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Discurso de favela e promessas monumentais: o pleito de 2020 e as práticas de 1500

Imagem: reprodução do site do jornal A Plateia

Por Raulino Júnior ||Opinião de Segunda||

Eleição que é eleição tem que ter enganação. Isso poderia ser um slogan, mas não é. É só uma percepção mesmo. No próximo dia 15 de novembro, mais de 147 milhões de brasileiros vão escolher prefeitos e vereadores, em 5.569 municípios, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Para isso acontecer de forma responsável, é preciso ficar bem atento a várias questões, inclusive ao marketing político de cada candidato. Gente que nunca foi favela está usando tal discurso para se eleger. Você não vai cair nessa, não é? Estamos em 2020 e não podemos mais aceitar práticas eleitoreiras de 1500.

Pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a favela, ou para ser mais fiel ao termo que é utilizado pelo órgão desde 2010, o aglomerado subnormal “é uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação”. Dizer que é favela é bem diferente de ser favela. Se o candidato não vive essa realidade, não pode dizer que é favela, porque não é. O uso adjetivado do termo, já incorporado pela linguística, é passarela de oportunismo em período de eleição. Muita gente desfila, busca os flashes e quer associação com o lugar que carece de políticas públicas adequadas. Além disso, a visão retratada pelo marketing político é sempre estereotipada, como se toda favela fosse igual. E não é.

Coisa que político entende é de fazer promessas. As desse ano, são mais monumentais ainda. Por exemplo: como alguém vai gerar 50 mil empregos em pleno período de recessão da economia, que, ao que parece, vai se estender? Essa é uma promessa descabida, que não precisa ser cientista político ou economista para concluir o quanto será difícil colocá-la em prática nos próximos quatro anos. Não por maldade, mas por falta de condições mesmo. Isso tem que ser avaliado criticamente pelos eleitores. Afinal de contas, não dá para acreditar em quem promete o mar e não tem nem água para isso. É sempre muita promessa e pouca proposta.

Nos debates, o que se vê é a política infinita do ataque. Todos os candidatos seguindo a mesma gramática. É bem primária a forma como a política partidária se configurou no Brasil. Tem sempre os mesmos tipos: o candidato ridículo, o que apela para o emocional, o que se apega aos clichês, o engomadinho, robótico e leitor de “teleprompter”. Para piorar, não superam a argumentação de quem está brigando pela bola. Difícil…

Para que isso mude, é necessário ter uma sociedade mais instruída, que saiba os seus direitos e deveres. Lima Barreto afirmou: “O Brasil não tem povo, tem público”. Quando isso, de fato, vai deixar de ser uma verdade? É preciso ler, investigar, comparar e cobrar. Caso contrário, os discursos falsos vão se perpetuar e a política do Brasil vai continuar sendo a do “vou fazer” sem nunca ter feito.

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Televisão na Música: a crítica de Chico Buarque e dos Titãs

Artistas usam canções para criticar a TV, enfatizando a alienação causada por ela

A MPB e a crítica a um dos canhões da indústria cultural: a televisão. Imagens: reprodução da internet

