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“Rita Lee: outra autobiografia” traz deboche e consciência de finitude da artista

Relato aborda o diagnóstico do câncer e o tratamento durante a pandemia

Imagem: divulgação

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

“Algo me diz que tenho escrito muito sobre morte. Aliás, por que há tanta gente que até se benze quando tocamos no assunto? A morte é a única verdade, e cada dia a mais vivido é um dia a menos que se vive. Pra quê fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela com humor? Desta vida, não escaparemos com vida”. Esse trecho, presente na página 82 de Rita Lee: outra autobiografia (Globo Livros, 2023), sintetiza muito bem o teor da obra: é um relato leve, debochado e repleto de passagens que constatam que a autora tinha muita consciência de sua finitude. No texto, a paulistana Rita Lee Jones de Carvalho (1947-2023) narra como se deu a descoberta do câncer no pulmão, o tratamento durante a pandemia do coronavírus (o diagnóstico foi dado em abril de 2021) e a preparação para uma exposição em homenagem à sua carreira. O deboche e a autozoação eram traços marcantes da personalidade de Rita, presentes nesta e também em sua primeira autobiografia, lançada em 2016.

A narrativa de Rita Lee parece ser uma conversa com amigos na sala de estar. É simples e interessante, além de bem-humorada. Ela trata as pessoas que conheceu durante o tratamento de “oncolegas” e batiza um dos seus tumores de “Jair”, numa referência a Jair Bolsonaro, amplamente criticado na autobiografia. Por sinal, referência era uma coisa que a roqueira tinha para dar e vender. Ao longo do texto, ela faz menção a várias canções da Música Popular Brasileira (MPB): “Mistérios sempre hão de pintar por aí” (p. 20), “Queria dar beijinhos e carinhos sem ter fim nessa moçada…” (p. 124), “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte” (p. 144) e algumas outras. Rita também cita várias experiências sobrenaturais que teve durante a vida e durante o tratamento, reflete sobre a velhice, proteção de animais e da natureza. E mostra acidez e humor ao falar dessa última: “Fumava para meditar sobre uma letra de música, buscar uma solução para problemas caseiros ou dar uma pausa e só bundar no jardim pensando em como salvar a Natureza enquanto poluía com meu tabaco os delicados aromas das gardênias, dos manacás, das damas-da-noite, ou seja, a mesma Natureza que eu queria tanto salvar… lá estava eu jogando Marlboro no ar. Rita paradoxal. Alguma coisa estava fora da nova ordem mundial em relação aos cuidados com nossa Terra Nave Mãe”, p. 35-36.

Rita acreditava que fosse se curar do câncer. No último parágrafo do capítulo A radioterapia, ela diz: “Mas, em grande parte das vezes, o medo pelo sofrimento que a quimio causou em minha mãe foi suplantado pelo desejo de me curar daquele câncer em homenagem a ela, como uma vingança tipo máfia siciliana”, p. 52. Contudo, no próprio texto, ela revela algumas malandragens que fazia para não tomar os remédios e fingir que estava ganhando peso. Phantom (intervenções de Guilherme Samora), o fantasma onisciente que também esteve na primeira autobiografia, é quem entrega: “Rita, agora que está com dois quilos a mais, não seria a hora de contar o truque de colocar um peso de papel no bolso para enganar a balança e não ter que comer toda hora?”, p. 132.

No dia 8 de maio deste ano, Rita Lee morreu, deixando um legado na música, na literatura e no comportamento. “Aquela velha frase: nunca fui um bom exemplo, mas sempre fui gente fina”, p. 120.

Referência:
 
LEE, Rita. Rita Lee: outra autobiografia. 1. ed. São Paulo: Globo Livros, 2023.
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“Ó Paí, Ó 2” mantém verve artística e compromisso social da primeira versão

Imagem: divulgação

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

É sempre uma tarefa difícil dar sequência a uma obra artística quando a primeira versão dela é bem-sucedida, porque surgem dúvidas, inseguranças e medo do julgamento alheio. E também é impossível não fazer comparações entre uma e outra. Ó Paí, Ó 2 estreou ontem em todo o país e foi muito recorrente ouvir as pessoas relatarem, ao sair da sessão, que acharam a continuidade tão boa quanto o primeiro filme ou que gostaram mais da película de agora. O fato é que os roteiristas, os atores e a direção, assinada por Viviane Ferreira, conseguiram manter a mesma verve artística e compromisso com pautas sociais do anterior.

O filme é muito bom. Mesmo porque, estrategicamente, a produção não quis mexer em time que estava ganhando e alguns “tipos de cena” do passado voltaram à tona no presente, gerando identificação, riso, reflexão. Não tem erro. Lembra do esculacho antirracista que o personagem Roque (Lázaro Ramos) dá em Boca (Wagner Moura), no Ó Paí, Ó de 2007? Tem agora, com novo contexto servindo de pano de fundo e outro ator contracenando com o protagonista. A impressão que dá é que o roteiro foi seguindo uma gramática ao modo Ó Paí, Ó de ser, sem muita ousadia, para não correr risco. Como se, na sala de roteiro, a gente ouvisse o tempo todo: “Tem que ter uma cena como essa”, “Como essa aqui também”. E parece que prestou muita atenção ao clamor do público nas redes sociais, trazendo muita coisa que tinha certeza que ia agradar. Deu certo. Menos é mais. Por sinal, as frases feitas, assim como no primeiro, desfilam no segundo. Dessa vez, no enredo, a turma se junta para fazer com que Neuzão volte a ser proprietária do seu famoso bar no Pelourinho. Numa das cenas, Roque exclama: “A gente tá preocupado. A gente só é forte se a gente tiver junto. Se a gente olhar pro lado e se reconhecer”. Há o reforço da importância da coletividade em Ó Paí, Ó 2. Principalmente, como recado às comunidades negras. É preciso sempre se aquilombar.

