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2020: o ano-lupa. O que você enxergava, mas não via?

Imagem: reprodução do site Freepik

Por Raulino Júnior ||Desde Já: as crônicas do Desde||

Em sua coluna Fique de Olho, da Rádio USP, publicada no Jornal da USP em junho deste ano, o professor Eduardo Rocha, que é titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FMRP/USP), explicou para quem quisesse ouvir a diferença entre enxergar e ver. Na ocasião, o docente disse: “Enxergar significa, e se resume, ao ato biológico de registrar com os olhos. E, muitas vezes, algumas ações automáticas são feitas sem que nem percebamos em relação a isso. Ver envolve cognição, envolve interpretação; e assim é um ato cerebral, relacionado à visão, mais profundo”. 2020 foi um ano em que tivemos que parar, devido à pandemia do novo coronavírus. É verdade que muita gente não pôde fazer isso, por falta de condições e por necessidade. Contudo, em geral, as pessoas se viram obrigadas a adiar projetos, a se perceber e a perceber os outros com mais atenção. O ano nos forçou a colocar uma lupa em várias questões. Nesse sentido, o que você só enxergava, mas não via?

Viver no automático, como se fosse um robozinho programado para cumprir uma ação, faz o ser humano não ver muita coisa que acontece no seu entorno, que está diante dos seus olhos. 2020 trouxe isso. Com um pouco mais de tempo, a gente percebeu mais as coisas, as sensações. Vimos quem estava perto, mesmo longe; e quem estava longe, mesmo perto. Quem estava próximo e ficou ainda mais próximo e quem estava distante e ficou ainda mais distante. Quem, de fato, tem carinho por nós; e quem só lembra da gente nos momentos de apuro, quando há algum interesse. É como se tivéssemos tomado uma sacudidela da vida para apurar a vista e ver o óbvio. Isso, infelizmente, vira terreno fértil para decepções.

Eu vi muita coisa. Inclusive, coisas que não queria ver. Sei lá. Tem hora que é bom viver na ilusão. É menos nocivo e a nossa saúde mental agradece. No entanto, vi falsidade, frieza, silenciamentos, invisibilização. Vi gente defendendo ideais fascistas e corroborando práticas que condenava quando quem estava no poder não era gente da sua mesma laia. Vi gente, em público, defendendo ideias que não prejudicam o viver em sociedade; mas, em particular, avalizando opressões feitas pelo seu bloco do prazer. Vi gente confundindo mudança, que é natural e todo ser humano passa por isso, com caráter. Todo mundo muda e pode (às vezes, até deve) mudar, mas caráter é marca. Está lá na etimologia da palavra.

Fazendo um balanço: o ano foi triste, de muitas mortes, de muitos retrocessos. No mundo e no Brasil. Isso ninguém quer ver mais. Por outro lado, teremos que nos manter vigilantes, sempre com uma lupa na mão, para ninguém achar que a gente só está enxergando as coisas. Depois desse turbilhão que foi 2020, a nossa vista vai se manter apurada. A gente vai ver mais e enxergar menos. Isso é bom. E é ruim. É a vida.

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Ruth de Souza: uma estrela (também) da TV!

 Atriz brilhou no teatro, no cinema e deixou a sua marca na televisão brasileira

Ruth de Souza: talento e perseverança. Imagem: reprodução do site da Imprensa Oficial

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

É impossível comemorar os 70 anos da televisão brasileira sem citar pessoas que dedicaram toda a vida para essa fantasia acontecer. Nesse sentido, o nosso destaque vai para a atriz Ruth de Souza (1921-2019). Em 2007, foi publicada a biografia Ruth de Souza: estrela negra, de autoria de Maria Angela de Jesus. A obra integra a famosa e bem-sucedida Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que tem como objetivo “preservar a memória da cultura nacional e democratizar o acesso ao conhecimento”.
O livro parte de um depoimento de Ruth a Maria Angela e isso torna a narrativa bem intimista, como se o leitor estivesse na sala da homenageada, ouvindo aquela conversa interessante. Ao tomar parte do bate-papo, ele fica sabendo que a artista carioca não gostava de revelar a idade, de palavrões, nem de falar de sua vida íntima. Embora, se sentindo à vontade diante da autora, soltava uma coisa aqui outra ali. Como, por exemplo, o relacionamento que teve com Abdias do Nascimento, considerado um dos mais marcantes da sua vida. A propósito, com Abdias, fundou, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), importante referência nas artes cênicas do Brasil. No TEN, fez grandes papéis e foi, de acordo com o que é documentado na biografia, a primeira Desdêmona negra do Brasil. Tal personagem integra a peça Otelo, do inglês William Shakespeare. Ao longo da carreira no teatro, atuou em Vestido de Noiva (Nelson Rodrigues) e Quarto de Despejo (adaptação de Edy Lima com base no livro de Carolina Maria de Jesus). Em 1983, Ruth voltou a representar Carolina num episódio de Caso Verdade, programa exibido pela Rede Globo. “Foi um dos melhores trabalhos que fiz na televisão. Era um ótimo papel, interpretando uma pessoa viva, e com uma produção extremamente caprichada da Rede Globo”, p. 62.