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

A televisão sempre esteve no centro dos debates, para o bem ou para o mal. E a arte, com a sua capacidade de expressar valores de uma época, e até de prenunciar o que não é percebido num momento presente, é um instrumento eficaz para manifestar opiniões acerca de comportamentos e da indústria cultural. Foi o que Chico Buarque fez, em 1967, ao refletir sobre a caixinha mágica que completou 70 anos há um mês. O artista carioca, que nasceu seis anos antes da chegada da TV no Brasil, fez uma crítica sobre ela através de um samba-canção lançado 17 anos após o feito de Assis Chateaubriand. A música A Televisão, de autoria do próprio Chico, que integra o disco Chico Buarque de Hollanda – Volume 2, o terceiro da carreira do artista, mostra o poder de alienação do objeto septuagenário.
Na obra, um narrador-onisciente conta a história de um “homem da rua” que, a princípio, resiste, mas, com o tempo, se rende à magia da televisão. O homem da rua, no contexto, é um boêmio, que é cooptado pela telinha. Na primeira estrofe do samba, a resistência do personagem em relação ao novo meio de comunicação fica bem evidente:
Na obra, um narrador-onisciente conta a história de um “homem da rua” que, a princípio, resiste, mas, com o tempo, se rende à magia da televisão. O homem da rua, no contexto, é um boêmio, que é cooptado pela telinha. Na primeira estrofe do samba, a resistência do personagem em relação ao novo meio de comunicação fica bem evidente:
O homem da rua
Fica só, por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa, não vai não
Ou seja: o homem prefere ficar só a acompanhar o entusiasmo da família diante da programação da TV. Para um boêmio, ficar sem companhia é um teste de fogo. Vale ressaltar que, por muito tempo, algumas famílias tinham o hábito de se reunir diante da televisão para acompanhar os seus programas. Nesse sentido, as reuniões serviam como uma prática de lazer. A segunda estrofe complementa a primeira e justifica o motivo pelo qual o homem não vai para casa:
Em casa, a roda
Já mudou, que a moda muda
A roda é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão
Em casa, todos estão hipnotizados e mudos. Ninguém se comunica. “A roda é triste/A roda é muda”. Quem reina é a televisão. Aqui, Chico consegue trazer uma imagem emblemática para o que é cantado. Fazendo uma associação com os dias de hoje, é possível substituir a palavra “televisão” por “smartphone”. Além disso, quando fala que “a roda já mudou, que a moda muda”, se refere aos diferentes públicos que acompanham a programação. Alguns atrações são mais voltadas para os adultos, outras para crianças e adolescentes. Dessa forma, a audiência  vai mudando. Toda hora é uma moda, um programa diferente, para um público diferente.
Até a lua, em vão, tenta chamar a atenção dos telespectadores:
No céu, a lua
Surge grande e muito prosa
Dá uma volta graciosa
Pra chamar as atenções
 
O homem da rua
Que da lua está distante
Por ser nego bem falante
Fala só com seus botões
Chico, de forma genial, traz o verso “Fala só com seus botões”, mostrando que o homem da rua está tão isolado quanto quem está em casa, falando com os botões da TV. E o verso é propositalmente ambíguo: o homem fala “sozinho com os seus botões” e fala “somente com os seus botões”. Nas estrofes seguintes, a crítica ao fato de a TV mudar os hábitos e substituir algumas práticas culturais:
O homem da rua
Com seu tamborim calado
Já pode esperar sentado
Sua escola não vem não
 
A sua gente
Está aprendendo humildemente
Um batuque diferente
Que vem lá da televisão
E a lua, como elemento da natureza, insiste em chamar a atenção: muda de fase, evolui, mas não é percebida nem pelo homem da rua, pois “não estava no programa” (outra ambiguidade!):
No céu, a lua
Que não estava no programa
Cheia e nua, chega e chama
Pra mostrar evoluções
 
O homem da rua
Não percebe o seu chamego
E por falta doutro nego
Samba só com seus botões
Nestas estrofes, Chico fala da alienação de forma mais contumaz. É a TV interferindo nas relações humanas e fazendo até com que a vida pare diante dela:
Os namorados
Já dispensam seu namoro
Quem quer riso, quem quer choro
Não faz mais esforço não
 
E a própria vida
Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida
Que vem lá da televisão
O homem da rua, enfim, é vencido e vai ligar os botões da TV. A máquina dominou o homem.
O homem da rua
Por ser nego conformado
Deixa a lua ali de lado
E vai ligar os seus botões
 
No céu, a lua
Encabulada e já minguando
Numa nuvem se ocultando
Vai de volta pros sertões
A seguir, ouça o samba de Chico.