O filme tem um ritmo lá em cima. É veloz. Não para. Dificilmente, alguém vai dormir ao assisti-lo no escurinho propício do cinema. Nesse sentido, toca em várias pautas importantes. Uma atrás da outra. Na mesma velocidade. Fala de milícias, assassinato de crianças pela mão do Estado, gentrificação, empoderamento feminino, relações homoafetivas, suicídio e saúde mental. Para esse tema, em uma sacada muito boa, é Dona Joana (Luciana Souza) quem mostra como ficou depois do assassinato dos seus filhos na primeira versão. Numa sessão de terapia com Dr. Alfeu (Luis Miranda), ao ser questionada como está por dentro, a personagem responde: “Eu ando oca”. Além dos temas citados, Ó Paí, Ó 2 aborda coisas próprias da cultura de Salvador, como a tomada do comércio no centro da cidade por coreanos, e faz uma necessária crítica à indústria da música baiana, que impede um cantor e compositor negro e talentoso de ascender. No 2, Roque está prestes a lançar sua música, mas, mais uma vez, se torna vítima da crueldade de racistas e do racismo estrutural.

O longa é preciso. Nos dois sentidos da palavra. Diverte, emociona e faz a gente pensar. Uma marca do (e no) trabalho do Bando de Teatro Olodum. O único senão diz respeito a um problema na montagem. As gravações da parte 2 começaram em 2018, na Festa de Iemanjá daquele ano, pois o filme seria lançado em 2019. As cenas foram aproveitadas e a caracterização dos personagens está bem diferente. Reginaldo (Érico Brás), por exemplo, aparece durante todo o filme de dreadlocks e, nessa passagem da história, quando alguns personagens estão no Rio Vermelho, está de cabelo curto. É um grão de areia dentro da grandiosidade do filme, mas que compromete o trabalho da parte técnica. A cena não poderia ser a lembrança de algum personagem sobre a festa passada, pensando na expectativa da festa presente, que é importante na narrativa da segunda parte? Fica a pergunta. O fato é que Ó Paí, Ó 2 deixa todo mundo com vontade de ver o 3, o 4, o 5, o 6…

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“Nosso Sonho” é um filme para todos os faixas

Juan Paiva e Lucas Penteado na pele dos funkeiros Buchecha e Claudinho, respectivamente. Foto: divulgação.

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde|| 

Estreou ontem, em todo o Brasil, o filme Nosso Sonho – A história de Claudinho e Buchecha, que conta a trajetória até o sucesso e a fama da dupla de amigos Claudio Rodrigues de Mattos (Claudinho) e Claucirlei Jovêncio de Sousa (Buchecha). Ou melhor: conta a história dos faixas Claudinho e Buchecha, vividos, respectivamente, pelos atores Lucas Penteado (que dá um show de interpretação!) e Juan Paiva (que está muito bem também, mas o personagem Claudinho tem muito mais camadas para explorar e suplanta a linearidade de Buchecha). Faixa significa “muito amigo, mais que irmão” e era a forma como os dois se tratavam. A cinebiografia é de emocionar e deve fazer muita gente chorar durante e depois de assistir. Não só pelo desfecho que já é sabido por todos, mas porque a obra é repleta de cenas tocantes e poéticas. Quem acompanhou a história da dupla quando ela estava acontecendo, desaba; quem não acompanhou, se identifica. Nosso Sonho celebra as amizades verdadeiras, aquelas em que as pessoas se doam e, mesmo que passem muito tempo sem se ver, a chama amistosa se mantém acesa, intensa e indelével.

O filme é narrado pela ótica do personagem Buchecha, que mostra, a todo tempo, por que considera Claudinho como um anjo em sua vida. Em vários momentos, o faixa o ajudou a superar dificuldades. Claudinho teve a ideia de criar a dupla e sempre impulsionava Buchecha a acreditar. Este, por sua vez, não levava a sério e chegava a afirmar: “A gente é feio demais pra ser artista”. Pensamento que, obviamente, é fruto do racismo e de tudo que ele provoca. A propósito, a temática é abordada na obra de forma sutil, como se o diretor Eduardo Albergaria não quisesse focar nisso. Escolha corajosa e, de certa forma, acertada. O racismo é um assunto presente no cotidiano da população negra, mas não é um limitador. O povo negro não está circunscrito a isso.

A obra pega o espectador também pela memória afetiva. Tem muita música e quem assiste canta junto. É emocionante ver cenas como a da criação da música Rap do Salgueiro (Claudinho/Buchecha) e a da gravação no estúdio da emblemática Nosso Sonho (Claudinho/Buchecha), que batiza o filme. Peca por abordar o sucesso retumbante da música Conquista (Buchecha) de maneira muito tímida. É uma cena em que os familiares estão reunidos e cantam a canção. Dessa forma, não traz a noção do quanto Conquista foi importante na carreira da dupla. Acerta no uso da tecnologia quando faz a inserção de programas de TV que os artistas participaram. Um trecho do extinto Jô Soares Onze e Meia (SBT) é exibido e a edição dá um show de competência.

