Cultura, Jornalismo Cultural, Texto de Quinta

Na Era da Informação, ser informado é compartilhar sem ler

Quem lê tanta notícia?*
Por Raulino Júnior ||Texto de Quinta|| 
Vivemos numa época em que as informações estão por todos os lados, em todos os lugares, publicadas por todas as pessoas. Não há quem não seja bombardeado por notícias, reportagens, postagens, comentários. Independentemente do meio, a informação atinge todo mundo hoje em dia. Da pessoa mais cosmopolita àquela que, por vontade, fica ensimesmada no seu mundo. Vez por outra, aqui e ali, ela ouve uma informação de alguém ou no rádio, ou a informação de alguém no rádio. Enfim, o fato é que estamos na Era da Informação e ninguém duvida disso. Contudo, isso não significa que estejamos tão informados assim. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Parece absurdo, e é.
O barato, na sociedade atual, e falando especificamente do nosso comportamento em plataformas digitais, é parecer informado. É a última moda, não sei se em Paris também. No Brasil e na Bahia, é tão comum quanto andar para frente. A lógica é a seguinte: a pessoa vê um conteúdo na timeline da rede social digital dela, ou recebe no WhatsApp, julga que é importante e compartilha. A leitura mesmo, deixa para “depois, e depois, e depois de amanhã”**. Como ser competitivo é inerente à natureza humana, com gradações variáveis, a satisfação é ser o primeiro a anunciar que algo aconteceu, a compartilhar aquela notícia importante. É bom, faz bem para o ego e a pessoa fica bem vista diante de um monte de gente que tem comportamento semelhante. A responsabilidade como o que foi compartilhado fica para “depois, e depois, e depois de amanhã”. E assim a vida segue na Era da Informação da sociedade desinformada.
Perceba que não me refiro às fake news, falo das informações que são produzidas com responsabilidade e que, ainda assim, são compartilhadas pelas pessoas sem a devida leitura. Qual é o grau de nocividade disso? Porque a gente já sabe que as fake news trazem informações falsas. E as notícias com informações verdadeiras que não são lidas? Adianta o quê? Certa vez, recebi um conteúdo no WhatsApp, li (como de costume. Isso tem que ser enfatizado!) e percebi que o que fora compartilhado não tinha relação nenhuma com o contexto no qual eu e o “compartilhador” estávamos. Tratava-se de uma inscrição num concurso para professores da educação básica, voltado para pessoas de um determinado estado. Indaguei e recebi uma resposta amarela, do tipo: “Compartilhei para você saber, caso conheça alguém que more lá”. Além de não ter lido, a pessoa não foi capaz de assumir o erro nem de pedir desculpas. O retrato fiel de muita gente que vive essa Era da Informação de araque. Não lê e não dá o braço a torcer. Típico.
“Releasezação” do jornalismo
O mais absurdo é que os, digamos, produtores profissionais de informação também compartilham conteúdos sem ler (e isso vira notícia! Literalmente!). Os jornalistas, que deveriam dar exemplo de um comportamento mais responsável nesse sentido, caíram no poço sem fim de algumas práticas bastante questionáveis da profissão. Há uma “releasezação” do jornalismo e todo mundo sabe disso. Ou seja, a sugestão de pauta, agora, é publicada (em alguns casos, da mesma forma e até mantendo os mesmos erros ortográficos), virando notícia e congêneres.
Na sua dissertação, intitulada Jornalismo Control c/Control v: uso do release na comunicação da informação on-line, defendida em 2006, na Universidade de Brasília (UnB)Alexandre Zárate Maciel, que fez mestrado em Ciência da Informação, denunciou o costume: “A transformação do release se deu de tal forma que esse passou a se assemelhar à notícia completa, com todos os dados e informações necessárias. Como que poupando o jornalista envolvido em rotina tão atribulada, da necessidade intrínseca à sua profissão de reunir informações de diversas fontes, por vezes contrastantes, e mesmo apurar a veracidade da informação oficial”, p. 10. O que tem que ser feito pelo jornalista, afinal ele estudou para isso, é profissional da área, acaba sendo terceirizado. Leia-se: feito por assessores de imprensa. No final das contas, o jornalista faz o quê, então? Precisa ter diploma para copiar e colar aquilo que nem leu?
Essa prática infame da “releasezação” é citada também por Adriana Maria Andrade de Santana, que fez mestrado em Comunicação, na dissertação CTRL+ C CTRL+ V: o release nos jornais pernambucanos, defendida em 2005, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): “Foi na primeira metade do século passado que o release chegou ao Brasil (DUARTE, 2002), utilizado como meio de divulgação de ações governamentais. De elemento suporte aos profissionais de imprensa, a distribuição de releases se transformou, em muitos casos, em fonte única e – por vezes – até no material final publicado pelas redações”, p. 46.
Na época da faculdade de Jornalismo, alguns colegas de turma e de curso garantiam que uma cantora de Axé superfamosa, que mora em Salvador e que levanta poeira por onde passa, era viciada em cocaína. Eles falavam isso com uma certeza que me assustava. Ficava refletindo sobre o tipo de profissionais que seriam, uma vez que compartilhavam uma informação da qual não tinham prova alguma. Eu, que não sou fã da cantora nem nada, mas sempre acompanhei o trabalho por gostar de Axé Music, alertava que nós, como estudantes de comunicação e futuros profissionais, tínhamos que ter responsabilidade com aquilo que a gente passava adiante. Os colegas argumentavam assim: “Oxente! A irmã da amiga da tia de um amigo meu tem uma filha que trabalha no Hospital Aliança e falou isso, isso e isso para ela sobre a cantora”. Bela apuração! Digna de um Pulitzer.
Jornalista tem que ter responsabilidade do que informa. Alguns deles não fazem o básico da profissão, que é ler e apurar, e acham que isso é tão normal quanto respirar. Se a gente critica, alegam que sofrem muita pressão e que há falta de tempo para um trabalho mais responsável. Justificativa absurda e corporativista. Imagina se os professores fossem para a sala sem preparar aula, reproduzindo tudo que os livros didáticos dizem, sem nenhuma criticidade, e justificassem isso na “falta de tempo”? Imagina, por exemplo, os professores de História nesse contexto? Que história do Brasil seria levada adiante pela “falta de tempo” em ler e apurar? Deixemos de “mas, mas, mas”. Jornalista tem que ler (é um absurdo ter que reiterar isso!), porque é uma atividade inerente à profissão, além de ajudar no aprendizado de ortografia (é cada escorregada que a gente vê por aí! E aqui não se trata de preconceito linguístico, basta ler o que os linguistas dizem sobre a questão. Aviso prévio: para saber, vai ter que ler, viu!). Caso contrário, já era a informação de qualidade! Se não quiser fazer isso, que é básico, procure outra forma de contribuir para o mundo e siga em paz. A Responsabilidade agradece!
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Lima, Dias e Gil: crônicas de um inquérito na barca