Ruth de Souza e Abdias do Nascimento em Otelo, de Shakespeare. Imagem: reprodução do livro

Nascida no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, Ruth viveu um tempo em Minas Gerais e voltou para o Rio quando tinha nove anos, onde fixou residência em Copacabana. Filha de Alaíde Pinto de Souza e de Sebastião Joaquim Souza, a atriz sempre foi apaixonada por cinema. Apesar de o livro trazer a informação de que Ruth evitava fazer discursos sobre preconceito racial, a atriz tinha consciência da violência racista que estava presente nos estúdios e nos palcos pelos quais passou: “O fato é que realmente não existia espaço para o ator negro. Era uma realidade da época. Hollywood também massacrava seus atores negros. Isso é uma verdade”, afirma na página 29.
O sonho de trabalhar com cinema se concretizou na vida adulta e Ruth passou pela Atlântida e pela Vera Cruz, companhias cinematográficas que revolucionaram a sétima arte brasileira. Nelas, entre outros, fez os filmes Terra Violenta (Atlântida, 1948) e Sinhá Moça (Vera Cruz, 1953), que rendeu a sua indicação para o Prêmio Saci, do qual foi vencedora.

Ruth de Souza: linda pela própria natureza. Imagem: reprodução do livro

A biografia mostra a parceria de Ruth com alguns notáveis colegas de trabalho, como Grande OteloOscarito e Mazzaropi. Faz críticas duras em relação a esse último: “[…] Mazzaropi era uma pessoa muito difícil e era muito pão-duro. Era até um pouco racista. Ele não me dava muita atenção. Não era meu amigo. Nunca foi! Ele não era nem um pouco generoso”, p. 83. Durante um ano, estudou teatro nos Estados Unidos. Para ela, “o teatro é a base da arte de representar”, p. 74. Ainda na mesma página, complementa: “Acho que todo ator tem de fazer teatro para depois partir para o cinema ou televisão. Só assim o artista vai realmente entender o que está fazendo, o que é ser ator”.
Brilho na TV
Na televisão, Ruth fez novelas, especiais e participou de programas de humor, como Os Trapalhões. Passou pela ExcelsiorTupiRecordTV e Rede Globo. A primeira novela que fez foi A Deusa Vencida (Excelsior, 1965) e considerava o trabalho em A Cabana do Pai Tomás (Globo, 1969) com um dos mais importantes da sua carreira na TV: “Se fizer um balanço da minha carreira na televisão, o trabalho em A Cabana do Pai Tomás foi um dos mais importantes. Foi a única novela que estrelei mesmo, fazendo o papel principal da trama: a mulher do protagonista, Sérgio Cardoso”, p. 96. Na trama, Ruth fazia Cloé,  principal papel feminino da novela.