Caminhando para o desfecho, a gente se pergunta: por que não contextualizaram a história da família de Claudinho? Sobre Buchecha, a gente sabe quem foi o pai (problemático) e a mãe (no sentido amplo da palavra), por exemplo. Claro que é o personagem Buchecha quem narra os acontecimentos, mas o filme se vende como sendo “a história de Claudinho e Buchecha”. Quando os créditos começam a aparecer, a gente lê: “Nosso Sonho – A história de Buchecha com Claudinho”. Título muito mais adequado para o que é narrado. De qualquer modo, Nosso Sonho está à altura do que a dupla Claudinho e Buchecha representou para a cultura brasileira.
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João Marcello Bôscoli arrebata leitor em livro de memórias sobre convívio com a sua Mãe

Relato do filho mais velho de Elis Regina destaca a pessoa por trás da artista

Imagem: reprodução do site da editora Planeta

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Em 1994, a editora Nova Fronteira lançou o livro Eles e Eu: Memórias de Ronaldo Bôscoli. Na obra, o compositor, produtor musical e jornalista, em depoimento a Luiz Carlos Maciel e Ângela Chaves, fala sobre os bastidores e a sua convivência com artistas da Música Popular Brasileira. Ainda não li esse livro, mas imagino o quão interessante deve ser. 25 anos depois, em 2019, o filho de Bôscoli, João Marcello, publicou o seu Elis e Eu: 11 anos, 6 meses e 19 dias com minha mãe, pela editora Planeta. Esse eu li, é objeto desta resenha e não me contive em fazer a associação das duas obras. Certamente, sagaz e criativo como é, João Marcello quis fazer essa referência ao livro do pai. Certeiro. A obra do filho é excelente e, de cara, traz um subtítulo que intriga. Explico: João nasceu em 17 de junho de 1970. Então, no fatídico 19 de janeiro de 1982, dia da morte de Elis, o produtor tinha 11 anos, 7 meses e 2 dias de convivência com a mãe. Ou seja: o subtítulo do livro não é tão exato, não corresponde aos fatos. Estratégia editorial para ficar mais impactante?! Vai saber… O fato é que Elis e Eu nos arrebata desde a primeira linha.

João divide as suas memórias com os leitores e a nossa vontade é sempre de querer saber mais e mais. Isso acontece porque o autor não está falando de Elis “figura pública”. Ele fala da Mãe dele (assim mesmo, com inicial maiúscula, como ele registra no livro!), da pessoa por trás da artista. “Elis Regina é a parte pública da minha Mãe, uma de suas faces”, afirma na página 15. No relato, mostra a Elis preocupada com o repertório e com a excelência dos shows, a Elis que fazia questão de levar os filhos na escola e cuidar da casa, a Elis solidária e a Elis que se metia em briga de marido e mulher, sim! João não se poupa. Fala de suas muitas travessuras feitas quando criança e dos castigos impostos por Elis, quase sempre humilhantes, para ele aprender sobre a vida.

As lembranças de João fazem rir e fazem chorar. É impossível não se colocar no lugar dele durante a narrativa. Principalmente, quando fala sobre o dia da morte da artista e sobre os dias seguintes. Bôscoli conta que no mesmo dia 19 de janeiro de 1982, um jornalista ligou para a casa dele e perguntou se Elis tinha morrido, “…indiferente ao fato de estar falando com um garoto”, p. 23. Ele negou e desligou. “O mundo, alheio às tragédias e tristezas, seguia sua rotação”, critica na p. 24. Ele também faz crítica aos aproveitadores, pessoas que o bajulavam porque ele era filho de quem era. Depois da morte, todo mundo sumiu. A avó materna ganha o adjetivo de “tóxica” por ele. João escancara tudo.

É fascinante quando narra os dias vividos na casa da serra da Cantareira, ambiente de alegria e de muita simplicidade. João testemunhou muitos ensaios da mãe, a relação dela com os músicos, as gravações de algumas músicas, a sua fúria. Ele foi para algumas viagens com ela e teve acesso às tecnologias de última hora daquele tempo, como o videocassete e o walkman. Nem tudo são flores. Os anos de chumbo estavam a todo vapor e o menino vivenciou tudo com a mãe. Inclusive, foi com ela visitar Rita Lee na cadeia. E é Rita quem assina o prefácio da obra. Um luxo. Num país em que não se preserva a memória, é importante repercutir a escrita de João.

Referência:

BÔSCOLI, João Marcello. Elis e eu: 11 anos, 6 meses e 19 dias com minha mãe. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019. Disponível em: <https://visionvox.net/biblioteca/j/Jo%C3%A3o_Marcello_B%C3%B4scoli_Elis_E_Eu.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2022.

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Guia traz recomendações para a dieta de crianças menores de dois anos

Documento aposta em alimentos in natura e despreza os ultraprocessados

Imagem: reprodução do PDF

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Quem tem criança pequena em casa, sabe que a fase da introdução alimentar é umas das mais desafiadoras. Como é repleta de novidades, tanto para a criança quanto para os seus responsáveis, é natural ter inseguranças e medos. Por isso, o caminho mais indicado para ter tranquilidade é a informação. Nesse sentido, o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos, publicado pelo Ministério da Saúde, em 2019, é, com perdão do trocadilho, um prato cheio. Com linguagem simples e didática, o guia reforça a importância de sempre colocar alimentos in natura na dieta e rechaça com veemência a ingestão de ultraprocessados (biscoitos, sucos artificiais, refrigerantes, salgadinhos de pacote, macarrão instantâneo, guloseimas etc.).