Lima Barreto e seu olhar contemplativo: crítica acima de tudo

Por Raulino Júnior ||RauLendo: leituras em pauta||

Lima Barreto é um dos mais inspiradores e geniais escritores que o Brasil já teve. Caso alguém duvide disso, uma passada de olho nas suas crônicas, só para dar um exemplo de parte da sua produção, faz a dúvida ir para o espaço. O carioca, que nasceu sete anos antes da Abolição da Escravatura (13 de maio de 1881) e morreu no ano da Semana de Arte Moderna (1922), fazia um retrato contundente da sociedade da época nos seus textos. Com olhar apurado, irônico e debochado, Lima conseguiu desnudar a hipocrisia daquele Rio do início do século XX nas crônicas que deixou para a posteridade. Algumas merecem destaque, como A Polícia Suburbana, de 1914 (“Os policiais suburbanos têm toda a razão. Devem continuar a dormir. Eles, aos poucos, graças ao calejamento do ofício, se convenceram de que a polícia é inútil. Ainda bem”), As Enchentes, de 1915 (“Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social”), Elogio da Morte, de 1918 (“A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de independência; ela só quer acompanhadores de procissão…”, “Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas”) e Não as Matem, de 1915 (“Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor. Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento. Deixem as mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus!”). Ler Lima Barreto não é apenas ter contato com uma literatura social, criativa e política, é ler o Brasil de ontem e, infelizmente, ainda o de hoje. Mesmo passando por dificuldades e sofrendo todo tipo de exclusão, Lima conseguiu sobrepujar tudo isso e ser farol. Para sempre.

