"Adolescendo Solar", Cultura, Desde Então: análise de produtos culturais de outrora, Jornalismo Cultural, Resenha

Cara-pintada na Ditadura

Romance faz imersão em duas importantes épocas da história do Brasil

Obra mostra protagonismo estudantil na Ditadura e no Movimento Caras-Pintadas

Por Raulino Júnior||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||

Um adolescente de 16 anos, integrante do Movimento Caras-Pintadas, é transportado para o ano de 1969 e se depara com um Brasil assolado pela violência e desmandos da Ditadura Militar. Nesse contexto, vivencia situações semelhantes com as que estava acostumado nas manifestações de que fazia parte, se aproxima da luta armada e faz um paralelo entre o movimento estudantil de 1969 e de 1992. Além disso, observa as transformações sofridas na sua cidade [São Paulo] ao longo desse tempo. Esse é o enredo que amarra o excelente romance Carapintada (assim mesmo, tudo junto, por preferência do autor), de Renato Tapajós, que foi publicado pela primeira vez em 1993.

Com uma ficção muito realista, Tapajós consegue também transportar o leitor para duas importantes épocas da história do Brasil. Durante a leitura, fica perceptível o trabalho de pesquisa para trazer os fatos de cada período histórico à tona. No romance, que soa muito atual, a Ditadura é marcada pela violência e falta de humanidade peculiares a ela. Não há maquiagem na história. Tudo que a gente lê sobre esse período sombrio está lá. A personagem Kioko representa bem isso, porque foi perseguida e violentada pelos policiais do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), sendo pendurada no pau de arara e recebendo choque. Isso tudo para que ela entregasse o seu marido, que era chefe de uma organização contrária ao regime. Rodrigo, o protagonista do romance, representa muito bem os jovens do Movimento Caras-Pintadas: destemido, consciente de suas responsabilidades e cheio de vontade de transformar o país. Num dos trechos do romance, reflete: “…cada vez que alguém toma uma decisão, está sempre jogando com a própria vida”, p. 80.

Outra passagem curiosa do livro, e que parece um exercício de profecia de Tapajós, principalmente considerando os recentes acontecimentos políticos do Brasil, é quando ele, através de Rodrigo, já registra que tinha gente que não acreditava que esse período nefasto aconteceu. Na página 50, ao ouvir Kioko contar sobre tudo que sofreu, Rodrigo solta: “Tem um tio meu, irmão da minha mãe, que não acredita que houve tortura no Brasil”. Mais atual, impossível, não é? O tempo é um elemento importante dentro da narrativa, tanto que Rodrigo se atrapalha várias vezes, uma vez que está visitando o passado, mas já com noção de tudo que vai acontecer depois dali. E ele não revela ao novos amigos [estudantes que estão lutando contra o regime ditatorial] que voltou no tempo.

Carapintada é muito bom. É uma obra importante para introduzir os temas que aborda para o público adolescente. O teatro e o cinema poderiam prestar mais atenção nela e adaptar a história para os palcos e para as telonas. Diante de tudo que a gente viveu, com gente pedindo a volta da Ditadura e elegendo pessoas que já provaram que estão preocupadas apenas com o benefício próprio, essa questão se torna urgente.

Referência:

 TAPAJÓS, Renato. Carapintada. 9. ed. São Paulo: Ática, 2004.
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Política e educação sob a ótica de Paulo Freire

Em obra lançada em 1993, educador pernambucano mostra que todo ato é político e reverbera na prática pedagógica

Imagem: reprodução do site do Grupo Editorial Record

Por Raulino Júnior||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||

Num ano importante para a nossa democracia, é fundamental que nós, cidadãos, busquemos informações que nos ajudem a ter uma visão mais crítica das coisas que acontecem na sociedade. Nesse sentido, a leitura do livro Política e Educação, de Paulo Freire, é uma excelente sugestão. Na obra, além de falar da interface entre política e educação, Freire toca em questões que merecem reflexão diária por parte de professores, representantes políticos e demais pessoas preocupadas com o viver social.

O ato de educar é, essencialmente, político. Na obra, Paulo Freire fala de uma educação para a decisão e libertação. Não há nada mais político do que isso. Porque o autoritarismo não pode coexistir com a democracia. E, para reinventar o mundo, algo que perpassa por questões políticas, a educação é um fator crucial.

Freire afirma que “a leitura crítica do mundo se funda numa prática educativa crescentemente desocultadora de verdades. Verdades cuja ocultação interessa às classes dominantes da sociedade”, p. 11. Ocultar as verdades é uma das práticas mais nefastas no âmbito da representação política. Isso só pode ser combatido com informação. Não é por acaso que o Patrono da Educação Brasileira diz que “o ser humano jamais para de educar-se”, p 13.