“Uma alimentação adequada e saudável deve ser feita com ‘comida de verdade’ e começa com o aleitamento materno”, diz o texto do Guia na página 12. Quem lê o documento, constata o quanto o leite materno é fundamental para a nutrição e desenvolvimento da criança. Tanto é que a publicação destina um grande espaço para falar sobre ele e sobre como armazená-lo, dica necessária para quando a mulher volta a trabalhar após a licença-maternidade. Até os seis meses de idade, o único alimento do bebê deve ser o leite materno. O texto justifica: “Produzido naturalmente pelo corpo da mulher, o leite materno é o único que contém anticorpos e outras substâncias que protegem a criança de infecções comuns enquanto ela estiver sendo amamentada, como diarreias, infecções respiratórias, infecções de ouvidos (otites) e outras”, p. 22. Uma curiosidade sobre este tema que é abordada no Guia é a possibilidade de amamentação por mulheres que adotam: “É possível uma mãe adotiva amamentar, mesmo que não tenha tido uma gestação. Para tal, é necessário que ela procure ajuda de profissional de saúde com experiência em lactação adotiva para receber as orientações e apoio”, p. 53.

O Guia afirma que a chegada de uma criança abre espaço para melhorar a alimentação de toda a família. Não é adequado fazer uma comida para a criança diferente da comida dos adultos. A comida deve ser a mesma. O que muda é a forma de ofertar, pois, para as crianças, é necessário fazer algumas adaptações. Outra coisa que é bastante enfatizada no documento é a importância do exemplo: “A aceitação de legumes e verduras pela criança tem relação direta com o consumo desses alimentos pela família. Muitas vezes, eles são comprados somente para a criança, não sendo consumidos por irmãs e irmãos mais velhos ou adultos. Com o tempo, a criança percebe que o restante da família não os consome e começa a rejeitá-los”, p. 81. O suco de fruta, que já foi o queridinho da nutrição, não é recomendado pelo Guia: “[…] recomenda-se que não sejam oferecidos sucos de frutas à criança menor de 1 ano, mesmo aqueles feitos somente com fruta. Entre 1 e 3 anos de idade, eles continuam não sendo necessários”, p. 85. Os responsáveis devem optar pelas frutas, pois ajudam a criança a exercitar a musculatura da boca e do rosto e não têm açúcar refinado. Além disso, a criança pode, ao ingerir o suco, deixar de beber água. Após os seis meses, a água pode e deve ser oferecida à criança.

É desaconselhável fazer chantagens ou prometer recompensas para a criança comer determinado alimento. Isso faz com que ela fique dependente e não cria uma consciência da importância da alimentação saudável para o seu desenvolvimento. Alguns alimentos devem ser oferecidos até dez vezes à criança. Por desconhecer o sabor, ela não aceita bem na primeira oferta.

O Guia é bem completo. Fala da importância de cozinhar em casa e envolver a criança nisso, de como comprar e armazenar os alimentos e dos direitos relacionados à alimentação infantil. No final, apresenta doze passos para uma alimentação saudável: 1) Amamentar até 2 anos ou mais, oferecendo somente o leite materno até 6 meses; 2) Oferecer alimentos in natura ou minimamente processados, além do leite materno, a partir dos 6 meses; 3) Oferecer água própria para o consumo à criança em vez de sucos, refrigerantes e outras bebidas açucaradas; 4) Oferecer a comida amassada quando a criança começar a comer outros alimentos além do leite materno; 5) Não oferecer açúcar nem preparações ou produtos que contenham açúcar à criança até 2 anos e idade; 6) Não oferecer alimentos ultraprocessados para a criança; 7) Cozinhar a mesma comida para a criança e para a família; 8) Zelar para que a hora da alimentação da criança seja um momento de experiências positivas, aprendizado e afeto junto da família; 9) Prestar atenção aos sinais de fome e saciedade da criança e conversar com ela durante a refeição; 10) Cuidar da higiene em todas as etapas da alimentação da criança e da família; 11) Oferecer à criança alimentação adequada e saudável também fora de casa; 12) Proteger a criança da publicidade de alimentos. Vale a pena ler e seguir as recomendações. O documento é um material de consulta que a família deve sempre ter por perto.

Referência:

BRASIL. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primaria à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/guia_da_crianca_2019.pdf>. Acesso em: 1 ago. 2022.

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Documentário que debate jornalismo cultural em Mato Grosso reflete cenário da prática em quase todo o Brasil

Jornalistas, artistas e agentes culturais debatem sobre jornalismo e cultura em curta documentário

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Que o jornalismo cultural precisa se repensar e se renovar, não é dúvida para ninguém. Tanto parte do público quanto parte do pessoal que integra a engrenagem (empresas jornalísticas, jornalistas, produtores culturais, artistas etc.) têm consciência disso. O fato é que muito pouco é feito para que a prática se oxigene e supere a divulgação de eventos e a reprodução de releases. Nesse sentido, o Com_Texto, coletivo mato-grossense de jornalismo independente, deu uma passo já importante: juntou todo mundo no documentário Cultura é Contexto!, que tem roteiro e direção de Beatriz Passos e Marcos Salesse, para refletir sobre o jornalismo cultural feito em Mato Grosso. O curioso é que o resultado da produção reflete o cenário da prática em muitos lugares do Brasil. São as mesmas queixas!

