Cultura, DESDEnhas, Jornalismo Cultural, Leitura, Negritude, Negro, Resenha, Toca o Desde

Um livro para aprender brincando

Catálogo reúne jogos, brincadeiras e informações sobre países africanos e o Brasil

Imagem: reprodução do livro

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Brincar na rua, com os amigos, usando os materiais disponíveis e colocando muita criatividade nisso tudo: essa realidade foi muito comum na infância da maioria da população negra. Do Brasil e de alguns países africanos. O Catálogo de Jogos e Brincadeiras Africanas e Afro-Brasileiras (Aziza Editora, 2022), organizado pelas professoras Helen Pinto, Luciana Soares da Silva e Míghian Danae, ilustrado por Rodrigo Andrade, deixa isso muito evidente. O livro, que foi contemplado pelo edital Equidade Racial, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), em 2020, partiu de uma pesquisa que fez “escuta de mulheres e homens do Brasil e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs), com idade entre 40 e 60 anos, sobre quais os jogos e as brincadeiras que conheciam”, p. 3. Entre outubro de 2020 e março de 2021, estudantes bolsistas, oriundos de sete países (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe), entrevistaram familiares e conhecidos de seus países de origem. Exceto José Maye (catalogou brincadeiras da Guiné Equatorial), que estuda na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), todos os outros pesquisadores são da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), campus Malês, que fica em São Francisco do Conde, na Bahia. São eles: Pedro Nguvu (Angola), Luliane Sousa (Brasil), Jacica Fernandes (Cabo Verde), Yacine Tavares (Guiné-Bissau), Hercinia Wasse (Moçambique) e Quezia Miranda (São Tomé e Príncipe).

O catálogo apresenta algumas brincadeiras e jogos interessantes, outros nem tanto.  Fita e Melancia, do Brasil, justificam o que digo. Muita atividade relatada tem semelhança com outras, de países diferentes. Por exemplo, Bica Bidom, brincadeira da Angola, tem a mesma dinâmica de Esconde-Esconde, daqui do Brasil. Assim como Escondida, de São Tomé e Príncipe. O Jogo da Carambola, de Cabo Verde, pela descrição presente no livro, é igual ao Jogo da Bola de Gude daqui. Por sinal, não está catalogado na obra. Curioso. Os países que têm mais brincadeiras e jogos catalogados são Angola e Brasil. Apesar de não ter sido o objetivo da pesquisa, faz falta a informação sobre a origem dos nomes das atividades listadas. Por que a brincadeira se chama AmarelinhaNeguri? O leitor fica muito curioso para saber. Na página 36, por exemplo, a obra explica o que é “bater foguinho”, na brincadeira Pula Corda (Brasil): “Na brincadeira, ‘bater foguinho’ é bater a corda em um ritmo acelerado, a fim de desafiar ainda mais quem está pulando – remete à sensação de quentura do atrito da corda com a pele de quem pula, por isso, deve-se ter cuidado com essa variação, para não haver machucados e queimaduras”. A explicação de alguns nomes de jogos e brincadeiras enriqueceria muito o catálogo.

É impossível ler o livro e não lembrar das brincadeiras e jogos que já participamos e daqueles que, pela descrição, a gente fica com vontade de participar. Mocho (Moçambique) é um bom exemplo: “Entre os participantes da brincadeira, um deve ser escolhido para ser o mocho, aquele que vai se esconder. Os demais integrantes devem ficar de costas, esperando que o mocho se esconda. Em seguida, o grupo sai à procura do mocho. A primeira pessoa a encontrá-lo não deve avisar a ninguém da sua descoberta. Em vez disso, deve se juntar ao mocho, escondendo-se também, enquanto os demais continuam a busca”, p. 56. Terra-Mar, também de Moçambique, é simples, mas deve ser muito divertida, porque exige atenção redobrada: “Uma longa reta deve ser riscada no chão. De um lado, escreve-se ‘terra’ e do outro, ‘mar’. No início, todas as crianças podem ficar do lado da terra. Ao ouvirem ‘mar!’, todas devem pular para o lado do mar. Ao ouvirem ‘terra!’, pulam para o lado da terra. Quem pular para o lado errado é eliminado da rodada. O último a permanecer sem errar, vence”, p. 58. Lembra muito o Morto-Vivo, que, curiosamente, também não foi catalogada. Achei a brincadeira Banho no Rio – Plantar Bananeira (Brasil) um pouco perigosa. Principalmente, pela sugestão de ser feita dentro d’água, mesmo com o alerta de ter um adulto supervisionando.