Todo discurso é disputa e política. Ao refletir sobre discursos reacionários, Paulo Freire afirma: “É preciso mesmo brigar contra certos discursos pós-modernamente reacionários, com ares triunfantes, que decretam a morte dos sonhos e defendem um pragmatismo oportunista e negador da Utopia”, p. 17. Quantos movimentos sociais são esvaziados por ter pessoas que adotam esse tipo de postura? Freire emenda, na mesma página: “É possível vida sem sonho, mas não existência humana e História sem sonho”.

Recentemente, o Brasil foi tomado por uma onda de defensores de uma escola sem partido. Em 1993, quando a obra foi lançada, o educador pernambucano falava isto: “Não pode existir uma prática educativa neutra, descomprometida, apolítica. A diretividade da prática educativa que a faz transbordar sempre de si mesma e perseguir um certo fim, um sonho, uma utopia, não permite sua neutralidade. A impossibilidade de ser neutra não tem nada que ver com a arbitrária imposição que faz o educador autoritário a ‘seus’ educandos de suas opções”, p. 21. Ainda sobre autoritarismo, falando da relação entre educadores e educandos, diz: “Não vale um discurso bem articulado, em que se defende o direito de ser diferente e uma prática negadora desse direito”, p. 22. Tem que ter coerência entre o discurso e a prática.

Um dos capítulos mais interessantes do livro é o que trata sobre o direito de criticar. Para Freire, é impossível não ser criticado: “[…] é impossível estar no mundo, fazendo coisas, influenciando, intervindo, sem ser criticado”, p. 31. O escritor também fala que não se pode criticar aquilo que não se conhece. Por incrível que pareça, isso tem que ser dito, pois há pessoas que saem fazendo críticas de algo que não têm nenhuma referência. É uma atitude feita apenas para impressionar. Além disso, ainda tratando sobre a crítica, Freire afirma que há “frases feitas que se repetem com ares de enorme sabedoria”, p. 31-32. E arremata: “Não posso criticar por pura inveja ou por pura raiva ou para simplesmente aparecer”, p. 32. Muita gente precisa aprender isso.

Outro trecho interessante é quando o autor diz que ninguém nasce feito, que a gente não é, a gente está sendo… A nossa vivência nos forma e essa formação é infinita. Paulo Freire se coloca o tempo todo em avaliação e mostra a sua atitude política diante do mundo: “[…] uma das marcas mais visíveis de minha trajetória profissional é o empenho a que me entrego de procurar sempre a unidade entre a prática e a teoria”, p. 43.

Ser um ser político é interferir o tempo todo na dinâmica da sociedade. “Uma das condições necessárias para que nos tornemos um intelectual que não teme a mudança é a percepção e a aceitação de que não há vida na imobilidade”, p. 43. Essa é a lição que fica.

Referência:

 FREIRE, Paulo. Política e Educação. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
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Zezé Motta em prosa e versos

Biografia evidencia versatilidade artística e engajamento da atriz

Por Raulino Júnior ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||

Zezé Motta é uma das artistas mais versáteis do Brasil. Isso não é só uma afirmação clichê. É fato! E quem lê a biografia Zezé Motta: muito prazer, de autoria de Rodrigo Murat, constata isso. A obra integra a bem-sucedida Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que tem como objetivo “preservar a memória da cultura nacional e democratizar o acesso ao conhecimento”. A artista canta, produz, dubla, apresenta, milita e se reinventa sempre. Nascida em 27 de junho de 1944, em Campos dos Goytacazes, interior do Rio de Janeiro, Zezé é filha de Luiz Oliveira (músico) e Maria Elasir (costureira). O nome artístico foi uma sugestão de Marília Pêra, a quem ela considera madrinha artística. Antes, usava o nome de batismo: Maria José Motta.

A biografia é narrada pela própria Zezé, mas, logo no início, tem uma introdução de Rodrigo na qual ele destaca uma traço marcante da personalidade da atriz: o sorriso aberto, acolhedor e estimulante. Tanto que cunha o termo zezeterapia, para dizer o quanto o riso da artista passa tranquilidade para os amigos. Todos os capítulos do livro são abertos com versos da música popular brasileira. Músicas que Zezé canta e músicas feitas para ela, como Muito Prazer, de Rita Lee e Roberto de Carvalho.

Zezé e o seu emblemático sorriso. Foto: reprodução do livro

É claro que, infelizmente, por Zezé sem quem é e como é (mulher, negra), tem casos de racismo e machismo para contar. No livro, ela fala de uma vizinha que, ao saber que ela estava no Tablado, comentou que não sabia que era preciso curso para fazer o papel de empregada. Na véspera da estreia no teatro, o noivo mandou que escolhesse entre ele e o teatro. Ela, para a nossa alegria, escolheu o teatro. Zezé estreou fazendo parte do coro da primeira montagem do espetáculo Roda Viva, em 1968. No mesmo ano, teve a primeira experiência na televisão, na novela Beto Rockfeller, da TV Tupi. No cinema, a estreia foi com Em cada coração um punhal (1969), de Sebastião de Souza. Contudo, o papel de maior notoriedade na telona foi como Xica da Silva (1976), filme de Cacá Diegues.