 

Referência: 

BARRETO, Lima. Crônicas. 1911-1922. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000173.pdf>. Acesso em: 20 maio 2020.
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Dias Gomes critica a Igreja Católica em peça de 1966

Dias Gomes, assim como Lima Barreto, descreveu o Brasil de forma muito peculiar, com críticas e humor. O Pagador de Promessas (1960) atesta isso e O Santo Inquérito (1966) também. A peça critica a Igreja Católica, destacando a violência da Inquisição e mostrando como a força religiosa pode fazer uma pessoa se sentir culpada, mesmo sem culpa. Branca Dias, a protagonista, prova isso na pele, ao ser punida por algo que não sabe, porque não cometeu nenhum ato que justificasse o seu julgamento. Padre Bernardo representa um líder religioso típico: manipulador e sempre cheio de razão. Contudo, Dias Gomes ultrapassa a dicotomia da mocinha e do vilão, compondo uma Branca altiva e debochada. Claro que, muitas vezes, ela cai na ingenuidade. Isso dá frescor à história, tornando a dramaturgia ainda mais interessante. O baiano, nascido em Salvador, em 1922 (ano da morte de Lima), sabia prender o leitor com as suas histórias. A leitura de O Santo Inquérito faz a gente querer virar a página o tempo todo, para saber as emoções que virão e como a injustiça com Branca e sua família vai acabar. É uma pena que o final reflete muito a realidade. A lei dos homens, muitas vezes, vence. “Até quando as fogueiras reais ou simplesmente morais (estas não menos cruéis) serão usadas para eliminar aqueles que teimam em fazer uso da liberdade de pensamento?”, questiona Dias Gomes numa das passagens do texto.

Referência:

GOMES, Dias. O santo inquérito. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. Disponível em: <http://escoladacrianca.com.br/ws/wp-content/uploads/2017/03/dias-gomes-o-santo-inquerito.pdf>. Acesso em: 20 maio 2020.

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Auto da Barca do Inferno por [Gil Vicente, Midgard Editores]

Auto da Barca do Inferno virou clássico

Auto da Barca do Inferno (1517), do dramaturgo português Gil Vicente, é uma obra que caracteriza muito bem o teatro de tipos, aquele em que os personagens reúnem características mais evidentes de determinadas classes sociais. Em geral, eles não têm uma personalidade formada, determinante. Vicente narra uma história que tem como intuito moralizar, mas que mostra que ninguém está tão distante de fazer coisas ruins e de ter atitudes reprováveis. É um teatro bem humano. As pessoas morrem e chegam a um lugar em que tem duas barcas, uma comandada pelo Diabo (que leva para o Inferno) e outra pelo Anjo (a que vai para o Céu). Obviamente, ninguém quer ir para o Inferno. É aí que Gil Vicente deita e rola para criticar os costumes: traição, falsidade, ganância. O maniqueísmo que a obra traz não é bobo. Mostra o trânsito entre o bom e o mau, natural a todo ser humano. A narrativa não é tão empolgante. É, inclusive, maçante em alguns momentos, por ter ações muito repetitivas, que não desafiam a expectativa do leitor. Virou clássico e isso não se explica.

Referência:

VICENTE, Gil. Auto da barca do Inferno. Luso Livros. Disponível em: <https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1901197/mod_resource/content/1/Auto%20da%20Barca%20do%20Inferno%20%281517%29%2C%20de%20Gil%20Vicente.pdf>. Acesso em: 20 maio 2020.

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Livro infantojuvenil sobre Pedra de Xangô reforça diversidade das culturas africanas e estimula a salvaguarda do patrimônio cultural tombado em 2017

Obra é lançada em homenagem aos três anos de tombamento do monumento histórico localizado em Cajazeiras X

Pedra de Xangô em história voltada para o público infantojuvenil. Ilustração da capa: Dayse Ellen Gomes de Moura