Na Apresentação da obra, a gente lê:

“Este catálogo foi produzido com base nessa recolha de dados e esperamos que seja utilizado em redes municipais de educação básica – em especial na etapa da educação infantil – dos países envolvidos.

Objetivamos que este material possa colaborar, no Brasil, para a aplicação, nas escolas, da Lei 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (nº 9.394/96), além de auxiliar nas reflexões sobre processos curriculares e abordagens pedagógicas inovadoras e na produção de propostas pedagógicas de mediação estética e lúdica”, p. 3.

O objetivo é cumprido. O catálogo deve ser usado pelas instituições de ensino, numa forma de implementar o que preconiza a Lei 10.639/2003. O fato de pesquisadores terem se debruçado sobre a temática das brincadeiras e jogos africanos e afro-brasileiros é de um ganho enorme para a nossa cultura, que é alicerçada pelas contribuições do povo negro. Além disso, o livro estimula o brincar, ação importante para toda e qualquer criança. A vontade de quem lê é sair brincando, seguindo o que está descrito. É para aprender brincando mesmo!

Referência:

PINTO, Helen Santos; SILVA, Luciana Soares da; NUNES, Míghian Danae Ferreira (Orgs.). Catálogo de jogos e brincadeiras africanas e afro-brasileiras. São Paulo: Aziza Editora, 2022. Disponível em: <https://anansi.ceert.org.br/biblioteca-pdf/catalogo-jogos.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2022.

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Livro voltado para o público infantil mostra como ser antirracista desde a mais tenra idade

Publicação é fruto de parceria entre a Defensoria Pública do Estado da Bahia e a UFBA

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

“Nossa querida Bia é a realização de uma mãe que vive o desafio de educar seus filhos de pele negra em uma sociedade racista”. Essa mensagem está na apresentação do livro Nossa querida Bia: enfrentamento ao racismo desde a infância e só quem é responsável pela educação de crianças negras sabe o quanto ela é importante. Fazer com que essas crianças tenham uma outra narrativa na vida, com estímulos positivos em relação aos seus traços e aspectos culturais, é o principal objetivo da publicação, lançada em 2020, numa parceria entre a Defensoria Pública do Estado da Bahia(DPE-BA) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Escrita por Eva Rodrigues, Gisele Argolo e Laissa Rocha (DPE-BA); Karina Menezes e Nanci Franco (Núcleo Integrado de Estudos e Pesquisas em Infâncias e Educação Infantil (NEPESSI), da Faculdade de Educação da UFBA (Faced)), a obra é extremamente didática e precisa nas informações que traz.

Composto por quatro minicontos (Os cabelos de cada pessoa, Cada um com sua religião, Princesas negras e Vou ser médica), o livro prende a atenção por ter histórias interessantes e por discutir a temática do racismo na infância. E, ainda melhor, estimula o tempo todo o antirracismo, que deve ser um compromisso de toda a sociedade, independentemente da etnia. Bia, a protagonista, foi inspirada em Ana Beatriz Rocha, filha de Laissa, que também é mãe de João Gabriel Rocha. Ambos são negros e isso justifica a mensagem da apresentação, que foi destaque na abertura desta resenha.