******

Em 1985, com três anos de vida, foi a vez da banda Titãs criticar a televisão. Contudo, a crítica do grupo paulistano foi muito mais ácida que a de Chico. Tanto que Lulu Santos, um dos produtores do disco Televisão (o segundo da carreira do grupo), que traz a canção homônima, ponderou a presença dela no álbum. “Dizia-se atingido pela canção de Arnaldo AntunesMarcelo Fromer e Tony Bellotto, cujos versos não poderiam ser mais diretos: ‘É que a televisão me deixou burro, muito burro demais/E agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais‘. Lulu alegava que também dependia da TV e que a música poderia abortar o sucesso do LP na mídia. Mas os Titãs estavam decididos a não abrir mão da faixa”, afirma Natan Barros Pereira, em seu Trabalho de Conclusão de Curso defendido em 2010, na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e intitulado “Ó, Cride! Fala pra mãe que o discurso anticonsumismo dos Titãs os capturam [sic]: Análise do álbum Televisão. O fato é que o receio de Lulu não se confirmou. A música fez bastante sucesso e a banda se apresentou em diversos programas de TV.

Contudo, quando a gente analisa a letra, a tendência é concordar com Lulu, que, em 2017, regravou a música com um arranjo totalmente diferente do original. Os dois primeiros versos da canção já prenunciavam o que estava por vir:
A televisão me deixou burro, muito burro demais
Agora, todas coisas que eu penso me parecem iguais
Aí está uma crítica à massificação e a uma padronização de comportamento estimulado pelos programas de TV. O eu lírico denuncia que já não reflete sobre nada que vê e se assume vítima da globalização. Os dois versos seguintes abordam a alienação do indivíduo, que, em primeira pessoa, fala de sua própria vida com o advento da televisão:
O sorvete me deixou gripado pelo resto da vida
E, agora, toda noite quando deito é: “Boa noite, querida”.
 
O “Boa noite, querida” pode ter duas interpretações: a primeira, como se o sujeito fosse tão manipulado pela TV que a considera como uma pessoa, membro da família. É aquela pessoa que responde ao “boa noite” dos apresentadores de jornal, tendo a falsa impressão de uma companhia; a segunda, é o eu lírico reproduzindo aquilo que vê na TV, o comportamento visto como ideal. Então, antes de dormir, tem que se cumprir esse ritual de dar boa noite. A citação do sorvete remete ao consumismo exagerado de algo que a TV anunciou e considerou como bom.
No refrão, os Titãs utilizam o bordão do personagem Pacífico, interpretado por Ronald Golias no humorístico A Praça da Alegria (embrião de A Praça é Nossa), que estreou em 1956,  na TV Paulista:
Ô, Cride, fala pra mãe!
Que eu nunca li num livro que um espirro fosse um vírus sem cura
Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!
Ô, Cride, fala pra mãe!
 
Cride é o apelido de Euclides Gomes dos Santos, amigo de infância de Golias. O verso “Que eu nunca li num livro que um espirro fosse um vírus sem cura” complementa o crédito dado à TV quando o eu lírico diz “O sorvete me deixou gripado pelo resto da vida”É o pensamento de que tudo que é veiculado na TV, é verdade. Os Titãs mostram um sujeito que vive prostrado diante do objeto e o associam a um burro. De fato!
A mãe diz pra eu fazer alguma coisa, mas eu não faço nada
A luz do sol me incomoda, então deixa a cortina fechada
É que a televisão me deixou burro, muito burro demais
E, agora, eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais
 
O personagem está tão hipnotizado pela televisão que não desgruda da tela, a ponto de não fazer nada. “Esse menino passa o dia todo assistindo. Vai procurar alguma coisa para fazer”, diria a mãe dele. O próprio eu lírico tem consciência do efeito nocivo desse comportamento. O agressivo verso “E, agora, eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais” confirma isso. De acordo com a música, a televisão aprisiona e não faz pensar, ter criticidade.
No final, o poder da televisão fica tão evidenciado, que o eu lírico afirma:
Ô, Cride, fala pra mãe
Que tudo que a antena captar, meu coração captura
Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!
Ô, Cride, fala pra mãe!
Tudo que passa na TV, passa a fazer parte da vida do personagem. Ele crê em tudo! Se deu na TV, é verdade. Há uma passividade diante do que se vê. O cara foi capturado. Abaixo, ouça Televisão.