Lançado no dia 5 de julho, no canal do YouTube do coletivo, o curta documentário foi aprovado no Edital Movimentar, da Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer de Mato Grosso. O filme traz pontuais reflexões sobre o que é cultura e sobre como os profissionais do jornalismo podem ampliar esse entendimento, pensando em pautas que contemplem manifestações que fujam do óbvio, que ultrapassem o mais o mesmo.  Inclusive, isso foi uma tônica na fala dos depoentes. O posicionamento da equipe do Com_Texto fica nítido para quem assiste ao audiovisual. Ou seja, é um grito do coletivo mostrando que as coisas não estão boas e que é preciso melhorar. Para isso, convida todo mundo que faz para uma autorreflexão. Esse é o caminho mais importante para a mudança acontecer.

No vídeo, a jornalista Priscila Mendes diz que o jornalismo tem o papel de informar, formar e entreter, mas que, muitas vezes, a produção jornalística para no informar. “O papel de formar é uma das bases, pilares do jornalismo. Permitir a reflexão, permitir que a sociedade pense além do fato”. Para ela, o jornalismo cultural tem que se apropriar disso. José Lucas Salvani, que também é jornalista, levantou um ponto importante ao falar das redações dos jornais tradicionais e do jornalismo independente. Ele lembrou da falta de recursos nos dois universos, mas destacou que, ainda assim, alguns veículos da cena independente conseguem fazer um bom trabalho. “Se o jornalismo independente dá conta, por que uma redação com recursos não dá? É por que ela não quer? É por que ela não quer gastar? E eu acho que o que falta é investimento”. Como o documentário traz, falta mais atenção à editoria de cultura, diversidade nas pautas e na composição das redações, investimento do governo em promoção cultural, uma vivência e domínio de temas culturais por parte do jornalista. “O papel do repórter de cultura também é ser ponte e ser filtro”, enfatiza Priscila Mendes num trecho do curta.

Cultura é Contexto! é um documento necessário para quem se especializou em fazer jornalismo cultural. O filme é um convite à reflexão sobre o que está posto e sobre o que precisa ser feito para mudar. Obviamente, nada do que é dito pelos depoentes é novidade. Em 2007, por exemplo, durante o Colóquio Rumos Jornalismo Cultural, do Itaú Cultural, algumas questões postas no audiovisual foram abordadas. A discussão já tem um tempo e o reforço é sempre bom. Fez falta não ter os depoimentos de donos de empresas jornalísticas e de editores-chefes lá do Mato Grosso, para que trouxessem a visão deles sobre a questão. Para quem quiser sair da mesmice, Cultura é Contexto! indica bons caminhos.

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Um livro para aprender brincando

Catálogo reúne jogos, brincadeiras e informações sobre países africanos e o Brasil

Imagem: reprodução do livro

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Brincar na rua, com os amigos, usando os materiais disponíveis e colocando muita criatividade nisso tudo: essa realidade foi muito comum na infância da maioria da população negra. Do Brasil e de alguns países africanos. O Catálogo de Jogos e Brincadeiras Africanas e Afro-Brasileiras (Aziza Editora, 2022), organizado pelas professoras Helen Pinto, Luciana Soares da Silva e Míghian Danae, ilustrado por Rodrigo Andrade, deixa isso muito evidente. O livro, que foi contemplado pelo edital Equidade Racial, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), em 2020, partiu de uma pesquisa que fez “escuta de mulheres e homens do Brasil e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs), com idade entre 40 e 60 anos, sobre quais os jogos e as brincadeiras que conheciam”, p. 3. Entre outubro de 2020 e março de 2021, estudantes bolsistas, oriundos de sete países (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe), entrevistaram familiares e conhecidos de seus países de origem. Exceto José Maye (catalogou brincadeiras da Guiné Equatorial), que estuda na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), todos os outros pesquisadores são da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), campus Malês, que fica em São Francisco do Conde, na Bahia. São eles: Pedro Nguvu (Angola), Luliane Sousa (Brasil), Jacica Fernandes (Cabo Verde), Yacine Tavares (Guiné-Bissau), Hercinia Wasse (Moçambique) e Quezia Miranda (São Tomé e Príncipe).

O catálogo apresenta algumas brincadeiras e jogos interessantes, outros nem tanto.  Fita e Melancia, do Brasil, justificam o que digo. Muita atividade relatada tem semelhança com outras, de países diferentes. Por exemplo, Bica Bidom, brincadeira da Angola, tem a mesma dinâmica de Esconde-Esconde, daqui do Brasil. Assim como Escondida, de São Tomé e Príncipe. O Jogo da Carambola, de Cabo Verde, pela descrição presente no livro, é igual ao Jogo da Bola de Gude daqui. Por sinal, não está catalogado na obra. Curioso. Os países que têm mais brincadeiras e jogos catalogados são Angola e Brasil. Apesar de não ter sido o objetivo da pesquisa, faz falta a informação sobre a origem dos nomes das atividades listadas. Por que a brincadeira se chama AmarelinhaNeguri? O leitor fica muito curioso para saber. Na página 36, por exemplo, a obra explica o que é “bater foguinho”, na brincadeira Pula Corda (Brasil): “Na brincadeira, ‘bater foguinho’ é bater a corda em um ritmo acelerado, a fim de desafiar ainda mais quem está pulando – remete à sensação de quentura do atrito da corda com a pele de quem pula, por isso, deve-se ter cuidado com essa variação, para não haver machucados e queimaduras”. A explicação de alguns nomes de jogos e brincadeiras enriqueceria muito o catálogo.