Ruth como Cloé em A Cabana do Pai Tomás (1969). Imagem: reprodução do livro

No livro, ela cita outros trabalhos marcantes que fez na caixinha setentona: Duas Vidas (1977), Sétimo Sentido (1982) e O Grito (1975), todos da Rede Globo; mas também critica outros, como Sinal de Alerta (Globo, 1978) e O Rebu (Globo, 1974). Sobre Sinal de Alerta, esbraveja “Que novela horrorosa! Era sobre poluição, com direção de Walter Avancini. Um papel chato, que não me traz grandes lembranças”, p.  101. Sobre O Rebu, é categórica: “Era um papel que não ia me acrescentar nada. Pedi para sair!”, p. 102. A atriz também não via com bons olhos a pressão imposta em produções de TV, julgava desnecessária: “A televisão tem uma capacidade muito maior do que o cinema para fazer uma cena bonita, mesmo com toda a correria. Aliás, uma correria que não tem tanta necessidade. Não vejo porque é preciso correr tanto, fazer tudo para ontem, o que é um horror! E o que é a televisão? É uma boa história, um bom texto. Quando você percebe cada ponto, cada vírgula, isso é um bom texto”, p. 70 e 71.
Ler a biografia de Ruth de Souza é estar diante de uma mulher determinada, segura, sem meias palavras, consciente do seu talento e que sempre estava disposta a trabalhar. Durante toda a vida, Ruth mostrou que ser perseverante era o caminho para conquistar os próprios sonhos. Num dos trechos da excelente obra, Maria Angela de Jesus destaca uma reflexão da atriz sobre essa característica: “A força de uma pessoa que tem talento, que persiste no sonho e tem um objetivo, acaba fazendo as coisas acontecerem. Só é preciso planejar. A gente tem de planejar no seguinte sentido: O que eu quero?! Como é que vou conseguir isso? Como é que vou chegar onde quero?“, p. 52. Ruth nunca se casou nem teve filhos, mas deixou para a cultura brasileira um legado que vai atravessar gerações.
Referência:
 
JESUS, Maria Angela de. Ruth de Souza: estrela negra. 2. ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. (Coleção Aplauso).
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Em autobiografia, Rita Lee se mostra, se “amostra” e se zoa

Considerada a Rainha do Rock Brasileiro, artista também merece a coroa de Rainha do Deboche

Rita Lee não esconde a verdadeira identidade em autobiografia lançada em 2016. Imagem: reprodução do site da Globo Livros

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Rita Lee: uma autobiografia (Globo Livros, 2016) é uma daquelas obras que interessam a quem gosta de música, de cultura brasileira e de rir. Pois é. Se você gosta de rir, a leitura do livro da paulistana Rita Lee Jones de Carvalho é um ótimo mote. Quem lê o exemplar, ri o tempo todo. E não é exagero. A forma como madame Lee relata os fatos de sua vida arranca o riso de qualquer mal-humorado. Até nas passagens mais dramáticas, como no trecho em que ela narra o estupro que sofreu na infância: “Se meu pai ficasse sabendo, provavelmente iria atrás do sujeito para matá-lo e não seria bom para ninguém o chefe da família ir pra cadeia. Portanto, as mulheres seriam as únicas guardiãs do meu ‘tesourinho’ arrombado. […] Acredito que foi a partir daquele momento que las mujeres passaram a relevar meus desajustes comportamentais”, p. 17. O sujeito citado por Rita foi um técnico que tinha ido ao casarão onde a família morava para consertar a máquina Singer da mãe, dona Chesa. É importante dizer que o riso vem, obviamente, da forma como Rita narra, não da violência sofrida, que deve, a qualquer tempo, ser rechaçada e denunciada.

No livro, a cantora parece fazer questão de mostrar tudo que fez na vida, inclusive o que é reprovado socialmente. A lista é grande: o avô que lhe dava cerveja preta com açúcar, quando ela era criança, sem que os adultos da casa soubessem; o roubo do vestido de noiva usado por Leila Diniz na novela O sheik de Agadir, que pertencia ao acervo da Rede Globo e que Rita guarda até hoje; outro roubo: um par de botas de uma famosa butique de Londres, que a roqueira ainda tem também; as “viagens” de ácido (a cantora chega a usar a expressão “o pó nosso de cada dia”, no capítulo Bad in Rio); a única overdose que teve; a curtição de fileira de pó a convite de Nelson Gonçalves; as inúmeras vezes que foi internada para tratar do alcoolismo. Como resposta a tudo isso, Rita sugere, no capítulo intitulado Profecia, o seu epitáfio: “Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”, p. 278. “Nossa Senhora da Malandragem”, que a cantora cita no capítulo Malandragem, que o diga. Não deixa de citar também as polêmicas nas quais se envolveu durante a carreira, como a confusão no Festival Verão Sergipe, em 2012.

Mesmo publicada em 2016, quando algumas questões sociais, como o racismo, já estavam sendo discutidas com mais afinco, a filha caçula de Charles e Chesa traz um desfile de expressões preconceituosas na sua narrativa. Ao descrever a irmã mais velha, Mary, ela diz: “Seu grande complexo era o cabelo pixaim (de onde vinha aquilo?), usava tudo quanto era produto químico para alisar, até ferro de passar roupa, além da mania de fazer nozinhos e arrancá-los”. p 21. No meio do caminho, os leitores também encontram “uma ex-escrava da família do meu bisavô…” (p. 36), “lista negra” (p. 107), com sentido negativo, e “mulata peituda/bunduda” (p. 151).