As duas músicas são pontos de vistas que, obviamente, devem ser considerados. “Assim caminha a humanidade”: com percepções diferentes sobre as coisas. A crítica é sempre importante e faz crescer. Que a TV dos próximos setenta anos não repita os erros do passado e seja ainda mais interessante.

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Série “Sementes da Educação” mostra práticas inovadoras da educação pública do Brasil

 Lançada em 2018, produção documenta experiências que contribuem para uma educação pública de qualidade

Sementes da Educação: para “semear, inspirar transformações” na educação pública do Brasil. Foto: divulgação

Por Raulino Júnior

Já imaginou se, no Brasil, tivesse uma escola rural que associasse a prática do campo com os conteúdos das disciplinas formais e os pais dos estudantes fossem parceiros desse processo? E uma outra que usasse como método alguns ciclos de formação humana, com base nas fases de vida dos educandos? E um instituto de educação que desse liberdade para cada estudante montar a sua própria grade curricular? Já pensou numa escola com proposta pluricultural, focada na arte e na valorização da cultura ancestral indígena e africana? E numa universidade que estimulasse a inclusão e a interdisciplinaridade? Pensou?! Então, fique feliz, porque isso tudo existe em território nacional e foi documentado na série Sementes da Educação, pela equipe da Oz Produtora, de São Paulo. Com 13 episódios de 26 minutos, a produção audiovisual tem como objetivo mostrar a potencialidade da educação pública, evidenciando algumas experiências que, mesmo diante das dificuldades, conseguem manter a qualidade do processo de ensino e de aprendizagem.
A série foi realizada com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), vinculado à Agência Nacional do Cinema (ANCINE), e integra a programação do canal CINEBRASiLTV. Contudo, pode ser vista, gratuitamente, na plataforma Videocamp. Para isso, a pessoa interessada em assistir deve fazer um cadastro. Lá, está disponível toda a primeira temporada da série, cujas gravações foram feitas em 2016 e o lançamento em 2018. Como protagonistas, instituições do Ceará, Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro.
Agora, prestes a estrear a segunda temporada, Hygor Amorim (diretor geral e criador da série) e Recy Cazarotto (produtora executiva e codiretora) concederam entrevista ao Desde e falaram sobre as novidades da produção, os desafios e os caminhos para, na opinião deles, termos uma educação pública de mais qualidade. Confira a seguir. As entrevistas foram feitas por e-mail.
Hygor Amorim é graduado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), fundador da Oz Produtora, que atua no mercado desde 2002, empreendedor em startup, criador e diretor da série de animação infantil Mytikah – O livro dos heróis. Hygor estudou em escolas públicas e particulares, em Minas Gerais e em São Paulo.

Hygor Amorim: “O ato de inovar não está intrinsicamente ligado à recursos digitais como muitos pensam”. Foto: Ederson Guilherme Antonio Silva

Desde que eu me entendo por gente: De onde vem o seu interesse por educação e pela escola pública?
 
Hygor Amorim: Aprendi com meus pais a importância da educação. Entendendo que no Brasil temos mais de 80% dos alunos do ensino básico na escola pública, é por ela que temos melhores possibilidades de futuro para as novas gerações. 
Desde: A série Sementes da Educação foi criada por você. Como e por que ela foi pensada?
 
HA: Na Oz, acreditamos que o audiovisual muda o mundo. Entendemos que o processo de mudança, para melhor, passa pela transformação da educação. Dessa forma, dedicamos nossos projetos a esse tema, fazendo nossa parte ao distribuir conteúdos que inspirem as transformações tão necessárias. 
Desde:O critério estabelecido para escolher as instituições que participam é o fato de terem práticas inovadoras. Contudo, como vocês chegaram a cada instituição? Houve abertura de inscrições?
 
HA: Convidamos especialistas em educação para participar desse processo, reunimos centenas de exemplos de escolas inovadoras e realizamos a seleção final, incluindo critérios de diversidade regional, faixa etária dos alunos e também em relação ao relato inovador e contexto onde a transformação ocorreu. 
Desde: Noque difere a segunda temporada da primeira?
 