Ao ler os contos, percebe-se um trabalho bem apurado de pesquisa, para evitar equívocos. No primeiro, Os cabelos de cada pessoa, a tônica é a de que não existe cabelo bom e cabelo ruim. Existe cabelo; no segundo, Cada um com sua religião, o objetivo é fazer com que todas as religiões sejam respeitadas. A narrativa desmistifica o viés negativo dado à palavra macumbeira, por exemplo; o terceiro, Princesas negras, mostra a importância de as crianças negras saberem de sua ancestralidade; o quarto, Vou ser médica, fala de representatividade. Nesse sentido, destaca como é fundamental para as crianças, e todas as pessoas negras, de uma forma geral, se verem em lugares de poder.

O livro apresenta as histórias, explica o assunto de cada situação narrada e convida o leitor a partir para a ação, através da seção O que eu posso fazer? Inclusive, disponibiliza o e-mail infanciasemracismo@defensoria.ba.def.br para que as pessoas denunciem casos de racismo e de injúria racial. Além disso, traz sugestões de leitura e de filmes que ajudam a reforçar toda a potencialidade dos povos negros. A obra, que já foi reconhecida numa premiação nacional, está disponível em PDF, no site da Defensoria, e também está sendo distribuída nos postos da instituição.

As pessoas interessadas podem pegar a versão impressa do livro nos postos da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Foto: Raulino Júnior

É sempre gratificante ver iniciativas como essa, que, de fato, promove o antirracismo. Para combater o racismo, é necessário agir para que a transformação aconteça. Não dá mais para ficar só no discurso. Já deu! O livro é para todo mundo: crianças não negras e adultos! Que a mensagem de Nossa querida Bia ecoe pelo mundo! A Lei 10.639/2003 agradece! Assim, vamos caminhar para uma sociedade mais igualitária e sem violência racista.

Referência:

RODRIGUES, Eva dos Santos; ARGOLO, Gisele Aguiar Ribeiro Pereira; ROCHA, Laissa Souza de Araújo; MENEZES, Karina Moreira; FRANCO, Nanci Helena Rebouças. Nossa querida Bia: enfrentamento ao racismo desde a infância. 1. ed. v.1. Salvador: ESDEP, 2020.

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Cultura, DEZde, Jornalismo Cultural, Negritude, Negro, O Fato em Foto, OFatoEmFoto, Racismo, Reportagem

#OFatoEmFoto: o grito contra o racismo mascarado

Fotorreportagem mostra como foi a manifestação, em Salvador, do Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo

Manifestantes gritaram para desmascarar o racismo. Foto: Raulino Júnior

Ontem, a Coalizão Negra por Direitos convocou manifestações em todo o país para denunciar o racismo que insiste em se perpetuar na sociedade brasileira. Os atos tiveram como pauta a luta contra a chacina e o genocídio do povo negro. Intitulado de 13 de Maio de Lutas, o levante gritou “Fora, Bolsonaro!” e exigiu justiça para as vítimas do massacre na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Em Salvador, a mobilização aconteceu na Praça da Piedade, que fica na mesma região do prédio da Polícia Civil da Bahia. Uma das reivindicações mais constantes foi a exigência de uma investigação responsável a respeito da execução de Bruno Barros e Yan Barros, respectivamente tio e sobrinho, que foram assassinados porque furtaram carne no Atakadão Atakarejo. De acordo com as investigações, que ainda estão em curso, eles foram entregues, pelos seguranças do mercado, a traficantes do Nordeste de Amaralina. O Desde esteve lá e fez a cobertura fotográfica para a segunda edição de #OFatoEmFoto, projeto que registra ações da sociedade civil feitas nas ruas da cidade. Fique à vontade e se ligue nas legendas.
A Praça da Piedade foi o palco para a mobilização contra a violência racista.

O direito de viver foi reafirmado durante todo o ato.

Manifestante faz gesto característico dos Panteras Negras, evidenciando que “nossos passos vêm de longe”.

A morte de negros, infelizmente, não sai de cartaz…

Vidas negras importam: recado para a polícia, para o governo, para o país. Basta!

Fora, Bolsonaro!: para sempre!

Mobilização organizada.

O povo negro só quer viver…

…com segurança!

