Rita Lee: uma autobiografia (Globo Livros, 2016) é uma daquelas obras que interessam a quem gosta de música, de cultura brasileira e de rir. Pois é. Se você gosta de rir, a leitura do livro da paulistana Rita Lee Jones de Carvalho é um ótimo mote. Quem lê o exemplar, ri o tempo todo. E não é exagero. A forma como madame Lee relata os fatos de sua vida arranca o riso de qualquer mal-humorado. Até nas passagens mais dramáticas, como no trecho em que ela narra o estupro que sofreu na infância: “Se meu pai ficasse sabendo, provavelmente iria atrás do sujeito para matá-lo e não seria bom para ninguém o chefe da família ir pra cadeia. Portanto, as mulheres seriam as únicas guardiãs do meu ‘tesourinho’ arrombado. […] Acredito que foi a partir daquele momento que las mujeres passaram a relevar meus desajustes comportamentais”, p. 17. O sujeito citado por Rita foi um técnico que tinha ido ao casarão onde a família morava para consertar a máquina Singer da mãe, dona Chesa. É importante dizer que o riso vem, obviamente, da forma como Rita narra, não da violência sofrida, que deve, a qualquer tempo, ser rechaçada e denunciada.
No livro, a cantora parece fazer questão de mostrar tudo que fez na vida, inclusive o que é reprovado socialmente. A lista é grande: o avô que lhe dava cerveja preta com açúcar, quando ela era criança, sem que os adultos da casa soubessem; o roubo do vestido de noiva usado por Leila Diniz na novela O sheik de Agadir, que pertencia ao acervo da Rede Globo e que Rita guarda até hoje; outro roubo: um par de botas de uma famosa butique de Londres, que a roqueira ainda tem também; as “viagens” de ácido (a cantora chega a usar a expressão “o pó nosso de cada dia”, no capítulo Bad in Rio); a única overdose que teve; a curtição de fileira de pó a convite de Nelson Gonçalves; as inúmeras vezes que foi internada para tratar do alcoolismo. Como resposta a tudo isso, Rita sugere, no capítulo intitulado Profecia, o seu epitáfio: “Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”, p. 278. “Nossa Senhora da Malandragem”, que a cantora cita no capítulo Malandragem, que o diga. Não deixa de citar também as polêmicas nas quais se envolveu durante a carreira, como a confusão no Festival Verão Sergipe, em 2012.
Mesmo publicada em 2016, quando algumas questões sociais, como o racismo, já estavam sendo discutidas com mais afinco, a filha caçula de Charles e Chesa traz um desfile de expressões preconceituosas na sua narrativa. Ao descrever a irmã mais velha, Mary, ela diz: “Seu grande complexo era o cabelo pixaim (de onde vinha aquilo?), usava tudo quanto era produto químico para alisar, até ferro de passar roupa, além da mania de fazer nozinhos e arrancá-los”. p 21. No meio do caminho, os leitores também encontram “uma ex-escrava da família do meu bisavô…” (p. 36), “lista negra” (p. 107), com sentido negativo, e “mulata peituda/bunduda” (p. 151).
Rita conta sobre os casinhos amorosos que teve, com Paulo Coelho e André Midani, por exemplo; que, dos ícones da Jovem Guarda, seus preferidos eram Erasmo (pela atitude) e Wanderléa (pelo encanto); explica a sua rusga com Ezequiel Neves, a quem chamava de “Abominável das Neves”: “[…] foi quem plantou na imprensa o boato de que eu estava com leucemia”, p. 179; critica os críticos de música: “Críticos de música adoravam me crucificar, não importava o que eu fazia ou deixava de fazer, um ranço que durou por todos os meus cinquenta anos de estrada. Até hoje é quase impossível encontrar matérias falando bem de um trabalho meu. Os caras não escondiam que eram membros do bocejante time ‘Pra fazer rock tem que ter culhão'”, p. 215. Contudo, na mesma página, para não ser injusta, diz que dois jornalistas a achavam bacana e aproveita para criticar o jornalismo cultural da atualidade: “Dois que hoje fazem a maior falta nessa mesmice tediosa do panorama jornalístico rabo-preso: Telmo Martino e Paulo Francis, gênios rebeldes para os quais tiro meu chapéu e lhes faço cortesia. Com esses dois do meu lado, quem precisava de ‘amiguinhos’ na imprensa?”. Ainda nessa seara, a ex-apresentadora do TVLeezão (MTV, 1991) e do Madame Lee (GNT, 2005) critica dois apresentadores de TV: “Entre as poucas apresentações de tv de que participei para divulgar o Acústico, fiz questão de incluir o Programa do Ratinho, algo considerado vulgar por artistas de calibre, onde cantei ‘Alô, alô marciano’ com orelhinhas de et e recebi um tratamento muito melhor do que naqueles dois programas onde os apresentadores falam mais do que o convidado e o interrompem quando você está cantando”, p. 251. Ela também não deixa de falar o quanto era uma estudante que dava trabalho: “Fui uma ginasiana medíocre, sempre passando de ano raspando, sempre me sentando no fundão, sempre conversando muito e sempre sendo expulsa da classe. Tinha que manter a minha fama de mau”, p. 57.