HA: A segunda temporada tem um recorte temático voltado para o impacto das escolas além dos muros, o papel da comunidade, as redes, a integração entre os saberes da escola e da comunidade local. 
Desde: Na Geniuscon.2018, você disse que a série é dedicada a todas as crianças do Brasil, que, sabemos, serão responsáveis pelo futuro do país. Para você, que documentou experiências de instituições que fazem acontecer mesmo diante de uma realidade, às vezes, complexa, o que falta para que a nossa educação pública seja completamente de qualidade e contribua para que os estudantes possam sonhar com um futuro melhor? 
 
HA: Essa é uma excelente pergunta e também muito complexa. Acredito que são diversos fatores que, somados, farão a diferença na transformação da nossa educação pública para o nível necessário e desejado. Entre eles, estão: valorização dos educadores, foco na autonomia do estudante, quebra de paradigma sobre o modelo educacional, mudança do modelo educacional falido atual para um novo estágio, onde as interações colocam os alunos e seus desafios no centro do processo de descobertas e aprendizagem, ressignificação do aprendizado. Enfim, é um processo de transição necessário, que tornará a escola um momento desejado pelos estudantes.

Registro dos bastidores da gravação do episódio 13, da segunda temporada, na Escola Municipal Waldir Garcia, em Manaus (AM). Foto: Amanda Castro

Desde: Como uma instituição de educação pode inovar, mesmo com poucos recursos?
 
HA: O ato de inovar não está intrinsicamente ligado à recursos digitais como muitos pensam e, sim, voltado para mudanças nas relações humanas. Muitas vezes criamos soluções e inovações diante dos desafios e obstáculos, a velha relação entre crises e oportunidades. No Brasil, não será diferente, temos um senso de urgência claro para a necessidade de transformação da educação. O importante é dar o primeiro passo, criar um pequeno grupo de pessoas com intenção de gerar a mudança, estudar exemplos, aplicar, considerando sempre o seu contexto e aprender com os resultados. É um ciclo contínuo de hipóteses, testes e aprendizados onde cada escola pode encontrar seu caminho transformador. 
 
Desde: Qual a importância da integração da escola com a comunidade da qual ela faz parte para o sucesso da prática pedagógica?
 
HA: São vários benefícios obtidos por essa integração, fazendo uma referência a Paulo Freire, uma das maiores referências de pensadores da educação, ao conectar as famílias (comunidade) à escola, trazemos o conceito da problematização, onde o afeto, acolhimento e amor passam a ser parte do processo de aprendizagem e evolução. Os desafios das comunidades passam a ser parte do processo de cocriação dos aprendizados e evolução social. O que temos hoje é a educação bancária, conceito também cunhado por Freire, que busca eliminar a capacidade crítica dos estudantes e os acomoda à realidade. 
 
Desde: É uma pergunta retórica: por que o nome Sementes da Educação?
 
HA: Pelo significado de semear, inspirar transformações através dos exemplos apresentados na série. 
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Recy Cazarotto é formada em Produção Executiva, pela Academia Internacional de Cinema; e em  Imagem e Som, pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Foi assistente de produção na 1º temporada da série Sementes da Educação e da série de animação infantil Mytikah – O livro dos heróis.

Recy Cazarotto: “As pessoas com os mesmos desejos e objetivos se atraem e fazem a mudança acontecer”. Foto: reprodução Oz Produtora

Desde que eu me entendo por gente: Como foi produzir uma série com uma temática tão importante? 
 