Rita conta sobre os casinhos amorosos que teve, com Paulo Coelho e André Midani, por exemplo; que, dos ícones da Jovem Guarda, seus preferidos eram Erasmo (pela atitude) e Wanderléa (pelo encanto); explica a sua rusga com Ezequiel Neves, a quem chamava de “Abominável das Neves”: “[…] foi quem plantou na imprensa o boato de que eu estava com leucemia”, p. 179; critica os críticos de música: “Críticos de música adoravam me crucificar, não importava o que eu fazia ou deixava de fazer, um ranço que durou por todos os meus cinquenta anos de estrada. Até hoje é quase impossível encontrar matérias falando bem de um trabalho meu. Os caras não escondiam que eram membros do bocejante time ‘Pra fazer rock tem que ter culhão'”, p. 215. Contudo, na mesma página, para não ser injusta, diz que dois jornalistas a achavam bacana e aproveita para criticar o jornalismo cultural da atualidade: “Dois que hoje fazem a maior falta nessa mesmice tediosa do panorama jornalístico rabo-preso: Telmo Martino e Paulo Francis, gênios rebeldes para os quais tiro meu chapéu e lhes faço cortesia. Com esses dois do meu lado, quem precisava de ‘amiguinhos’ na imprensa?”. Ainda nessa seara, a ex-apresentadora do TVLeezão (MTV, 1991) e do Madame Lee (GNT, 2005) critica dois apresentadores de TV: “Entre as poucas apresentações de tv de que participei para divulgar o Acústico, fiz questão de incluir o Programa do Ratinho, algo considerado vulgar por artistas de calibre, onde cantei ‘Alô, alô marciano’ com orelhinhas de et e recebi um tratamento muito melhor do que naqueles dois programas onde os apresentadores falam mais do que o convidado e o interrompem quando você está cantando”, p. 251. Ela também não deixa de falar o quanto era uma estudante que dava trabalho: “Fui uma ginasiana medíocre, sempre passando de ano raspando, sempre me sentando no fundão, sempre conversando muito e sempre sendo expulsa da classe. Tinha que manter a minha fama de mau”, p. 57.

Rita e suas peraltices: “Nunca fui santa”. Imagem: reprodução do livro

Quem lê a autobiografia, fica sabendo que a mulher de Roberto de Carvalho teve uma experiência homossexual: “Bêbados adoram o tema ‘tem que comer quiabo para saber que não gosta’ e nessas troquei uma figurinha íntima com uma mocinha bonitinha que encontrei num bar e levei para casa. Ficou lá meia hora, tempo suficiente para tirar a prova de que eu não gostava mesmo de quiabo, momento minissaia”, p. 237; que foi presa e o motivo disso, e que fez um aborto, do qual se arrependeu. Inclusive, ao tratar do tema, é a primeira vez que a gente sente seriedade na narrativa. Vale a pena reproduzir aqui o depoimento forte e contundente de Rita:

“Nenhuma mulher faz aborto sorrindo. Cabe a elas, e somente a elas, a decisão de interromper uma gravidez, assim como de segurar sozinhas as consequências moral, espiritual e oskimbau. Me refiro ao ‘sagrado feminino’, de nós meninas que temos um buraco a mais no corpo para administrar, do nosso universo complexo demais para machos, religiosos e políticos meterem o bico, esses para os quais prevalecem mais o direito do feto que ainda nem nasceu ao da mãe que não deseja pari-lo por motivos que não nos cabe julgar, psicológicos, econômicos, neurológicos, até mesmo espirituais.

Aborto não é uma mutilação no corpo da mulher. Há em suas entranhas um ser indesejado advindo de estupro, acefalia e de tantas deformações irreversíveis já detectadas nas primeiras semanas de gestação. Parir e abandonar o bebezinho numa lata de lixo é criminoso. Parir e pôr para adoção é irresponsavelmente confortável. Parir e criar em condições sub-humanas é indigno. Parir para ganhar bolsa família é humilhante”, p. 174.