Frequentemente, Zezé era chamada para fazer empregadas e, no livro, traz uma posição firme sobre o assunto. “O problema não era ser empregada. O problema era entrar muda e sair calada”, p. 70. Volta e meia, o racismo aparece na narrativa. A atriz cita a novela Corpo a Corpo (1984), de Gilberto Braga, na qual fez par romântico com Marcos Paulo: “Uma nordestina dizia que mudava de canal porque não podia acreditar que um gato como o Marcos Paulo pudesse ser apaixonado por uma mulher horrorosa. Outro achava que o Marcos Paulo devia estar precisando muito de dinheiro para se humilhar a esse ponto”, p. 71.

Zezé Motta: sempre diva. Foto: reprodução do livro

A artista militante tem uma opinião contundente sobre relação amorosa entre brancos e negros, e isso fica evidente no livro. “…os radicais achavam que negro só podia namorar negro. Imagina, isso nunca entrou na minha cabeça. Namorei brancos e pretos não porque fossem brancos ou pretos, e sim porque eram pessoas interessantes”, p. 74. Em 1984, Zezé criou o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (CIDAN), no intuito de dar visibilidade a atores negros. Durante quase três anos, foi Conselheira dos Direitos Humanos, na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Zezé está na cena e atua em várias frentes.

Na leitura, chama a atenção o caráter ecumênico da religiosidade de Zezé. Passou por Testemunhas de Jeová, kardecismo, candomblé. Sobre o assunto, é categórica: “…nunca vou conseguir ser uma coisa só”, p. 83. Zezé teve três abortos espontâneos, não teve filhos naturais, mas tem cinco filhas do coração.

Referência de beleza, de talento e de militância. Foto: reprodução do livro

A biografia, considerando uma artista da envergadura de Zezé, é bem preguiçosa. Podia ter explorado muito mais coisas, como a parceria dela com alguns músicos brasileiros, a exemplo de Luiz Melodia. A carreira musical é abordada timidamente no livro. O lado atriz aparece um pouco mais, mas, ainda assim, é pouco. Zezé merecia muito mais.

Referência:

MURAT, Rodrigo. Zezé Motta: muito prazer. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005. (Coleção Aplauso).

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Um dossiê da crônica

Por Raulino Júnior ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||

Esta análise é para quem gosta de crônica. É o seu caso? Se sim, prossiga. Em 1992, foi publicada a quarta edição do livro A Crônica, de Jorge de Sá, pela editora Ática, integrando a interessante Série Princípios, que, como o nome denuncia, introduzia os leitores em vários assuntos importantes. Na obra, Jorge disseca o gênero e apresenta alguns cronistas que contavam histórias nos periódicos da época.

Logo no primeiro capítulo, intitulado Uma definição, o autor traz a Carta de Pero Vaz de Caminha como exemplo de primeira manifestação de crônica por aqui. “A Literatura Brasileira nasceu da crônica”, afirma na página 7. De forma muito precisa, Jorge de Sá vai definindo a crônica. Fala que o princípio básico do gênero é registrar o circunstancial (p.6), que ele é um misto de jornalismo e literatura, cita João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto), para mostrar a importância dele como cronista, e destaca a diferença entre crônica e conto: “Enquanto o contista mergulha de ponta-cabeça na construção do personagem, do tempo, do espaço e da atmosfera que darão força ao fato ‘exemplar’, o cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas ficar na superfície de seus próprios comentários, sem ter sequer a preocupação de colocar-se na pele de um narrador, que é, principalmente, personagem ficcional (como acontece nos contos, novelas e romances). Assim, quem narra uma crônica é o seu autor mesmo, e tudo o que ele diz parece ter acontecido de fato, como se nós, leitores, estivéssemos diante de uma reportagem”. Além disso, destaca que a crônica é um “pequeno acontecimento do dia a dia, que poderia passar despercebido ou relegado à marginalidade por ser considerado insignificante. Com o seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. Somente nesse sentido crítico é que nos interessa o lado circunstancial da vida. E da literatura também”, p. 11.