É impossível ler o livro e não lembrar das brincadeiras e jogos que já participamos e daqueles que, pela descrição, a gente fica com vontade de participar. Mocho (Moçambique) é um bom exemplo: “Entre os participantes da brincadeira, um deve ser escolhido para ser o mocho, aquele que vai se esconder. Os demais integrantes devem ficar de costas, esperando que o mocho se esconda. Em seguida, o grupo sai à procura do mocho. A primeira pessoa a encontrá-lo não deve avisar a ninguém da sua descoberta. Em vez disso, deve se juntar ao mocho, escondendo-se também, enquanto os demais continuam a busca”, p. 56. Terra-Mar, também de Moçambique, é simples, mas deve ser muito divertida, porque exige atenção redobrada: “Uma longa reta deve ser riscada no chão. De um lado, escreve-se ‘terra’ e do outro, ‘mar’. No início, todas as crianças podem ficar do lado da terra. Ao ouvirem ‘mar!’, todas devem pular para o lado do mar. Ao ouvirem ‘terra!’, pulam para o lado da terra. Quem pular para o lado errado é eliminado da rodada. O último a permanecer sem errar, vence”, p. 58. Lembra muito o Morto-Vivo, que, curiosamente, também não foi catalogada. Achei a brincadeira Banho no Rio – Plantar Bananeira (Brasil) um pouco perigosa. Principalmente, pela sugestão de ser feita dentro d’água, mesmo com o alerta de ter um adulto supervisionando.

Na Apresentação da obra, a gente lê:

“Este catálogo foi produzido com base nessa recolha de dados e esperamos que seja utilizado em redes municipais de educação básica – em especial na etapa da educação infantil – dos países envolvidos.

Objetivamos que este material possa colaborar, no Brasil, para a aplicação, nas escolas, da Lei 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (nº 9.394/96), além de auxiliar nas reflexões sobre processos curriculares e abordagens pedagógicas inovadoras e na produção de propostas pedagógicas de mediação estética e lúdica”, p. 3.

O objetivo é cumprido. O catálogo deve ser usado pelas instituições de ensino, numa forma de implementar o que preconiza a Lei 10.639/2003. O fato de pesquisadores terem se debruçado sobre a temática das brincadeiras e jogos africanos e afro-brasileiros é de um ganho enorme para a nossa cultura, que é alicerçada pelas contribuições do povo negro. Além disso, o livro estimula o brincar, ação importante para toda e qualquer criança. A vontade de quem lê é sair brincando, seguindo o que está descrito. É para aprender brincando mesmo!

Referência:

PINTO, Helen Santos; SILVA, Luciana Soares da; NUNES, Míghian Danae Ferreira (Orgs.). Catálogo de jogos e brincadeiras africanas e afro-brasileiras. São Paulo: Aziza Editora, 2022. Disponível em: <https://anansi.ceert.org.br/biblioteca-pdf/catalogo-jogos.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2022.

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Livro voltado para o público infantil mostra como ser antirracista desde a mais tenra idade

Publicação é fruto de parceria entre a Defensoria Pública do Estado da Bahia e a UFBA

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

“Nossa querida Bia é a realização de uma mãe que vive o desafio de educar seus filhos de pele negra em uma sociedade racista”. Essa mensagem está na apresentação do livro Nossa querida Bia: enfrentamento ao racismo desde a infância e só quem é responsável pela educação de crianças negras sabe o quanto ela é importante. Fazer com que essas crianças tenham uma outra narrativa na vida, com estímulos positivos em relação aos seus traços e aspectos culturais, é o principal objetivo da publicação, lançada em 2020, numa parceria entre a Defensoria Pública do Estado da Bahia(DPE-BA) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Escrita por Eva Rodrigues, Gisele Argolo e Laissa Rocha (DPE-BA); Karina Menezes e Nanci Franco (Núcleo Integrado de Estudos e Pesquisas em Infâncias e Educação Infantil (NEPESSI), da Faculdade de Educação da UFBA (Faced)), a obra é extremamente didática e precisa nas informações que traz.

Composto por quatro minicontos (Os cabelos de cada pessoa, Cada um com sua religião, Princesas negras e Vou ser médica), o livro prende a atenção por ter histórias interessantes e por discutir a temática do racismo na infância. E, ainda melhor, estimula o tempo todo o antirracismo, que deve ser um compromisso de toda a sociedade, independentemente da etnia. Bia, a protagonista, foi inspirada em Ana Beatriz Rocha, filha de Laissa, que também é mãe de João Gabriel Rocha. Ambos são negros e isso justifica a mensagem da apresentação, que foi destaque na abertura desta resenha.

Ao ler os contos, percebe-se um trabalho bem apurado de pesquisa, para evitar equívocos. No primeiro, Os cabelos de cada pessoa, a tônica é a de que não existe cabelo bom e cabelo ruim. Existe cabelo; no segundo, Cada um com sua religião, o objetivo é fazer com que todas as religiões sejam respeitadas. A narrativa desmistifica o viés negativo dado à palavra macumbeira, por exemplo; o terceiro, Princesas negras, mostra a importância de as crianças negras saberem de sua ancestralidade; o quarto, Vou ser médica, fala de representatividade. Nesse sentido, destaca como é fundamental para as crianças, e todas as pessoas negras, de uma forma geral, se verem em lugares de poder.

O livro apresenta as histórias, explica o assunto de cada situação narrada e convida o leitor a partir para a ação, através da seção O que eu posso fazer? Inclusive, disponibiliza o e-mail infanciasemracismo@defensoria.ba.def.br para que as pessoas denunciem casos de racismo e de injúria racial. Além disso, traz sugestões de leitura e de filmes que ajudam a reforçar toda a potencialidade dos povos negros. A obra, que já foi reconhecida numa premiação nacional, está disponível em PDF, no site da Defensoria, e também está sendo distribuída nos postos da instituição.