Exibição

A icônica capa do bem-sucedido álbum de 1979, que ficou conhecido como Mania de Você. Imagem: reprodução do livro

Claro que o relato autobiográfico de Rita Lee é, obviamente, um espaço para ela exibir as suas conquistas. E não há nada de errado nisso. É legítimo. Se ela não fizer, quem vai fazer, não é? De acordo com o texto, ela é a mulher brasileira que mais vendeu discos no país, a artista com mais músicas em aberturas de novelas e a pioneira no formato acústico. Inclusive, o seu pioneirismo aparece várias vezes no texto: “Enquanto a crítica vinha com a farinha, minha antena futurista já comia o bolo. Ser pioneira tem um preço”, p. 198; “O disco vendeu bacana, algumas faixas bem executadas nas rádios. Tanto agradou que o formato acústico virou tendência entre roqueiros brazucas. Ser pioneiro tem um preço, mas também faz escola”, ao falar do álbum Rita Lee em Bossa N’Roll. Quando fala de Os Mutantes, grupo que fundou com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, e do qual foi expulsa, tira onda:

“Alguns podem achar que deprecio a fatia que cabe aos Mutantes dentro da cena musical daquela época. Ao contrário, sei da importância das modernidades eletrônicas que levaram ao movimento tropicalista contribuindo com a proposta, entre outras audácias, de proibir o proibido dentro da mpb. Hoje, os Mutantes são considerados cult, especialmente a fase da qual fiz parte, o que muito me orgulha. Estávamos sim anos-luz à frente do nosso tempo, pena a nossa alegria espontânea ter perdido para a falsa ilusão da glória passageira.

Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela”, p. 118.

Na obra, a cantora faz duras críticas aos irmãos, apontando desvios de caráter e falta de higiene. Ela teve um relacionamento com Arnaldo e até casou com ele, para não envergonhar a mãe diante da sociedade conservadora da época.

A compositora orgulhosa fala das diversas músicas que fez e que foram gravadas por notórios intérpretes da Música Popular Brasileira, como Alô, alô marciano (Rita Lee/Roberto de Carvalho), gravada por Elis Regina; e Balada do Louco (Rita Lee/Lucio Eduardo Antonio Baptista), que, mesmo já tendo sido gravada antes pelos Mutantes, ganhou notoriedade na gravação de Ney Matogrosso. Cita também algumas canções feitas por encomenda: Cor de rosa choque (para o programa TV Mulher, da Rede Globo) e Flagra (para a abertura de uma novela. No livro, Rita não cita nem a emissora nem a novela). Obviamente, todos os marcos da época do Tutti Frutti também estão contidos nas páginas do livro. Algo bacana também é que muita coisa que é narrada pode ser vista no YouTube, como o encontro dela com Elis Regina e João Gilberto.

Deboche, autozoação e curiosidades

Rita Lee por Rita Lee? Debochada! Isso fica perceptível a cada página lida da autobiografia. Além de Rainha do Rock Brasileiro, ela pode carregar o título de Rainha do Deboche sem nenhuma dúvida. Ao elencar as qualidades dos integrantes dos Mutantes, fala assim de si própria: “Quanto a mim, não tocava nem cantava porra nenhuma, fazia a ‘bonitária, mas orditinha’, contribuindo com 80% das letras, 40% das músicas, 30% dos arranjos e 100% dos figurinos. O lance é que na hora de mostrar serviço, nós três juntos desempenhávamos bonito”. A propósito, Rita brinca com expressões ao longo do texto, além de “bonitária, mas orditinha”, usa “Gente coisa é outra fina”, p. 177. Ao falar de uma prima dos Baptistas que tinha muito apetite sexual e que, hoje, é uma monja radical, solta (com ironia): “Adoro ex-vedetes convertidas”. Diz que o sonho de dez entre dez jovens tolinho da época dela era montar uma comunidade hippie e implica com a própria voz em várias passagens: “De tanto berrar nos shows, minha voz, sempre micra, competia corajosamente com os eletrônicos no volume máximo…”, “Realmente perdi os agudos, mas para quem também não tinha nem médios nem graves na voz, não fez diferença. Cantora fake tinha suas vantagens”, p. 142; “Ah, se eu tivesse um nono daquela voz!”, exclama na página 182, referindo-se à voz de Elis, de quem ficou muito amiga; “Cantar com João Gilberto e orquestra sem ter ensaiado uma só vez era missão impossível para uma roqueira porra-louca e desafinada feito eu”, p. 189. No capítulo batizado de Autocrítica, decreta: “Sempre soube da minha voz fraquinha e meio desafinada, sem potência alguma. Cantar nunca foi natural pra mim, dos passarinhos eu sou o pardal”, p. 255.