No decorrer do livro, Sá fala de alguns cronistas brasileiros renomados e de suas crônicas: Rubem Braga (“a verdade da crônica é o instante”), Fernando Sabino (“busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um”; “um texto cuja característica básica é a leveza —, mas sempre com visão crítica”), Sérgio Porto – Stanislaw Ponte PretaLourenço Diaféria (“o cronista deve prestar atenção ao banal”), Paulo Mendes Campos (“Para ver além da banalidade, o cronista vê a cidade com os olhos de um bêbado ou de um poeta: vê mais do que a aparência, e descobre, por isso mesmo, as forças secretas da vida. Não se limita a descrever o objeto que tem diante de si, mas o examina, penetra-o e o recria, buscando sua essência, pois o que interessa não é o real visto em função de valores consagrados. É preciso ir mais longe, romper as conceituações, buscar exatamente aquilo que caracteriza a poesia: a imagem”), Carlos Heitor Cony (“a aparência de leveza da crônica revela, quase sempre, o acontecimento captado sob a forma de uma reflexão, mesmo quando se trata de alguma coisa afetivamente ligada só ao escritor; “A indivisível experiência pessoal serve como ponto de partida e como ponte de acesso a uma verdade maior, a um só tempo individualista e universal”; “Outro procedimento — este puramente ficcional — é transformar aquilo que nos aconteceu em fato relacionado com outras pessoas. Ao inventar um personagem, o cronista confere a marca de ficção a fatos e pessoas reais, sem esquecer que esse ato de fingir é um meio de buscar as faces da realidade”), Carlos Drummond de Andrade (“ao narrar o mundo, o cronista narra a si mesmo”), e Vinicius de Moraes (“a crônica é uma conversa fiada e o cronista um pensador do cotidiano”).

No capítulo 10, Além do consumo imediato, Jorge de Sá chama a atenção para as formas de ler uma crônica. Pode parecer simples, mas não é, porque o gênero exige muita criticidade do leitor, uma vez que está intimamente ligado a fatos do cotidiano. O autor não deixa de citar uma prática comum: a publicação de livros com reunião de crônicas que foram publicadas nos periódicos: “No momento em que a crônica passa do jornal para o livro, temos a sensação de que ela superou a transitoriedade e se tornou eterna. Entretanto todos os escritores demonstram sua perplexidade diante da inevitável passagem do tempo, corroendo os seres e as coisas. Acreditar que o cronista ganha a eternidade numa simples mudança de suporte não seria simplório demais? Essa ideia de perenidade não estaria ferindo a própria leveza da crônica, eliminando o seu ar de prosa fiada?”, p. 85.

Para quem gosta de crônica, o livro é uma boa imersão. A leitura reforça que “o enredo simples convém a essa narrativa curta” e que ela é um texto de circunstâncias. No final, a gente constata que a crônica é rainha.

Referência:

SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1992.

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Em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, Lima Barreto critica jornalismo brasileiro de outrora (e de hoje)

Autor pré-modernista criou uma narrativa corajosa e pessimista sobre a prática jornalística

Livro de 1909 é o primeiro romance de Lima Barreto. Imagem: reprodução da internet

Por Raulino Júnior ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||

A criticidade e ironia presentes nas produções literárias de Lima Barreto (1881-1922) não são novidades para quem se debruça nas suas obras. Contudo, em algumas delas, o autor carioca se mostra ainda mais afiado. Isso acontece em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, seu romance de estreia, publicado em 1909. Nele, Barreto traça um retrato da imprensa brasileira do início do século XX e, nesse sentido, “pesa a mão” nas críticas ao jornalismo e aos jornalistas. A narrativa deixa evidente a revolta do autor em relação às injustiças e conchavos da sociedade da época. É verdade que, infelizmente, muita coisa não mudou. Para quem vive do jornalismo e conhece as suas práticas, as memórias de Isaías soam como ofensas e, não se pode negar, como constatações. A vergonha e o constrangimento acompanham o leitor o tempo todo, independentemente de ele atuar ou não na imprensa.

O romance conta a história do jovem estudante Isaías Caminha, que, por falta de perspectiva de ter um bom futuro na cidade do interior em que morava, vai em busca de melhorias no Rio de Janeiro. Lá, se estabelece e passa por todos os perrengues naturais de quem sai da zona de conforto. Inclusive, fome. As coisas só começam a melhorar quando ingressa como contínuo na redação do jornal O Globo (totalmente fictício, sem nenhuma relação com o que existe hoje, fundado em 1925), de propriedade de Ricardo Loberant. Essa convivência de perto com os profissionais da imprensa faz Isaías entender o modus operandi do jornalismo: a produção das notícias, as estratégias para garantir a venda dos jornais, a relação com os poderes públicos e otras cositas más. Além disso, percebe a guerra de ego dos colegas de redação e vai, ao longo do romance, incorporando os mesmos comportamentos. Quando passa de contínuo a repórter, reproduz algumas práticas que condenava, como a “babação de ovo” do diretor Loberant. Claro que a temática racista não fica de fora do livro. Logo no início, Isaías é tratado com rispidez por um caixeiro de um café, que demora de lhe entregar o troco. ” […] um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente entregue”, p. 8.