As pessoas interessadas podem pegar a versão impressa do livro nos postos da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Foto: Raulino Júnior

É sempre gratificante ver iniciativas como essa, que, de fato, promove o antirracismo. Para combater o racismo, é necessário agir para que a transformação aconteça. Não dá mais para ficar só no discurso. Já deu! O livro é para todo mundo: crianças não negras e adultos! Que a mensagem de Nossa querida Bia ecoe pelo mundo! A Lei 10.639/2003 agradece! Assim, vamos caminhar para uma sociedade mais igualitária e sem violência racista.

Referência:

RODRIGUES, Eva dos Santos; ARGOLO, Gisele Aguiar Ribeiro Pereira; ROCHA, Laissa Souza de Araújo; MENEZES, Karina Moreira; FRANCO, Nanci Helena Rebouças. Nossa querida Bia: enfrentamento ao racismo desde a infância. 1. ed. v.1. Salvador: ESDEP, 2020.

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Primeira biografia de Elis Regina mostra a artista bem de perto e com contradições coerentes

Imagem: reprodução do site Estante Virtual

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Hoje, faz exatos 40 anos que Elis Regina Carvalho Costa deixou fãs e admiradores muito tristes com a sua partida precoce aos 36 anos. Na época, foi uma comoção. Desde lá, a cada dia 19 de janeiro, o sentimento permanece e é isso que faz Elis se manter viva na memória da cultura brasileira. A morte de um ídolo dá vazão a uma série de documentos sobre sua vida e trajetória. Com a cantora porto-alegrense, não seria diferente. Nesse aspecto, Elis também é campeã. São documentários, livros, coletâneas, série e filme. Em 1985, três anos após a sua morte, a editora Nórdica publicava Furacão Elis, de Regina Echeverria, responsável pela primeira biografia da Pimentinha (apelido dado por Vinicius de Moraes).

A obra tem um diferencial por ter sido publicada pouco tempo depois do fatídico dia 19. Assim, Regina conseguiu colher depoimentos e apurar fatos com uma proximidade muito grande do acontecimento. A biógrafa fez mais de 100 entrevistas para contar a história da filha de Ercy Carvalho e Romeu Costa. O livro-reportagem detalha muita coisa. Por exemplo, o nome “Elis” foi sugerido por uma amiga de Ercy. “O Regina vem de uma exigência legal. Na burocracia da época, as crianças não podiam ser batizadas com nomes que tanto serviam para meninos como para meninas. Já prevendo que não pudesse batizar sua menina apenas Elis, dona Ercy mandou um Regina de reserva”, p. 16. Elis já cantava nas reuniões familiares, mesmo bem pequena. Porém, aos sete anos, quando foi se apresentar no programa Clube do Guri, da Rádio Farroupilha, travou. Só soltou a voz na atração quando tinha onze anos. E o Brasil ganhou aquela que é considerada sua maior cantora por causa da falta de dinheiro da família para comprar um piano. Na página 28, Regina narra: “Aos 9 anos, Elis foi aprender piano com a professora Waleska, uma vizinha da vila do IAPI. Estudou dois anos. Aprendia rápido demais, tão rápido que se viu diante do dilema: ou comprava um piano ou parava de estudar. Elis Regina começou a cantar porque não podia comprar um piano”. Através da leitura do livro, a gente fica sabendo que Elis fez um aborto. “Ela ficou grávida, fez o aborto e não me disse nada. Disse depois”, Solano Ribeiro em depoimento para o livro. Ele foi namorado de Elis e o término foi potencializado por causa desse fato.

Furacão Elis se debruça sobre a trajetória da cantora antes e depois que ela foi para o Rio de Janeiro, em março de 1964, aos 18 anos. A biografia mostra a ascensão da artista e traz depoimentos de pessoas que estavam na sua órbita, como Ronaldo Bôscoli, Miele, Roberto Menescal, Nelson Motta, Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil, só para citar alguns. Gil, inclusive, revela que tinha inveja e tesão por Elis: “Ela era diferente das outras cantoras – a gestuália toda, a voz, o modo de cantar, o repertório. E eu fiquei logo oprimido na primeira vez que a vi. Esses artistas todos me oprimem. Com Maria Bethânia tenho a mesma sensação. São todos meus pares, porém me sinto oprimido. Mas isso é coisa de deformação da minha personalidade mesmo, coisas de inveja, de dificuldade. E eu tinha muito isso com ela. Então, vê-la ali, em casa, descontraída, a coisa se tornava mais palpável. Eu ficava com tesão. Ficava louco por ela. Ela nunca soube disso. Pode ter suspeitado, porque eu era muito terno com ela”, p. 67. O livro mostra algumas contradições de Elis, desmistificando a ideia da cantora segura de si, independente. A Elis do livro é forte e frágil ao mesmo tempo. É humana. Longe de ser aquela fortaleza que muitas pessoas idealizavam. Solano afirma que “ela se deixava mesmo influenciar”. A personalidade forte, no entanto, aparece nas linhas escritas por Echeverria. A coisa de mudar da água para o vinho, dos ciúmes, da rivalidade com outras cantoras, a briga e a reconciliação na mesma intensidade: tudo está lá e caracteriza Elis. Na página 95, Regina afirma: “Seu furacão incomodava e instigava as pessoas. Seu pingue-pongue de ódio e paixão enlouquecia quem buscava nela alguma coerência”. E reforça isso no Capítulo VI: “Ao mesmo tempo em que pregava a independência, mergulhava em sofridos momentos de angústia, em profunda solidão”, p. 107.