Rita Lee: a Rainha do Deboche. Imagem: reprodução do livro

Rita, como muitos outros artistas da música, teve canções censuradas pelo governo ditatorial. Contudo, num trecho do livro, ela diz que, às vezes, até torcia para que isso acontecesse: “Confesso que às vezes até torcia para uma composição preguiçosa minha ser censurada por imbecilidade”. Essa autozoação toda tem justificativa? A autora responde: “Debochar de mim mesma é uma estratégia que sempre dá resultado positivo. Uma das coisas que mais me dão prazer é fazer o que não devo, tipo fumar na frente de quem faz campanha anticigarro. Não é tarde para ser o que eu deveria ter sido. Eis-me aqui, uma pós-famosa anônima observando os macro e micro-omniversos dentro e fora de mim”, p. 281.

O relato de Rita é dinâmico, divertido, debochado e tem ótimas tiradas. A cantora se despe, se olha de fora e consegue se distanciar dela. Fala de sua paixão por animais, única bandeira que carrega, e confidencia que o “Lee” não é sobrenome de família. O pai acrescentou ao nome das três filhas em homenagem ao general Robert E. Lee e outros membros da família adotaram também. A ironia está presente o tempo todo nas histórias contadas. Para criticar artistas que usam ghost writers em autobiografias, Rita dá vida a um fantasma chamado Phantom, que a auxilia nas suas falhas de memória. Também faz críticas a filhos que pegam carona na fama de pais: “Meus meninos nunca usaram meu nome para conseguir uma boquinha onde quer que fossem, não rolou ‘mãetrocínio’, falo isso com admiração e orgulho”, p. 271. Alguns capítulos são insossos, desnecessários, mas, em geral, a autobiografia é convidativa, interessante. Vale a pena conhecer um pouco mais de perto essa filha do “roque enrow”, que foi umas das pioneiras em tratar, na MPB, da liberdade da mulher e do prazer feminino.

Referência:
 
LEE, Rita. Rita Lee: uma autobiografia. 1. ed. São Paulo: Globo, 2016.
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A dificuldade em dizer “Não sei”, “Não entendo”, “Não é a minha”

Imagem: reprodução do site DepositPhotos

Por Raulino Júnior ||Desde Já: as crônicas do Desde||

No passado, Sócrates decretou: “Só sei que nada sei”. No livro O Mundo de SofiaJostein Gaarder traz uma outra e mais emblemática forma desse pensamento: “Mais inteligente é aquele que sabe que não sabe”. Ou seja: o importante é a busca, é estar aberto para aprender. Quem sabe que não sabe, sempre vai ter vontade de saber e vai criar estratégias para isso. Quem fica em cima de um pedestal imaginário, achando que sabe tudo, não sabe o tempo que perde alimentando essa vaidade miúda e fantasiosa.

Quantas vezes a gente está num papo bacana, com amigos, colegas de trabalho, familiares e, num determinado momento, alguém fala sobre algo de que nunca ouvimos falar, de que desconhecemos, de que não temos nenhuma referência? Inúmeras, não é? E isso é completamente natural. Ninguém sabe tudo sobre tudo, conhece tudo, entende tudo. A melhor decisão a tomar nessas situações é ser verdadeiro, pedir dois altos e falar: “Não sei nada sobre isso”, “Não entendo disso”, “Isso não é a minha”, “Nunca ouvi falar disso, você pode me explicar?”. Ter uma atitude contrária, fingir que sabe sem saber e deixar o papo rolar, é a maior prova de ignorância. Além de contribuir para ficar sempre em apuros, perdido. Nunca valeu a pena.

Falar “não sei”, “não entendo”, “não é a minha” é libertador. Você não se compromete com nada, só com a sua vontade de aprender. Contudo, a gente sabe que o mundo não é assim. A pretensão não deixa. Muita gente prefere fingir que sabe das coisas a dizer que não sabe. Parece que há um demérito social quando se fala a verdade. É a tal inversão de valores. “Como é que você não sabe isso?”. “Simples: não sabendo”. Pronto.

A pessoa que se vê como sabichona não avança, fica sempre no mesmo lugar, porque ela acha que já não tem mais nada para aprender. Essa autoleitura de achar que sabe tudo é só mais um equívoco que gente com esse comportamento carrega. Não saber é tão bom. Eu sempre não sei.

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