Recy Cazarotto: Para mim, pessoalmente falando, foi não só uma honra, pela relevância temática da série, como foi também uma oportunidade de crescimento profissional incrível. A segunda temporada de Sementes da Educação é minha primeira série como produtora executiva e também como codiretora de sete episódios. Está sendo uma dupla responsabilidade deliciosa de encarar. Quando enviei todos os episódios finalizados para o canal fazer a aprovação, bateu uma sensação indescritível de missão cumprida e de estar no caminho certo. O trabalho ainda não terminou. É preciso programar o lançamento com o canal, a partir da definição da data de estreia, e prestar contas do aporte financeiro para a ANCINE. Em paralelo, já estamos desenhando o recorte da terceira temporada para validar com o canal e recomeçar o processo de submissão do novo projeto à ANCINE, pois, enquanto aceitarem a série Sementes da Educação como um espelho da educação pública de qualidade, nós estaremos aqui produzindo novas temporadas para dar conta de registrar a quantidade de escolas e educadores incríveis que temos espalhados pelo Brasil.
Desde: Séries dessa natureza, muitas vezes, não interessam a órgãos federais de fomento. Como se deu o apoio da ANCINE?
RC: Não cabe à ANCINE analisar o mérito artístico e temático das obras e decidir ou não pelo apoio, a menos que os recursos destinados sejam através de editais específicos que deixem isso claro desde o início, o que não foi o caso das duas temporadas de Sementes da Educação. Em ambos os casos, a ANCINE financiou integralmente os projetos através do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), um fundo próprio, gerido pela Agência e que se alimenta através de impostos do próprio setor. Para esse financiamento acontecer, era preciso existir um projeto, ser avaliado em pareceres técnicos e orçamentários (não artísticos), e existir um contrato de licenciamento de janela de exibição entre a proponente (Oz Produtora) e um canal de televisão (CINEBRASiLTV). Dando tudo certo, o projeto é aprovado, financiado e tem até sete anos para devolver o recurso financeiro investido pelo FSA. As duas temporadas seguiram esse caminho.
Desde: Quais foram as dificuldades durante a produção? E as facilidades?
 
RC: As dificuldades da primeira temporada giraram em torno da inexperiência com esse tipo de produção. Por mais estrada que a Oz tivesse na época, esta era a primeira série produzida pela produtora nestas proporções. Outras dificuldades giraram em torno do orçamento, que era baixo para a ambição da série, e de agenda das escolas para marcar as diárias de gravação. As facilidades iam de encontro à sinergia da equipe entre si e com o propósito da Oz de produzir conteúdos com caráter educativo e inspiradores. Já para a segunda temporada, as dificuldades foram no sentido de aprovação do projeto, pois os avanços das avaliações técnicas da ANCINE demoravam cada vez mais para sair, e agora, durante a etapa de pós-produção que todos enfrentamos a pandemia de covid-19, não tivemos o trabalho totalmente paralisado, pois todas as gravações já haviam sido realizadas e o processo de pós-produção foi adaptado ao formato home office. Entretanto, mesmo com a adaptação, tivemos um atraso nas entregas para aprovação final do canal CINEBRASiLTV.

Equipe da Oz Produtora com especialistas nos bastidores da gravação do episódio 3 (segunda temporada), no Núcleo de Ação Educativa Descentralizada – Espaço Concórdia, em Campinas (SP). Foto: Amanda Castro

Desde: Você já se interessava por educação ou o interesse partiu depois da série?
 
RC: Venho construindo meu repertório sobre educação desde o final do ensino médio. Cresci em São Paulo e sempre estudei em escola pública, do ensino infantil ao superior, mas foi no 3º ano do ensino médio, tendo contato com alguns professores recém-contratados, que conheci a Rede Emancipa de Cursinhos Populares. Considero a Rede Emancipa como um divisor de águas na minha vida e sou extremamente grata a eles por transformarem minha visão sobre a educação pública, gratuita e de qualidade como um direito fundamental das pessoas e de total responsabilidade dos nossos governantes. Ter a oportunidade de, anos depois, trabalhar com duas temporadas de uma série que foca exatamente nesses temas, é não só um privilégio, como uma reafirmação pela luta a favor da educação pública brasileira de qualidade.
Desde: Vocês documentaram experiências positivas, inovadoras. Para você, o que faz essas experiências acontecerem, mesmo, muitas vezes, num contexto de dificuldades?
RC: Durante as gravações da segunda temporada da série, tive a oportunidade e privilégio de entrevistar o educador e pedagogo José Pacheco e ele disse uma frase que me marcou: “Escolas são pessoas. É preciso repetir: escolas são pessoas, não são muros, salas ou outros espaços”. Apesar de estar conhecendo muitas pessoas diferentes com a mesma paixão pela educação, quando ouvi essa frase foi como se tudo se encaixasse e passasse a fazer sentido. As pessoas com os mesmos desejos e objetivos se atraem e fazem a mudança acontecer. Não é fácil e a gente também registra isso na série, mas quando as pessoas certas se encontram e estão dispostas a comprar essa batalha, as mudanças acontecem. É preciso ter gente motivada a trilhar um mesmo caminho e, quanto mais gente, mais potência e inovação.
 