Por Raulino Júnior

Em 4 de maio de 2017, depois de 12 anos de luta da sociedade civil organizada, das comunidades de terreiro e de pesquisadores dos direitos dos povos afro-brasileiros, o monumento histórico Pedra de Xangô foi tombado pela Prefeitura Municipal de Salvador, através da Fundação Gregório de Mattos. Isso significa que a Pedra, além de toda a sua importância para a história e cultura religiosa da cidade, se tornou oficialmente um bem cultural e está inscrita no livro do Tombamento dos Bens Imóveis e Sítios, assegurado pela Lei 8.550/2014, que institui normas de proteção e estímulo à preservação do patrimônio cultural do município de Salvador. Hoje, exatamente após três anos da solenidade de tombamento e como uma forma de homenagear tal conquista, os escritores Maria Alice Silva e Walter Passos lançam o livro infantojuvenil “Pedra de Nzazi, Xangô e Sogbo?”. Em tempos de distanciamento social, devido à pandemia do novo coronavírus, a estratégia de lançamento vai contar com a ajuda dos recursos tecnológicos. O livro, que tem prefácio de Everaldo Duarte (Agbagigan do Terreiro do Bogum) e ilustração de Dayse Ellen Gomes de Moura, será lançado nas redes sociais digitais, nos seguintes perfis: @pedra.de.xango@malice.advogada@walterpassos21@daysegomis (Instagram); e nas páginas do Facebook da Pedra de Xangô, da Conversa de Preto e de Negras Raízes. Inclusive, a criação da obra, escrita numa tarde de domingo, especificamente no dia 26/4/2020, foi feita com intermediação tecnológica: os autores produziram através de trocas de mensagens pelo WhatsApp, em apenas duas horas. O livro estará disponível para qualquer pessoa que queira ler. No futuro, Walter e Maria Alice estudam uma maneira de comercializá-lo. “Trata-se de um projeto piloto, produção independente e estamos estudando a melhor forma de como colocá-lo no mercado. Há todo um trabalho intelectual e tempo que gastamos nessa produção”, explica a escritora. Na entrevista a seguir, feita por e-mail, os autores contam detalhes da produção do livro, opinam sobre a importância de registrar a história da Pedra de Xangô para o público infantojuvenil e falam como professores podem se apropriar da obra.
Maria Alice Silva é advogada, fez mestrado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA (PPGAU/UFBA) e, atualmente, é doutoranda no mesmo programa. Além disso, é especialista em Direito do Estado, Direito Civil e Processual Civil, militante no enfrentamento ao racismo e na promoção da igualdade racial no Estado da Bahia.

