passagens do texto.
Referência:
GOMES, Dias. O santo inquérito. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. Disponível em: <http://escoladacrianca.com.br/ws/wp-content/uploads/2017/03/dias-gomes-o-santo-inquerito.pdf>. Acesso em: 20 maio 2020.
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Auto da Barca do Inferno virou clássico
Auto da Barca do Inferno (1517), do dramaturgo português Gil Vicente, é uma obra que caracteriza muito bem o teatro de tipos, aquele em que os personagens reúnem características mais evidentes de determinadas classes sociais. Em geral, eles não têm uma personalidade formada, determinante. Vicente narra uma história que tem como intuito moralizar, mas que mostra que ninguém está tão distante de fazer coisas ruins e de ter atitudes reprováveis. É um teatro bem humano. As pessoas morrem e chegam a um lugar em que tem duas barcas, uma comandada pelo Diabo (que leva para o Inferno) e outra pelo Anjo (a que vai para o Céu). Obviamente, ninguém quer ir para o Inferno. É aí que Gil Vicente deita e rola para criticar os costumes: traição, falsidade, ganância. O maniqueísmo que a obra traz não é bobo. Mostra o trânsito entre o bom e o mau, natural a todo ser humano. A narrativa não é tão empolgante. É, inclusive, maçante em alguns momentos, por ter ações muito repetitivas, que não desafiam a expectativa do leitor. Virou clássico e isso não se explica.
Referência:
VICENTE, Gil. Auto da barca do Inferno. Luso Livros. Disponível em: <https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1901197/mod_resource/content/1/Auto%20da%20Barca%20do%20Inferno%20%281517%29%2C%20de%20Gil%20Vicente.pdf>. Acesso em: 20 maio 2020.