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Assista ao vídeo com o material promocional da primeira temporada da série

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Entre a Vitória e o Paraíso: os caminhos de Vagner de Alencar

Jornalista, escritor e mestre em educação que caminha entre a Bahia, São Paulo e o mundo

Vagner de Alencar: educação e comunicação para mudar o mundo. Foto: Ira Romão

Por Raulino Júnior

O filho mais velho de Osmilda e Valmir, irmão de WadilaUeslenDaniel e Daniele, nasceu em Vitória da Conquista, cresceu no povoado Cavada II, em Barra do Choça, e morou por mais de dez anos em Paraisópolis, considerado o maior bairro favelizado da cidade de São Paulo. Já foi para os Estados Unidos, Colômbia e Argentina. Contudo, questionado sobre qual é o seu lugar no mundo, não titubeia: “Meu lugar no mundo acho que é o mundo, ainda quero desbravá-lo mais e mais. Mas meu porto seguro sempre será o povoado na Bahia, onde cresci”. Vagner de Alencar Silva (“Embora eu raramente use o Silva”) é um ariano determinado e perseverante. Aos 33 anos, o baiano é escritor, jornalista (formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie), mestre e doutorando em Educação: História, Política, Sociedade (pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP), cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias (AMJP), projeto pioneiro que tem como missão “minimizar as lacunas de informação e contribuir para a desconstrução de estereótipos sobre as periferias da Grande São Paulo”, que completa uma década em novembro deste ano. Em 2011, com a pauta Educação para quê? Universos educativos desperdiçados em Paraisópolis, feita em parceria com Bruna Belazi, foi um dos vencedores do 3º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão. Em 2013, em outra parceria com Bruna, lançou o livro-reportagem Cidade do Paraíso – Há vida na maior favela de São Paulo, fruto do TCC do curso de Jornalismo. Ler e contar histórias sempre esteve presente na vida de Vagner. O ingresso no curso de Jornalismo potencializou ainda mais isso. “Eu sempre gostei de histórias, mas não imaginei que pudesse ser jornalistas, e sim professor. Como já fui e ainda quero. O Jornalismo meio que surgiu por acaso, quase como um devaneio. Eu já estava estudando Letras quando, com a mesma nota do Enem, tentei outros cursos por meio do Prouni. Jornalismo foi a primeira opção, fui aprovado no Mackenzie, então decidi migrar. A melhor decisão”, explica. O amor pelas letras pode ser lido nas crônicas que escreve no Medium. “Ainda vou escrever um livro de crônicas com histórias da Bahia chamado ‘O pé de angelim’, que é a árvore na qual minha mãe foi sepultada. O valor simbólico por si só já diz tudo”. No texto, Vagner narra parte da história da família e a morada de três vida no pé de angelim, que fica no quintal da casa de seu avô, em Barra do Choça. “É o texto mais bonito que já escrevi”