Todas as fotos foram feitas por Raulino Júnior.

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É Desde! É Dez! É DEZde!

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Cultura, Discriminação, Jornalismo Cultural, Negritude, Preconceito, Racismo, Texto de Quinta

O negro em movimento fora (ou dentro?) do Movimento

Meus inimigos estão no poder*
Por Raulino Júnior ||Texto de Quinta|| 
Você é negro? Consciente de como se dá a sua presença na sociedade em que vive? Se respondeu sim para essas duas perguntas, saiba que você é um militante da causa. Todo negro consciente é um militante em potencial. Isso significa que você não precisa nem é obrigado a participar de nenhum coletivo em que a luta contra o racismo seja o propósito maior. Ninguém “tem que” nada. Ainda mais nos dias de hoje! Se a gente briga tanto por liberdade, por que tolher a do outro? Isso precisa ser levado em consideração pelos movimentos, não é? Afinal, respeitar subjetividades é uma das nossas bandeiras. Por falta de respeito a esse aspecto, muitas atrocidades aconteceram e vitimaram o povo negro em todo o mundo. Quem está do lado de fora também está em movimento. Afinal, a Terra gira e não é plana.

Claro que, desde que o mundo é mundo, a gente é bombardeado pelo clichê dos clichês: a união faz a força. E faz mesmo! Isso é um fato. Contudo, temos que arregalar bem os olhos para saber quem da união está obstinado a fazer a força, porque tem muita gente que vai no bando, com outros interesses. Atualmente, o lema “Nós por nós” vem sendo usado e abusado por movimentos que lutam por justiça social, mas, quando você se aproxima de quem está na arena de luta, percebe que o “Nós por nós”, na prática, é mais “eu” do que qualquer outra coisa. Qual é a lógica disso? Militância de araque? Vale a pena usar um episódio real para ilustrar o que foi dito: em 2017, um reconhecido ator de teatro de Salvador estreou um espetáculo no qual mostrava como a sociedade vê e trata os negros, estabelecendo “lugares” e “limites” para eles. Um monólogo superinteressante, que não trazia respostas, mas que fazia um convite à reflexão. Nas suas redes sociais digitais, o ator pediu que amigos e colegas colocassem seus respectivos nomes no que chamou de “lista negra” (numa boa sacada, pois tirava a expressão do lugar negativo que sempre esteve. No entanto, a ação foi de um autoboicote descabido, principalmente considerando o que é viver de arte no Brasil), um instrumento que possibilitava o pagamento de meia-entrada. A inteira custava R$ 20. Muita gente, em sua maioria da etnia negra, correu e colocou os nomes nos comentários a fim de pagar R$ 10 para assistir ao espetáculo. Aí vem a pergunta: e o “Nós por nós”?! Será que não daria para fazer um esforço e valorizar, também financeiramente, todo o esforço do ator para produzir a peça? Quando os nossos vão valorizar a arte feita pelos nossos? “Nós por nós” é uma verdade ou é apenas uma lema bonitinho? Vamos pensar sobre isso ou continuaremos a fomentar mais essa encruzilhada?

Outro exemplo muito emblemático a esse respeito é quando alguns negros reconhecem todo o talento e contribuição de Margareth Menezes para a nossa música. As conversas nos grupos são sempre falando o quanto a cantora é injustiçada e não está num patamar que merece. No final, o papo sempre descamba para o recorte de etnia, que é uma realidade e, obviamente, tem suas implicações na carreira de Margareth, uma artista marcada por várias interseccionalidades. Contudo, se a gente cavucar, a seguinte pergunta surge: quem movimenta o caixa de Margareth? Eu? Você? A quantos shows dela você foi, pagando ingresso? Nos eventos do Mercado Iaô, projeto da artista, que, das 10h às 14h, tinha entrada franca, em qual horário você ia? Pagava a tarifa social de R$ 10 (meia) e R$ 20 (inteira)? Quem movimenta o caixa de Margareth para que a cantora possa investir ainda mais na própria carreira? E o “Nós por nós” fica onde? Preciso ressaltar que, com tal afirmação [de que o “Nós por nós” é mais “eu” do que qualquer outra coisa], não estou querendo minar, esvaziar nem descredibilizar as práticas e objetivos dos grupos. Estou, apenas, registrando uma constatação.

