Relato aborda o diagnóstico do câncer e o tratamento durante a pandemia
Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||
“Algo me diz que tenho escrito muito sobre morte. Aliás, por que há tanta gente que até se benze quando tocamos no assunto? A morte é a única verdade, e cada dia a mais vivido é um dia a menos que se vive. Pra quê fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela com humor? Desta vida, não escaparemos com vida”. Esse trecho, presente na página 82 de Rita Lee: outra autobiografia (Globo Livros, 2023), sintetiza muito bem o teor da obra: é um relato leve, debochado e repleto de passagens que constatam que a autora tinha muita consciência de sua finitude. No texto, a paulistana Rita Lee Jones de Carvalho (1947-2023) narra como se deu a descoberta do câncer no pulmão, o tratamento durante a pandemia do coronavírus (o diagnóstico foi dado em abril de 2021) e a preparação para uma exposição em homenagem à sua carreira. O deboche e a autozoação eram traços marcantes da personalidade de Rita, presentes nesta e também em sua primeira autobiografia, lançada em 2016.
A narrativa de Rita Lee parece ser uma conversa com amigos na sala de estar. É simples e interessante, além de bem-humorada. Ela trata as pessoas que conheceu durante o tratamento de “oncolegas” e batiza um dos seus tumores de “Jair”, numa referência a Jair Bolsonaro, amplamente criticado na autobiografia. Por sinal, referência era uma coisa que a roqueira tinha para dar e vender. Ao longo do texto, ela faz menção a várias canções da Música Popular Brasileira (MPB): “Mistérios sempre hão de pintar por aí” (p. 20), “Queria dar beijinhos e carinhos sem ter fim nessa moçada…” (p. 124), “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte” (p. 144) e algumas outras. Rita também cita várias experiências sobrenaturais que teve durante a vida e durante o tratamento, reflete sobre a velhice, proteção de animais e da natureza. E mostra acidez e humor ao falar dessa última: “Fumava para meditar sobre uma letra de música, buscar uma solução para problemas caseiros ou dar uma pausa e só bundar no jardim pensando em como salvar a Natureza enquanto poluía com meu tabaco os delicados aromas das gardênias, dos manacás, das damas-da-noite, ou seja, a mesma Natureza que eu queria tanto salvar… lá estava eu jogando Marlboro no ar. Rita paradoxal. Alguma coisa estava fora da nova ordem mundial em relação aos cuidados com nossa Terra Nave Mãe”, p. 35-36.
Rita acreditava que fosse se curar do câncer. No último parágrafo do capítulo A radioterapia, ela diz: “Mas, em grande parte das vezes, o medo pelo sofrimento que a quimio causou em minha mãe foi suplantado pelo desejo de me curar daquele câncer em homenagem a ela, como uma vingança tipo máfia siciliana”, p. 52. Contudo, no próprio texto, ela revela algumas malandragens que fazia para não tomar os remédios e fingir que estava ganhando peso. Phantom (intervenções de Guilherme Samora), o fantasma onisciente que também esteve na primeira autobiografia, é quem entrega: “Rita, agora que está com dois quilos a mais, não seria a hora de contar o truque de colocar um peso de papel no bolso para enganar a balança e não ter que comer toda hora?”, p. 132.
No dia 8 de maio deste ano, Rita Lee morreu, deixando um legado na música, na literatura e no comportamento. “Aquela velha frase: nunca fui um bom exemplo, mas sempre fui gente fina”, p. 120.