Lima Barreto atuou como jornalista profissional, no Correio da Manhã. Sendo assim, narra com propriedade a dinâmica de uma redação jornalística. Inclusive, muitos pesquisadores de suas obras afirmam que Isaías Caminha é o próprio Barreto. Levando em consideração o que Caetano Veloso diz, que todas as suas obras são autobiográficas, até as que não são, são, não é difícil associar as recordações de Isaías à própria vida do seu criador. Num determinado trecho do romance, o escrivão afirma: “Cinco capítulos da minha Clara estão na gaveta; o livro há de sair…”. Seria Isaías falando do último romance escrito por seu pai literário, o Clara dos Anjos?! Criador e criatura se fundindo…

Em várias passagens do romance, a visão cáustica de Lima Barreto sobre a imprensa é cruel, de incomodar. Isso não significa que o que é narrado não seja verdade, não aconteça. O fato é que o autor mete o dedo na ferida sem dó nem piedade. Critica as crônicas (Quem lê uma, lê todas, p. 59), denuncia práticas, como  um autor que faz a crítica de sua própria obra e publica com o aval da empresa jornalística (Veiga Filho acabou de ler a notícia no meio da sala, cercado de redatores e repórteres. Enquanto ele lia cheio de paixão, esquecido de que fora ele mesmo o autor de tão lindos elogios…, p. 64), fala das mesmices nos jornais (A não ser o Jornal do Comércio, pode-se dizer que os diários do Rio nada têm o que se leia e todos eles se parecem, pois todos têm a preocupação de noticiar crimes, escândalos domésticos e públicos, curiosidades banais e, em geral, ilustrados com zincografias que nada têm com o caso, quando não são hediondas ou imorais, como aconteceu com O Globo que, certa vez, deu a de um cadáver exumado, inteiramente nu, p .66), faz autocríticas (Depois de acobardado, tornei-me superior e enervado e não tentei mais mudar de situação, julgando que não havia no Rio de Janeiro lugar mais digno para o genial aluno de Dona Ester que o de continuo numa redação sagrada, p. 66; Em menos de ano e tanto, tinha já construído uma pequena consciência jornalística para meu uso. Julguei-me superior ao resto da humanidade que não pisa familiarmente no interior das redações e cheio de inteligência e de talento, só porque levava tinta aos tinteiros dos repórteres e dos redatores e participava assim de um jornal, onde todos têm gênio, p. 66; No meio daquele fervilhar de ambições pequeninas, de intrigas, de hipocrisia, de ignorância e filáucia, todas as coisas majestosas, todas as grandes coisas que eu amara, vinham ficando diminuídas e desmoralizadas. Além do mecanismo jornalístico que tão de perto eu via funcionar, a política, as letras, as artes, o saber — tudo o que tinha suposto até aí grande e elevado, ficava apoucado e achincalhado, p. 108), relata como via a convivência dos colegas de redação ([…]e todos como que pareciam querer entredevorar-se até aos ossos, p. 67), bem como a de homens do governo (Foi sempre coisa que me surpreendeu ver que amigos, homens que se abraçavam efusivamente, com as maiores mostras de amizade, vinham ao jornal denunciar-se uns aos outros. Nisso é que se alicerçou o O Globo; foi nessa divisão infinitesimal de interesses, em uma forte diminuição de todos os laços morais, p.72). Ao narrar a reação de Loberant, diretor do jornal, ao saber que um casal fora encontrado morto, o autor coloca: “A sua fisionomia abriu-se risonha, sorridente, e feliz. Ia vender mais mil ou dois mil exemplares”, p. 80.

O que mais Barreto achava sobre o universo das redações e do jornalismo? Vejamos:

a) Sobre a própria imprensa

[…] A Imprensa! Que quadrilha! […] Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova… E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação… Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas… Só se é geômetra com o seu placet, só se é calista com a sua confirmação e se o sol nasce é porque eles afirmam tal coisa… E como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! Fazem de imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a seleção das mediocridades, de modo que… (fala do personagem Plínio de Andrade, p. 50).

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b) Subalternidade dos repórteres

Pelos longos anos em que estive na redação do O Globo, tive ocasião de verificar que o respeito, que a submissão dos subalternos ao diretor de um jornal só deve ter equivalente na administração turca. É de santo o que ele faz, é de sábio o que ele diz. Ninguém mais sábio e mais poderoso do que ele na Terra. Todos têm por ele um santo terror e medo de cair da sua graça, e isto dá-se desde o contínuo até o redator competente em literatura e coisas internacionais (Isaías, p. 54).

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c) Sobre a vaidade

A vaidade dos desconhecidos da imprensa é imensa! Todos eles se julgam com funções excepcionais, proprietários da arte de escrever, acima de todo o mundo. Não reconhecem que são como um empregado qualquer, funcionando automaticamente, burocraticamente, e que uma notícia é feita com chavões, chavões tão evidentes como os da redação oficial. Quase todos os repórteres e burocratas dos jornais desprezam a literatura e os literatos. Não os grandes nomes vitoriosos que eles veneram e cumulam de elogios; mas os pequenos, os que principiam. Estranha ignorância de quem, por intermédio dos artigos dos que sabem, copia os processos dos romancistas, as frases dos poetas e deturpa os conceitos dos historiadores, imitando-lhes o estilo com uma habilidade simiesca… (Isaías, p. 81).