Engraçado, para não dizer o contrário, é que, às vezes, tem gente que quer cobrar determinadas posturas de quem tem consciência do problema do racismo, mas que milita com outras ações, que não são menos importantes, é preciso pontuar. O mau mesmo é se achar mais militante que os outros. É como se houvesse uma gradação da militância, numa disputa interna que é ignorante e descabida. Mais um clichê: fala sério! Ninguém é obrigado a opinar sobre tudo sempre, porque, muitas vezes, isso só reflete a nossa superficialidade diante de temáticas tidas como polêmicas e mostra a nossa cultura de ir com o bando. Ninguém “tem que” nada!

Cada negro é um negro. Embora tenhamos narrativas comuns, cada um sabe a dor e a delícia de ser como é. O racismo que atravessa cada negro é repleto de subjetividades, oriundas de situações pelas quais a pessoa passou. Isso explica a forma como cada um reage a essa violência histórica de que, infelizmente, ainda é vítima. Uns comem a pressão “de com força”, outros não deixam essa pressão paralisar os seus anseios nem interferir na autoestima. É tudo muito subjetivo e a inteligência emocional é uma aliada e tanto! Entender isso contribui para, quando a pessoa quiser, se posicionar sobre a questão com mais equilíbrio, de acordo com a própria régua. Ninguém precisa, por exemplo, usar a rede social digital para falar o que todo mundo fala, só porque sofre uma pressão implícita para falar. A fala pela fala é vazia e carece de personalidade. Cada um milita da sua forma. Eu exerço a militância nas minhas atitudes, nas coisas que escrevo, nos posicionamentos que tomo. Não sou obrigado a nada e ninguém vai me fazer recuar disso. Quando eu quiser e achar pertinente, mudo.
Em abril de 2017, as redes sociais digitais foram tomadas com a campanha #MeuProfessorRacista, cujo objetivo era denunciar professores que praticaram o crime de racismo em alguma época da vida do denunciante. Vi tantos relatos, me identifiquei com muitos, mas vi muita hipocrisia também. Imediatamente, me lembrei de um episódio que aconteceu comigo durante a Bienal do Livro Bahia, em 2013. Até pensei em entrar na campanha e postar o meu relato, mas analisei, analisei e vi que aquele não era o momento. Não fui no bando, porque ninguém “tem que” nada. Hoje, com outra motivação, julgo importante divulgar o fato. #MeuProfessorRacista nunca foi meu professor, mas foi racista comigo. Na época, eu trabalhava num instituto considerado de prestígio na sociedade salvadorense e estava na Bienal para fazer alguma ação educativa. O #MeuProfessorRacista perguntou onde eu trabalhava e eu falei o nome do instituto. Mas, não satisfeito e mostrando explicitamente uma falta de crédito na informação que eu acabava de lhe dar, #MeuProfessorRacista fez um esforço para ler o crachá que eu carregava, a fim de verificar as informações e constatar se, de fato, eu trabalhava naquele lugar que havia dito. O choque maior, para mim, é que o #MeuProfessorRacista, além de ser um dos fundadores de um conglomerado de “mídia negra” de Salvador, é negro e militante. Logo, consciente. Ou não, né? Como disse, muitas vezes, quem vai de bando só defende a sua banda. Quando um de nós insiste em nos negar, nega todo o nosso povo.
O branco fica todo baratinado quando se depara com um negro que sofreu as violências oriundas do racismo, mas que não tem a autoestima abalada por causa disso. Ele não consegue lidar com esse fato. Estranha, porque é incomum. Por isso, persegue muito mais, tenta descredibilizar o adversário (sim! O campo é de luta!), usa a indiferença o tempo todo para anular a presença do outro. Isso é um fato e só quem sente na pele essa emoção sabe identificar. Por outro lado, e isso deve ser culpa do racismo estrutural que acomete o Brasil desde 1500, quem é negro também estranha quando encontra alguém assim entre os seus pares. Nesse caso, a postura é outra. É de achar que a militância é menor, frágil, sem sustentação. O negro que cria outras narrativas para si, que se coloca de igual para igual mesmo no jogo da vida, que não deixa o discurso do opressor lhe paralisar, é visto como exibido. O racismo é tão forte que tirou a nossa capacidade de nos admirar, de exibir as nossas qualidades. Por isso, o autocuidado hoje está tão em voga. Descobriram a pólvora! Claro que não é sair por aí sendo um outdoor ambulante, é fazer das suas ações o retrato de quem você é, sem se esconder. Parte da comunidade rechaça o “negro exibido” porque isso não é colocado como algo que a gente pode ser. Isso nos foi negado e o racismo faz a gente pensar que não é para nós. Quem destoa é visto como um à toa.