De acordo com a narrativa de Furacão Elis, quando a cantora começou a ganhar dinheiro, a relação com a família ficou tensa. Houve um rompimento. Dona Ercy confidenciou a Echeverria que chegou a passar fome. Hoje em dia, o sonho de muitas cantoras é fazer carreira internacional. Elis não tinha esse desejo. Queria fazer sucesso no Brasil. E fez. Falso Brilhante, de 1975, foi uma apoteose. Ficou 14 meses em cartaz. Claro que muitos conflitos aconteceram, Myriam Muniz, que dirigiu o espetáculo, fala deles na biografia. A diretora ficou na função só até dez dias após a estreia.

É bonita a forma como Elis Regina e Rita Lee construíram uma tímida amizade. Isso é narrado no livro com uma atmosfera poética muito grande. Duas mulheres donas de si, desbravadoras, com muita personalidade. Rita e o marido, Roberto de Carvalho, compuseram Doce de  Pimenta para Elis. Uma letra certeira, que define muito bem a essência Elis Regina de ser. Maria Rita, filha de Elis, tem esse nome em homenagem a Rita. “Maria Rita” era uma das formas que Elis chamava Rita.

Teria muito mais coisa para falar sobre Furacão Elis, mas a melhor dica é ler. Lendo, a gente monta o quebra-cabeça e consegue ter uma noção de quem foi Elis e de toda a sua grandiosidade. Regina Echeverria fez um excelente trabalho. Deu lugar ao contraditório, mostrou as fraquezas e potencialidades da artista. Como canta Caetano, “de perto, ninguém é normal”. Não é. Elis não era.

Referência:

ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Editora Globo, 1994.

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Você viveu a Boo?

Livro-reportagem conta a história de casa de show que se destacou na noite de Salvador

Ilustração: Jajá Cardoso

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Se você viveu, ótimo; se não viveu, tem uma oportunidade de conhecer toda a efervescência da casa de show que ficou em atividade por quatro anos (2006 a 2010), na Rua da Paciência, 307, Rio Vermelho: a leitura do livro-reportagem Efeito Boomerangue: o legado da casa de shows na cena cultural de Salvador, de autoria de Luciano Marins, produtor cultural, jornalista e mestre em Comunicação e Educação Audiovisual pela Universidad Internacional de Andalucía. A obra, publicada em 2016, é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Produção em Comunicação e Cultura, que Marins fez na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Em sete capítulos, Luciano discorre com propriedade sobre a Boomerangue, através de narrativas compostas por depoimentos, fotos e textos. Tudo com muito detalhe. Quem lê, fica sabendo do rider técnico, do cardápio, de como eram os ingresssos, da dinâmica pensada pela assessoria de imprensa para chamar a atenção da mídia e fazer uma comunicação responsável e de qualidade. A inauguração do espaço aconteceu no dia 28 de novembro de 2006, com show de Mariene de Castro. A última festa (Noite Fora do Eixo + Boogie Nights) foi no dia 4 de junho de 2010, deixando o público carente da Boo, como era carinhosamente chamada pelos frequentadores.

Com o slogan Quem vai, volta, a Boomerangue nasceu do sonho de Alex Góes de abrir uma casa noturna. O cantor e compositor soteropolitano, bastante conhecido na cena cultural da cidade, já tinha dez anos de carreira quando implementou o projeto. Obviamente, contou com a ajuda de parceiros. Além de Góes (responsável pela programação  musical e cultural da casa), André Barreto Gomes (responsável pelo gerenciamento do setor operacional), Aurélio Pires Júnior (relações públicas) e Rui Santos (setor financeiro e recursos humanos) fizeram o sonho acontecer. Técio Filho era sócio-proprietário da Boomerangue, em parceria com Alex Góes. Contudo, no livro, a forma como a sociedade se deu não é narrada. Técio é arquiteto e, em depoimento para a publicação, diz que entrou na casa “apenas para conceber o espaço físico, organizar a estrutura tanto no que tangia à parte funcional quanto estética. Depois que existiu o envolvimento no que eu poderia dizer que foi a segunda gestação, em que começamos a entender a vocação do espaço onde passamos a não só reforçar as diversas vocações percebidas, como também fazer com que elas interagissem de alguma forma, num processo de experimentação mesmo”, p. 15.

A Boomerangue se destacava pela pluralidade de sons. Isso era uma tônica da casa e aparece em quase todos os depoimentos do livro. Por lá, passaram artistas de blues, axé, funk, dance, pop, MPB, reggae e rock. Tudo isso convivia lado a lado na Boo. Ou melhor: no andar de cima e no andar de baixo. Porque o equipamento cultural “tinha dois ambientes independentes e acusticamente isolados”, p. 22. Outro ponto alto de lá eram as festas temáticas. O capítulo 4 é todo dedicado a elas e Luciano enumera algumas, como a Nave, o Baile Esquema Novo, a TOP TOP, a Brinks, a Kick e a JUMP UP.

O livro é muito rico em material de acervo. Luciano conseguiu reunir muitas fotos dos artistas que se apresentaram lá e imagens dos cartazes das festas emblemáticas, que marcaram a identidade da Boomerangue. A leitura é agradável. Principalmente, para quem se interessa por música e produção cultural. Quem vai, volta. E não existe ida sem volta. É preciso olhar o passado para construir o presente. A Boo deixou o legado dela. Viva!

Referência:

MARINS, Luciano. Efeito Boomerangue: o legado da casa de shows na cena cultural de Salvador, Salvador: 2016.

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