Jornalismo das Periferias

Vagner (também) de Paraisópolis. Registro feito por Anderson Meneses, em 2017

Ser agente de transformação social é uma premissa que acompanha Vagner em todos os projetos que atua. A Agência Mural é um deles e simboliza isso de forma contundente. Nela, junto com uma equipe, contribui para amplificar vozes de moradores das periferias. “Ter crescido sem ter espelhos para me inspirar foi difícil. Costumo dizer que hoje fico feliz em poder ser esse reflexo na vida de crianças e jovens da Bahia, da zona rural onde nasci, até mesmo das favelas de São Paulo. Se eu acreditava não ter uma missão na Terra, acho que ela já existe”. A AMJP nasceu de um curso de jornalismo cidadão ministrado pelo jornalista Bruno Garcez, que, na época, vivia em Londres e ganhou uma bolsa  de um instituto para trabalhar o tema em São Paulo. Após o curso, os jovens que participaram (cerca de 20 pessoas), com ajuda de um jornalista que trabalhava na Folha de S. Paulo, lançaram o blog Mural, hospedado no site do periódico, em novembro de 2010. Cinco anos mais tarde, lançaram, informalmente, a Agência Mural. Além de Vagner, Izabel MoiAnderson MenesesPaulo Talarico e Cíntia Gomes dirigem a organização.
De acordo com Vagner, a Mural mostra as periferias como elas são: “O noticiário sempre foi enviesado, com pautas estereotipadas, mostrando as periferias como algozes da cidade, violentas ou com o estigma de coitadinhas. Não nos sucumbimos ao terror. Ao contrário, mostramos as periferias como elas são: com seus problemas ligados à falta de infraestrutura e serviços, e as potencialidades que nelas existem, seja pelos moradores, por iniciativas locais etc.”. A Agência tem mais de 50 muralistas, como são identificados os correspondentes. Para atuar como tal, basta ser morador de periferia, ter interesse ou o mínimo de habilidade com comunicação. E de quem foi a ideia do nome? “O nome veio do Bruno, o cara que ministrou o curso em 2010: Mural Brasil. Daí, deixamos apenas Mural. Não há um sentido próprio, mas nós costumamos dizer que nos inspiramos na Revolução Muralista, uma revolução de artistas mexicanos, que pintaram muros no país como forma de protesto”.

O pesquisador e o cidadão do mundo

Vagner de Alencar. Foto: reprodução do Instagram

Vagner e a família deixaram a Bahia no fim dos anos 80. “A primeira favela na qual moramos foi Jardim Edite, perto da Rede Globo. Ela foi desapropriada e voltamos à Bahia. Alguns parentes migraram para Paraisópolis. Anos mais tarde, por conta do câncer de minha mãe, voltamos a São Paulo, dessa vez, para Paraisópolis, já que por lá tínhamos conhecidos. A minha história com Paraisópolis começa em 1995, onde vivi, em anos alternados, por mais de uma década”. E, de lá, partiu para o mundo: Colômbia (a passeio), Argentina (convidado para participar da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires) e Estados Unidos (representou o Brasil em um intercâmbio de jornalistas considerados líderes mundiais, numa conexão com outros 20 profissionais de todo o mundo). Na pesquisa de doutorado, faz uma investigação, na perspectiva histórica, comparando o fracasso escolar no Brasil, Argentina e Espanha. Para ele, a maior fragilidade da educação escolar brasileira vem da falta de visão dos governantes. “A maior fragilidade está ainda em os governantes não entenderem (talvez porque, infelizmente, este seja também um projeto de governo) que só a educação de qualidade transforma. Que ela é quem permite que jovens, de fato, entendam suas potencialidades para refletir, questionar, reivindicar. A falta de investimento (de recursos, formação etc.) é, para mim, o grande entrave para a transformação do país; pois, sem educação, não há como pensar para criticar, transformar, exigir”.
Vagner é o cidadão que está envolvido com várias causas e em muitos projetos. Requisitado, responde se tem facilidade de falar “não” para alguma proposta: “Para quem vem de uma vida de muitos ‘nãos’, até mesmo de coisas básicas (um brinquedo, um alimentado específico), você vai aceitando os ‘sins,’ justamente para cumprir essas faltas ou por conta delas. Hoje, felizmente, já posso (embora com muita dificuldade) dizer alguns ‘nãos’. É um exercício. Mas sou esse ser que (ainda) aceita muita coisa, porque todas são muito bacanas”. Vagner é o jornalista que admira Caco Barcellos e Maju Coutinho; o cronista que ama Nelson Rodrigues e Antonio Prata; o educador que faz reverência à Denise Paiero, professora, orientadora e “padrinha”, e a Paulo Freire. Vagner, como o pé de angelim e como diz a música popular, é “uma árvore bonita”.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

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Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Vagner de Alencar
Data da entrevista (feita por e-mail): 4/10/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
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