Foto: Mônica Silveira

Desde que eu me entendo por gente: Como nasceu a ideia do livro “Pedra de Nzazi, Xangô e Sogbo?” e por que a escolha de direcionar para o público infantojuvenil?
Maria Alice Silva: A ideia de escrever o livro voltada para o público infantojuvenil surgiu em novembro de 2019. Depois de muito relutar, aceitei o convite de uma professora da Escola Municipal Manoel Clemente Ferreira, em Vila Canária, para fazer uma palestra sobre a Pedra de Xangô para 200 alunos na faixa etária de 7 a 12 anos, no dia 20 de novembro, em homenagem ao mês da Consciência Negra. De imediato, recusei o convite, por dois motivos: I – Eu não sabia como introduzir o tema. Nunca fiz palestra para alunos nessa faixa etária e acreditava que não conseguiria prender a atenção dos estudantes por muito tempo; II – A maioria das escolas só pautam a questão em novembro, mês da Consciência Negra. Mas a professora insistiu muito e acabei aceitando o convite. A minha estratégia foi solicitar ajuda a um amigo pedagogo e assistente social, que me deu algumas dicas de como introduzir o tema; e um outro amigo psicólogo, especialista em psicologia ambiental, que convidei para dividir a palestra comigo. Ele introduziu o bate-papo contando a história de Janaína, uma menina negra, inteligente, que lutava contra o racismo ecológico em sua comunidade. Em seguida, foi a minha vez, iniciei a roda de conversa com a apresentação da música que fiz sobre a Pedra de Xangô. Para prender a atenção dos alunos, coloquei pedras de várias texturas, tamanhos e cores no centro do salão e solicitei que algumas crianças escolhessem uma pedra para falar sobre a importância de cada uma delas no seu cotidiano. Os relatos foram incríveis, cada um mais lindo que o outro. Houve quem dissesse que as britas serviam para fazer os alicerces das casas, que a pedra de cristal verde servia para embelezar a vida e as mulheres, através dos colares, brincos e anéis. Iniciei a apresentação falando sobre a importância histórica, cultural, ambiental e geológica do monumento rochoso para a cidade de Salvador e encerrei com o teaser do filme O grito que entrou nos meus sonhos, que trata da história da Pedra de Xangô. Todos ficaram emocionados com a apresentação. Solicitei que um estudante se candidatasse a resumir o que entendeu sobre o tema. Uma aluna se candidatou a fazer o resumo. Iniciou falando que estava feliz em saber que a Pedra de Xangô foi abrigo de negros escravizados, que é uma área remanescente de quilombos e de proteção ambiental, e que todas as pessoas deviam ajudar a proteger o lugar. O contentamento e sentimento de pertencimento dos alunos eram tanto, que alguns deles retornaram à sala de aula, pegaram seus cadernos e voltaram para falar comigo. Queriam autógrafos. Fizeram uma fila e esperaram pacientemente a sua vez. Uma aluna declarou: “Esse autógrafo vou guardar para o resto da minha vida”. Estive em vários lugares para falar sobre a Pedra de Xangô, inclusive em Harvard, mas confesso que a experiência com os alunos da Escola Manoel Clemente Ferreira foi única.
Desde: No portal Pedra de Xangô, do qual você é idealizadora, há um texto em que afirma que “…toda vez que mencionarmos Pedra de Xangô, entenda-se Pedra de Xangô, Nzazi, Sogbo, do Buraco do Tatu, da Onça e do Ramalho…”. Isso significa que não há diferença entre nenhuma dessas menções? 
MAS: Nzazi, Xangô ou Sogbo, no universo das religiões afro-brasileiras, são a mesma figura. O que faz mudar o nome é a origem do terreiro, se é da nação Angola, Ketu, Jeje ou Umbanda. Quanto aos outros nomes dado à Pedra, existem muitos enredos. Optamos por respeitar a posição de todos. É necessário não só atiçar a curiosidade, mas também esclarecer ao público infanto-juvenil porque a Pedra de Xangô tem vários nomes. Há um senhor que batizou a Pedra com o nome dele, Pedra do Ramalho. Há quem diga que o nome da Pedra é Pedra da Onça, porque duas onças moravam em cima da pedra. É muito enredo. Enfim, Pedra de Xangô é enredo, é rede, é de todo mundo, é patrimônio cultural da cidade de Salvador.
Desde: Quanto tempo demorou para terminar o livro e deixá-lo com uma linguagem convidativa para o público a que se destina? E qual abordagem ele traz?
MAS: A história é curta. Levamos, aproximadamente, duas horas construindo a narrativa. Introduzimos o tema Pedra de Xangô a partir da pergunta: Pedra de Xangô, Nzazi ou Sogbo? A história possui cinco personagens. Subliminarmente, trabalhamos com a autoestima dos jovens, pois todos os personagens são negros empoderados e bem-sucedidos na vida. Não tem história de fracassados. Nossos ancestrais foram reis e rainhas e precisamos resgatar essa memória. Nesta primeira história, buscamos responder a pergunta: qual o nome da Pedra e a quem pertence?
Desde: No ano passado, você lançou o livro Pedra de Xangô: um lugar sagrado afro-brasileiro na cidade de Salvador, um desdobramento da sua dissertação de mestrado, defendida em 2017, no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA (PPGAU/UFBA). Hoje, lança outro, em parceria com Walter Passos. Como foi esse processo de escrita em dupla? E quem convidou quem para a parceria?
MAS: Existe um movimento em defesa da Pedra de Xangô, o qual batizei de Pedra de Xangô é enredo, é rede. Por que esse lema? Porque muito atores atuaram e atuam para preservar o monumento sagrado Pedra de Xangô, Walter Passos é um deles. Em 2016, ele aceitou o meu convite para participar da produção da emenda parlamentar encaminhada à Câmara de Vereadores do Município de Salvador propondo a criação da Unidade de Conservação APA Municipal Vale do Assis Valente e Parque em Rede Pedra de Xangô, quando da elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), de 2016. Walter é historiador, poeta e foi uma das primeiras pessoas a escrever um livro sobre quilombos na Bahia. Sempre que necessito, o consulto. Em uma das minhas últimas consultas, em 26/04/2020, falei do meu desejo de escrever sobre a Pedra de Xangô para o público infanto-juvenil. Ali, nascia o convite e começamos mais um enredo. A história foi construída no mesmo dia, remotamente, através de mensagem de WhatsApp. Eu e Walter Passos somos muito ocupados. Assim, estipulamos escrever na tarde daquele domingo, entre às 14 e 18h, o único tempo que teríamos disponível. Levamos, aproximadamente, duas horas construindo a narrativa.