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d) Comparação com o Feudalismo

No jornal, o diretor é uma espécie de senhor feudal a quem todos prestam vassalagem e juramento de inteira dependência: são seus homens. As suas festas são festas do feudo a que todos têm obrigação de se associar; os seus ódios são ódios de suserano, que devem ser compartilhados por todos os vassalos, vilões ou não (Isaías, p.90).

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e) Sobre crítica literária

Os livros nas redações têm a mais desgraçada sorte se não são recomendados e apadrinhados convenientemente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título e o nome do autor. Se é de autor consagrado e da facção do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas, muito bordadas, aqueles elogios em clichê que nada dizem da obra e dos seus intuitos; se é de outro consagrado mas com antipatias na redação, o clichê é outro, elogioso sempre mas não afetuoso nem entusiástico. Há casos em que absolutamente não se diz uma palavra do livro (Isaías, p. 97).

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f) Sobre a vida do jornalista

O público que nos lê, não sabe o quanto esta vida de jornalista é esgotante e ingrata; não sabe que soma de energia ela exige e como nos tira os melhores momentos de ócio e os melhores minutos de prazer. Vivemos por assim dizer para os outros; e quem vive para os outros, é claro que muito pouco pode viver para si (Isaías, p. 104).

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g) Relação de jornais com o governo

O diário de Loberant ficou sendo quase a sétima secretaria do Estado. As nomeações saíam de lá e as demissões também. Bastava um aceno seu para um chefe ser dispensado, e bastava qualquer dos seus empregados abrir a boca para obter os mais rendosos lugares (Isaías, p. 105).

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h) Boicote dos colegas

Nos primeiros dias lutei com alguma dificuldade. Os colegas receberam-me mal. Sonegavam-me as notas, procuravam desmoralizar-me, ridicularizar-me diante dos empregados. Há neles em geral essa hostilidade pelos novos. Sentem que o ofício é fácil e se eles ainda por cima o facilitarem, perderão em breve o prestígio (Isaías, p. 115).

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i) Sobre o tamanho dos textos

No jornal, a extensão é tudo e avalia-se a importância do escrito pelo tamanho; a questão não é comunicar pensamentos, é convencer o público com repetições inúteis e impressioná-lo com o desenvolvimento do artigo (Isaías, p. 117).

O romance mostra jornalistas supondo coisas, sendo incentivados a mentir, a inventar fatos. Afirma que muita coisa é preparada antes. Ou seja, um repórter que é designado para cobrir um concerto faz uma prévia do seu texto, supondo o que já é comum de acontecer em ocasiões como essa. Cita o jogo de interesses entre imprensa e governo, a falta de ética, a arrogância (Leporace era o secretário, arrogante como todo jornalista, apesar de ser uma pura criação de Loberant, p. 55)… Lima Barreto pega pesado, mas faz críticas coerentes, que motivam reflexões. No final, é isto: “Era a Imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição!”, p. 64.

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Tropicália na História e a história da Tropicália

Tropicália: música e manifesto. Imagem: reprodução do site da Editora 34

Por Raulino Júnior ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||

Lançado em 1997, o livro Tropicália: a história de uma revolução musical, de Carlos Calado, é um importante registro para a história do movimento. Para quem não foi contemporâneo daquela efervescência artística, vale a pena se debruçar nas mais de 300 páginas que narram como o Tropicalismo nasceu, chegou ao ápice e se desfez. A obra é repleta de depoimentos de pessoas que participaram ativamente da revolução artística e cultural que entrou em cena, no Brasil, entre 1967 e 1968. Além disso, retrata, com se Carlos fosse uma testemunha ocular, os bastidores dos festivais de música que marcaram a história da televisão brasileira. Com linguagem simples e atraente, Calado consegue “prender” o leitor durante toda a narrativa. Isso se dá também porque ele entrelaça o que conta com muitas curiosidades, o que faz o interesse pela história manter-se sempre vivo.

O livro começa do fim, narrando a prisão de Gilberto Gil e Caetano Veloso, expoentes da Tropicália, em 27 de dezembro de 1968, e segue falando da influência de João Gilberto na musicalidade dos dois artistas. No terceiro capítulo, intitulado A Turma do Vila Velha, o autor conta como Gil e Caetano se conheceram (uma curiosidade que quase todo mundo quer saber! De acordo com o jornalista, “Gil e Caetano se conheceram pessoalmente em Salvador, numa tarde de 1963. Caetano vinha andando pela rua Chile, próximo da Farmácia Chile, quando viu o violonista se aproximar. Ele estava acompanhado por Roberto Santana, amigo em comum que já tinha prometido apresentá-los [sic] ao saber que Caetano era fã do violão e da bossa de Gil”, p. 45) e, obviamente, fala sobre a estreia do show Nós, Por Exemplo, apresentado no Teatro Vila Velha, em 22 de agosto de 1964. Além de Gil e Caetano, o show reuniu, entre outros artistas, Maria Bethânia e Maria da Graça, a Gal. O quarteto formaria, doze anos depois (1976), o grupo Os Doces Bárbaros.
Carlos Calado vai mostrando para o leitor cada artista que contribuiu para formatar a Tropicália. Nesse sentido, fala de Tom ZéGal CostaMaria Bethânia, Nara Leão, CapinanTorquato NetoRogério Duprat e Os Mutantes (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee). Bethânia substituiu Nara Leão no musical Opinião e emprestou toda a sua dramaticidade à interpretação da música Carcará (João do Vale), que virou uma canção de protesto. Sempre que se apresentava num show, o público pedia para Berré (como a irmã de Caetano era chamada pelos mais íntimos) cantar. Bethânia foi ficando desconfortável com essa situação de ser “musa de canção de protesto”. Por isso, não participou do disco coletivo dos tropicalistas, porque não queria mais integrar grupos ou movimentos artísticos.