Rita e suas peraltices: “Nunca fui santa”. Imagem: reprodução do livro
Quem lê a autobiografia, fica sabendo que a mulher de Roberto de Carvalho teve uma experiência homossexual: “Bêbados adoram o tema ‘tem que comer quiabo para saber que não gosta’ e nessas troquei uma figurinha íntima com uma mocinha bonitinha que encontrei num bar e levei para casa. Ficou lá meia hora, tempo suficiente para tirar a prova de que eu não gostava mesmo de quiabo, momento minissaia”, p. 237; que foi presa e o motivo disso, e que fez um aborto, do qual se arrependeu. Inclusive, ao tratar do tema, é a primeira vez que a gente sente seriedade na narrativa. Vale a pena reproduzir aqui o depoimento forte e contundente de Rita:
“Nenhuma mulher faz aborto sorrindo. Cabe a elas, e somente a elas, a decisão de interromper uma gravidez, assim como de segurar sozinhas as consequências moral, espiritual e oskimbau. Me refiro ao ‘sagrado feminino’, de nós meninas que temos um buraco a mais no corpo para administrar, do nosso universo complexo demais para machos, religiosos e políticos meterem o bico, esses para os quais prevalecem mais o direito do feto que ainda nem nasceu ao da mãe que não deseja pari-lo por motivos que não nos cabe julgar, psicológicos, econômicos, neurológicos, até mesmo espirituais.
Aborto não é uma mutilação no corpo da mulher. Há em suas entranhas um ser indesejado advindo de estupro, acefalia e de tantas deformações irreversíveis já detectadas nas primeiras semanas de gestação. Parir e abandonar o bebezinho numa lata de lixo é criminoso. Parir e pôr para adoção é irresponsavelmente confortável. Parir e criar em condições sub-humanas é indigno. Parir para ganhar bolsa família é humilhante”, p. 174.
Exibição
A icônica capa do bem-sucedido álbum de 1979, que ficou conhecido como Mania de Você. Imagem: reprodução do livro
Claro que o relato autobiográfico de Rita Lee é, obviamente, um espaço para ela exibir as suas conquistas. E não há nada de errado nisso. É legítimo. Se ela não fizer, quem vai fazer, não é? De acordo com o texto, ela é a mulher brasileira que mais vendeu discos no país, a artista com mais músicas em aberturas de novelas e a pioneira no formato acústico. Inclusive, o seu pioneirismo aparece várias vezes no texto: “Enquanto a crítica vinha com a farinha, minha antena futurista já comia o bolo. Ser pioneira tem um preço”, p. 198; “O disco vendeu bacana, algumas faixas bem executadas nas rádios. Tanto agradou que o formato acústico virou tendência entre roqueiros brazucas. Ser pioneiro tem um preço, mas também faz escola”, ao falar do álbum Rita Lee em Bossa N’Roll. Quando fala de Os Mutantes, grupo que fundou com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, e do qual foi expulsa, tira onda:
“Alguns podem achar que deprecio a fatia que cabe aos Mutantes dentro da cena musical daquela época. Ao contrário, sei da importância das modernidades eletrônicas que levaram ao movimento tropicalista contribuindo com a proposta, entre outras audácias, de proibir o proibido dentro da mpb. Hoje, os Mutantes são considerados cult, especialmente a fase da qual fiz parte, o que muito me orgulha. Estávamos sim anos-luz à frente do nosso tempo, pena a nossa alegria espontânea ter perdido para a falsa ilusão da glória passageira.
Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela”, p. 118.
Na obra, a cantora faz duras críticas aos irmãos, apontando desvios de caráter e falta de higiene. Ela teve um relacionamento com Arnaldo e até casou com ele, para não envergonhar a mãe diante da sociedade conservadora da época.