Lembra que disse que ninguém “tem que” nada? A única coisa que a gente tem que ser é livre para fazer as nossas escolhas. Seja seu próprio bando até o dia em que você quiser. Vão te acusar de egoísmo, mas o tempo é a melhor resposta para essa acusação. Outro clichê: o mundo dá voltas e a expectativa do outro em relação a você é problema do outro. Eu só não posso o que eu não quero e minha militância é por justiça, não por vingança. Ah! Não esqueça deste mantra: com poder, todo anarquista silencia e deixa a luta só para você, bebê.
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Frejat e Cazuza, em Ideologia.
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A vida e a vida de Luiz Melodia

Cerimônia do 29º Prêmio da Música Brasileira faz homenagem do tamanho do talento do artista fluminense

29º Prêmio da Música Brasileira homenageou Luiz Melodia. Na foto, a atriz Leandra Leal na abertura da cerimônia. Imagem: reprodução do vídeo

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Luiz Melodia vive e está entre nós. Pelo menos, essa foi a impressão de quem acompanhou, pelo Canal Brasil ou presencialmente, a cerimônia do 29º Prêmio da Música Brasileira, na qual o cantor e compositor oriundo do morro do Estácio foi homenageado. O evento, que aconteceu na última quarta-feira, 15 de agosto, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, reafirmou o talento congênito de Melodia. Idealizado e dirigido por José Maurício Machline, desde 1989, a edição de 2018 teve roteiro de Zélia Duncan (que está no posto há cinco anos), cenografia de Gringo Cardia, direção musical de João Carlos Coutinho e direção artística de Giovanna Machline. A artiz Leandra Leal abriu a noite com um lindo depoimento em que falava de seu amor por Luiz e que trazia dados da vida do cantor e coube a Débora Bloch e Camila Pitanga a responsabilidade de apresentar a tradicional premiação.
E Luiz Melodia foi reverenciado da forma que merece. Sim! No tempo presente mesmo! A sua obra provou o quanto que ele é imortal e isso foi evidenciado no Prêmio da Música Brasileira. A história de vida do cantor foi entrecortada com a entrega dos prêmios e, a cada momento, um número musical era apresentado. Todas as apresentações poderiam, por exemplo, ir para um DVD, pela qualidade artística e primor do que foi exposto. Teve Pedro LuísHamilton de Yolanda e Yamandu Costa brindando o público com uma versão emocionante de FadasXênia França e Áurea Martins interpretando Juventude Transviada com muita força e sensibilidade; Lenine e o filho, João Cavalcanti, mostrando que talento é mesmo CongênitoSalve Linda Canção sem Esperança, com CéuNegro Gato (Getúlio Côrtes), com IzaLazzo e LinikerBaby do Brasil numa versão precisa de MagrelinhaÉbano, com Fabiana CozzaDores de Amores, com Zezé Motta e Sandra de SáEstácio Holly Estácio, com Alcione e Pérola Negra, num encontro familiar de Caetano VelosoMoreno VelosoTom VelosoZeca Veloso e Maria Bethânia. Foi, abusando do clichê, lindo demais.
A cerimônia foi muito bem dirigida e repleta de poesia. Sem excesso e sem chatice, como, muitas vezes, eventos dessa natureza costumam ter. A premiação celebrou a vida de Luiz Melodia e trouxe ainda mais vida para a sua obra, com releituras tão boas quanto as versões originais das canções. O 29º Prêmio da Música Brasileira fez a voz do morro ecoar, mais uma vez, para a eternidade.
Assista, no vídeo abaixo, à cerimônia do 29º Prêmio da Música Brasileira:

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Discriminação, Entrevista, Jornalismo, Negritude, Negro, Preconceito, Racismo

ESTUDIOSOS DISCUTEM QUESTÕES LIGADAS À NEGRITUDE

 
Sabrina Gledhill e Jaime Nascimento

|Educação Os professores Sabrina Gledhill e Jaime Nascimento concederam entrevista exclusiva para o Desde que eu me entendo por gente. Na ocasião, eles falaram sobre negritude, preconceito e discriminação. A inglesa Sabrina Gledhill, 55 anos, é bacharel em Letras Inglesas e mestre em Estudos Latinoamericanos. Radicada na Bahia desde 1986, realiza pesquisas históricas e antropológicas. Jaime Nascimento tem 40 anos, é bacharel em História pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL) e mestrando em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
 
Desde que eu me entendo por gente: Negritude é algo que vai muito além da cor da pele? Por quê?
 
Sabrina Gledhill: É uma pergunta que, realmente, eu teria que pensar muito para responder, mas claro que negritude é uma filosofia. É uma questão de amor próprio, de visão de cultura, de história, de ancestralidade. Eu acho que têm muitas pessoas que são consideradas negras e que não têm negritude, no sentido de ter orgulho da cultura dos seus ancestrais negros. Aqui no Brasil se diz que todo mundo tem ancestralidade tripla, mas a ênfase é mais nos europeus. A parte indígena nem se fala. Existem muitos preconceitos e muita falta de informação sobre a África. Algumas pessoas acham até que a África é um país.
 
Jaime Nascimento: Sim. Isso pode ser mais ligado à questão do pertencimento, das pessoas se perceberem como negras ou não. Por exemplo, o nosso Rei do Futebol tem esse entendimento? Alguma vez ele se declarou? Eu não estou falando de ser militante, de carregar bandeira, não; mas de colocar “minha posição é essa”. Infelizmente, tem um monte de gente que não é negra; mas, felizmente, tem muita gente que é. Inclusive, não sendo fenotipicamente negra, mas considerando-se como tal. É questão de pertencimento, de percepção individual de cada um.
 
DQEMEPG: Muita gente costuma confundir preconceito e discriminação. Para esclarecer, diferencie cada conceito.
 
SG: Preconceito é uma questão muito pessoal. Discriminação é o que se faz no dia a dia para oprimir e excluir pessoas. O preconceito é a base de tudo isso. É uma coisa que, infelizmente, as pessoas aprendem no berço e com a televisão. Pode ser até inconsciente. O preconceito fere, mas é a discriminação que realmente perpetua as desigualdades.
 
JN: O preconceito é a sua opinião, positiva ou negativa, em relação à determinada coisa. A discriminação é a sua ação em função disso. Inclusive, o que a lei proíbe é a discriminação. Você não pode tratar as pessoas de forma diferente em função de uma característica física, psicológica, religiosa, sexual, o que for. A não ser que seja uma coisa da própria lei que vise, justamente, a promoção da igualdade. É o que se chama de discriminação positiva. O contrário não pode ser feito: discriminar prejudicando. Ninguém pode fazer isso e se fizer está passível de cumprir as penas que a lei impõe. A diferença básica é essa: a discriminação é a ação em função do preconceito.

# As péssimas fotos foram feitas por Raulino Júnior. Locação: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).

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