A antológica capa do disco Tropicália ou Panis et Circenses, de 1968. A foto foi feita pelo fotógrafo Olivier Perroy. Imagem: reprodução do site da Revista Fórum.

Além de conhecer a história da Tropicália e a importância do movimento para a História do Brasil, quem lê o livro fica sabendo algumas curiosidades: o rápido casamento, informal e contra a vontade das respectivas famílias, de Gil e Nana Caymmi; que Caetano já foi apelidado de “Caretano”; que a convivência entre emepebistas e tropicalistas não era boa; que Nara Leão e Capinan não estão na foto da capa do disco Tropicália ou Panis et Circenses (Philips, 1968) porque não chegaram a tempo para participar da sessão de fotos. Por isso, usaram molduras com as imagens dos ausentes. Caetano segura a de Nara; e Gil, a de Capinan; que o nome Tropicália foi uma sugestão do produtor de cinema Luís Carlos Barreto, que se baseou numa exposição homônima de Hélio Oiticica; e que “a foto com os integrantes do grupo tropicalista não foi realizada com um conceito muito definido”, p. 196.
Os incontáveis erros ortográficos encontrados na obra causam estranheza, uma vez que, antes de ser publicado, em geral, o texto de um livro passa por uma rigorosa revisão. O leitor encontra “espectativas” (p. 43), “em baixo” (p. 57), “bode espiatório” (p. 141), “destróem” (p. 155) e “sizudo” (p. 183). Isso não compromete em nada a narrativa, mas, obviamente, deve ser motivo de atenção. Calado esmiúça a explosão do movimento tropicalista, narrando os shows, os festivais dos quais os artistas participaram e todos os conflitos envolvidos no manifesto cultural, que, respeitando as razões e o contexto, remete muito à Semana de Arte Moderna, de 1922. O livro, assim como a Tropicália, vai ficar para a História.
Referência:

CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. 1ª ed. São Paulo: Ed. 34, 1997. (Coleção Ouvido Musical).
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Ping Pong Records Guinness

Livro Ilustrado lançado pelo chiclete Ping Pong em 1995. Foto: Raulino Júnior

Por Raulino Júnior ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||

Quase toda criança adora colecionar coisas e o capitalismo sempre esteve de olho nisso. Em 1995, o chiclete Ping Pong lançou mais um de seus inúmeros álbuns: o Ping Pong Records Guinness. Como o nome já entrega, a ideia era divulgar os recordes registrados no então Guinness Book. Hoje, chama-se Guinness World Records. Quase ninguém conseguia completar o livro ilustrado, porque, por mais que se comprasse o chiclete, muitas figurinhas se repetiam. Daí rolava a troca com outros colegas e amigos que também colecionavam. Um hábito muito comum na época.

O livro se destacou pelo caráter informativo que trazia em cada figurinha. Além da vontade de completar o álbum, os colecionadores tinham a curiosidade em saber sobre cada recorde. Era muito interessante. A seguir, veja algumas figurinhas e informações que faziam parte do Ping Pong Record Guinness.


A apresentação com a história do Guinness Book. Naquela época, o livro estava na sua 41ª edição
Contracapa do álbum
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A saga de Zé-do-Burro

Foto: reprodução da internet

Por Raulino Júnior ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||
Intolerância religiosa, machismo, casamento por interesse, traição, subserviência feminina, fanatismo religioso, imprensa sensacionalista, sincretismo, prostituição, crítica social e política. Todos esses elementos compõem a narrativa da peça O Pagador de Promessas, escrita em 1959 pelo baiano Dias Gomes. O drama em três atos conta a saga de Zé-do-Burro, que faz uma promessa para Santa Bárbara e resolve pagá-la após o burro Nicolau, seu melhor amigo, se restabelecer de um ferimento.

Zé e Rosa, sua mulher, andam sessenta léguas para chegar até a Igreja de Santa Bárbara, em Salvador. Zé faz todo o percurso carregando uma cruz “tão pesada quanto a de Cristo” nos ombros. Ao chegar no destino, ele se depara com preconceito, aproveitadores de todo tipo e a resistência do Padre Olavo. A atitude do padre é provocada por que, ao contar toda a história que lhe levou até ali, Zé afirma ter ido a um terreiro de candomblé, apelar para Iansã. Aí começa todo o conflito religioso, que é a base do texto de Dias Gomes.