A compositora orgulhosa fala das diversas músicas que fez e que foram gravadas por notórios intérpretes da Música Popular Brasileira, como Alô, alô marciano (Rita Lee/Roberto de Carvalho), gravada por Elis Regina; e Balada do Louco (Rita Lee/Lucio Eduardo Antonio Baptista), que, mesmo já tendo sido gravada antes pelos Mutantes, ganhou notoriedade na gravação de Ney Matogrosso. Cita também algumas canções feitas por encomenda: Cor de rosa choque (para o programa TV Mulher, da Rede Globo) e Flagra (para a abertura de uma novela. No livro, Rita não cita nem a emissora nem a novela). Obviamente, todos os marcos da época do Tutti Frutti também estão contidos nas páginas do livro. Algo bacana também é que muita coisa que é narrada pode ser vista no YouTube, como o encontro dela com Elis Regina e João Gilberto.
Deboche, autozoação e curiosidades
Rita Lee por Rita Lee? Debochada! Isso fica perceptível a cada página lida da autobiografia. Além de Rainha do Rock Brasileiro, ela pode carregar o título de Rainha do Deboche sem nenhuma dúvida. Ao elencar as qualidades dos integrantes dos Mutantes, fala assim de si própria: “Quanto a mim, não tocava nem cantava porra nenhuma, fazia a ‘bonitária, mas orditinha’, contribuindo com 80% das letras, 40% das músicas, 30% dos arranjos e 100% dos figurinos. O lance é que na hora de mostrar serviço, nós três juntos desempenhávamos bonito”. A propósito, Rita brinca com expressões ao longo do texto, além de “bonitária, mas orditinha”, usa “Gente coisa é outra fina”, p. 177. Ao falar de uma prima dos Baptistas que tinha muito apetite sexual e que, hoje, é uma monja radical, solta (com ironia): “Adoro ex-vedetes convertidas”. Diz que o sonho de dez entre dez jovens tolinho da época dela era montar uma comunidade hippie e implica com a própria voz em várias passagens: “De tanto berrar nos shows, minha voz, sempre micra, competia corajosamente com os eletrônicos no volume máximo…”, “Realmente perdi os agudos, mas para quem também não tinha nem médios nem graves na voz, não fez diferença. Cantora fake tinha suas vantagens”, p. 142; “Ah, se eu tivesse um nono daquela voz!”, exclama na página 182, referindo-se à voz de Elis, de quem ficou muito amiga; “Cantar com João Gilberto e orquestra sem ter ensaiado uma só vez era missão impossível para uma roqueira porra-louca e desafinada feito eu”, p. 189. No capítulo batizado de Autocrítica, decreta: “Sempre soube da minha voz fraquinha e meio desafinada, sem potência alguma. Cantar nunca foi natural pra mim, dos passarinhos eu sou o pardal”, p. 255.
Rita Lee: a Rainha do Deboche. Imagem: reprodução do livro
Rita, como muitos outros artistas da música, teve canções censuradas pelo governo ditatorial. Contudo, num trecho do livro, ela diz que, às vezes, até torcia para que isso acontecesse: “Confesso que às vezes até torcia para uma composição preguiçosa minha ser censurada por imbecilidade”. Essa autozoação toda tem justificativa? A autora responde: “Debochar de mim mesma é uma estratégia que sempre dá resultado positivo. Uma das coisas que mais me dão prazer é fazer o que não devo, tipo fumar na frente de quem faz campanha anticigarro. Não é tarde para ser o que eu deveria ter sido. Eis-me aqui, uma pós-famosa anônima observando os macro e micro-omniversos dentro e fora de mim”, p. 281.
O relato de Rita é dinâmico, divertido, debochado e tem ótimas tiradas. A cantora se despe, se olha de fora e consegue se distanciar dela. Fala de sua paixão por animais, única bandeira que carrega, e confidencia que o “Lee” não é sobrenome de família. O pai acrescentou ao nome das três filhas em homenagem ao general Robert E. Lee e outros membros da família adotaram também. A ironia está presente o tempo todo nas histórias contadas. Para criticar artistas que usam ghost writers em autobiografias, Rita dá vida a um fantasma chamado Phantom, que a auxilia nas suas falhas de memória. Também faz críticas a filhos que pegam carona na fama de pais: “Meus meninos nunca usaram meu nome para conseguir uma boquinha onde quer que fossem, não rolou ‘mãetrocínio’, falo isso com admiração e orgulho”, p. 271. Alguns capítulos são insossos, desnecessários, mas, em geral, a autobiografia é convidativa, interessante. Vale a pena conhecer um pouco mais de perto essa filha do “roque enrow”, que foi umas das pioneiras em tratar, na MPB, da liberdade da mulher e do prazer feminino.
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