A peça estreou no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo, no mesmo ano em que foi escrita. Flávio Rangel assinou a direção e o ator Leonardo Villar fez o protagonista. O texto foi adaptado para o cinema (1962), para a TV (1988), traduzido para mais de dez idiomas e vencedor de prêmios importantes, como o Prêmio Melhor Peça Brasileira, em 1960, pela Associação Paulista de Críticos Teatrais.

Dias Gomes consegue reproduzir com propriedade os costumes baianos em O Pagador de Promessas. Há personagens caricatos na obra, mas isso não tira o seu brilho. O clímax é constante na narrativa, repleta de reviravolta. A trama prende o leitor do início ao fim e o convida a refletir sobre a sociedade brasileira da época, e sobre a atual também. Conheça a saga de Zé!

Referência:

GOMES, Dias. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

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Com licença, eu vou à luta: rebeldia com causa

Fernanda Torres e Carlos Augusto Strazzer em cena de Com licença, eu vou à luta. Imagem: Banco de Conteúdos Culturais

Por Raulino Júnior ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||
Conflitos entre pais e filhos são sempre ótimos ingredientes para a criação artística. Em 1986, o cineasta Lui Farias apostou nisso e lançou o filme Com licença, eu vou à luta, baseado no livro de mesmo nome de Eliane Maciel. No elenco central, Fernanda TorresMarieta SeveroReginaldo Faria e Carlos Augusto Strazzer.
O drama é a versão cinematográfica da autobiografia lançada por Eliane três anos antes (1983). Na história, Eliane (Fernanda), de 15 anos, se apaixona por Otávio (Strazzer), de 33, e enfrenta toda a sanha de sua própria família. Principalmente de seus pais, Eunice (Marieta) e Milton (Reginaldo).
Antes de o romance entre Eliane e Otávio acontecer, o filme mostra que a relação da protagonista com os pais já não é tão amistosa. Impacientes e nada carinhosos com a filha, Eunice e Milton não demonstram um pingo de preocupação com o bem-estar dela. Por outro lado, a adolescente também não faz nenhuma questão de ser obediente.
Quando o namoro se concretiza, Eliane passa a ser hostilizada pelos pais, com violência física e psicológica, chegando até a viver em cárcere privado. Ainda assim, não abre mão do seu amor por Otávio. A situação se torna insuportável e o casal decide fugir.
O filme tem um roteiro interessante e acertou na escolha do elenco. Fernanda Torres impressiona pela maturidade da atuação. É importante destacar como o cinema nacional já foi mais preocupado em contar boas histórias, que provocam reflexão e deixam algo significativo para quem assiste. Vale a pena conhecer a luta de Eliane.

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Você é Santos ou é Silva?

Gonzaguinha: um cronista sempre antenado. Foto: reprodução do site oficial do artista.

Por Raulino SANTOS ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||
Em 1977, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior,o Gonzaguinha, lançou o disco Moleque Gonzaguinha, que, como fora comum em toda a obra dele, trouxe canções com temáticas sociais bem pertinentes. Uma delas é a crônica cheia de humor, e que nos convida à reflexão, Dias de Santos e Silvas (Gonzaga Jr.), a faixa número um do vinil.
A narrativa, contada em primeira pessoa, fala de um dia na vida de um trabalhador. A história é didática, com divisão das ações bem demarcadas entre manhã, tarde e noite. Nesse sentido, pode ser usada por professores de língua portuguesa de todo o Brasil.
O dia do protagonista se passa num centro urbano e ele dá sinais de que tem a pretensão de transformar a própria realidade. Para isso, aposta no jogo do bicho: “[…] sonhei e fiz fé no avestruz/Que vai me dar uma luz/Levo uma nota pra mão. […] Ai, meu Deus, se o avestruz der na cabeça/Vou ganhar dinheiro à beça/Faço minha redenção/E vou lá dentro no escritório do patrão/Peço aumento, ele não dá/Mostro a grana e a demissão”. Contudo, a esperança do narrador-personagem acaba no final da jornada: o avestruz não deu.
O talento de Gonzaguinha, como compositor, é indiscutível. Ele conseguiu, poeticamente, colocar o dedo na ferida e falar da realidade brasileira em várias de suas canções. Dias de Santos e Silvas é um retrato disso. Critica o capitalismo e mostra como a gente é refém dele. O samba é carregado de uma graça irônica, fazendo com que muito trabalhador se identifique com a situação narrada. E continua atual! A correria do cotidiano, repleta de dificuldades e sempre esperançosa, faz parte da vida de todo mundo “que acorda e se põe em movimento”.
Este texto é, também, uma singela homenagem a Gonzaga Jr., que, se estivesse entre nós, completaria, hoje, 70 anos de idade. Viva, Gonzaguinha!

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