Pedra de Xangô: monumento afro-religioso tombado em 2017 pela Prefeitura de Salvador. Foto: Mônica Silveira

Desde: A sua dissertação de mestrado subsidiou a criação da APA Municipal Assis Valente, o Parque em Rede Pedra de Xangô e foi um instrumento fundamental para o tombamento da Pedra de Xangô como Patrimônio Cultural de Salvador, em 2017. Num trecho da pesquisa, você afirma: “A religião afro-brasileira tem como princípio cultuar e reverenciar a natureza. O respeito a cada elemento animal, vegetal e mineral é direcionado com a mesma intensidade e devoção com que outras religiões devotam aos seus signos de fé. Se a hóstia é o corpo de Cristo, a Pedra de Xangô é uma fração do corpo dos orixás, voduns, inquices e caboclos”. O que os governantes devem fazer para preservar esse e monumento histórico e mantê-lo relevante para toda a cidade, e não só para o povo de santo?
MAS: Em visita de campo à Pedra de Xangô, em 8 de novembro de 2014, constatei a ocorrência de um fato criminoso: duzentos quilos de sal de cozinha e vários sacos plásticos foram colocados na base da pedra sagrada e no seu entorno. Registrei o ocorrido e encaminhei as imagens para várias lideranças e associações religiosas que solicitaram aos órgãos públicos a adoção das medidas judiciais cabíveis. A agressão sofrida pela Pedra de Xangô repercutiu nacionalmente. Notícias foram veiculadas na imprensa escrita e falada, e um relatório foi encaminhado ao Ministério da Justiça solicitando providências. No dia 12 de novembro de 2014, as Comunidades de Terreiro realizaram um ato de desagravo. O evento atraiu redes de televisão, jornais e contou com a presença de autoridades públicas, a exemplo do então titular da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (SEPROMI). Na oportunidade, ele convocou uma reunião para o dia 14 de novembro, com os representantes dos poderes públicos estaduais, municipais e sociedade civil. Os representantes compareceram à reunião e nascia ali a proposta de se criar um Fórum Permanente em Defesa da Pedra de Xangô, com a participação do Estado, Município, União e Sociedade Civil. Uma das primeiras ações foi a realização da aula pública Pedra de Xangô – Nzazi – Sogbo: território sagrado, no projeto História e memória da população afro-brasileira, promovida pela Fundação Pedro Calmon e pelo Centro de Memória da Bahia, em 3 de dezembro de 2014, atendendo ao que preceitua a Lei Federal 10.639/2003. A aula foi ministrada por mim, lá na Pedra de Xangô, para os alunos da rede estadual de ensino. Penso, salvo melhor juízo, que os governantes não devem apenas investir em ações pontuais, é dar efetividade às normas vigentes, transversalizando as ações, tutelando de fato as demandas dos povos e comunidades tradicionais. Como bem dissera Mário Theodoro, no livro As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), ou vamos encarar a questão racial mediante o debate franco e aberto, verificando a ausência do poder público e o que precisa ser feito para mudar essa realidade. As secretarias de educação do município e do estado devem introduzir no conteúdo programático das escolas o tema patrimônio cultural afro-brasileiro. A palavra patrimônio, no seu sentido figurado, significa herança comum, transmitida de uma geração para outra, com valor e importância reconhecidos, que deve ser protegido e preservado. No livro Pedra de Xangô: um lugar sagrado afro-brasileiro na cidade de Salvador, defendo que o patrimônio é uma construção social, política, econômica, que requer a participação de todos. A atuação isolada dos atores ou entes federativos (Município, Estado, União) não é suficiente para atender à complexidade do que é preservar um bem cultural. Faz-se necessário que os órgãos revejam as metodologias aplicadas, a fim de dirimir as sobreposições e as crescentes situações de conflitos, e passem a atuar em rede.
Desde: O que espera que as crianças e adolescentes compreendam sobre a importância histórica e cultural da Pedra de Xangô quando finalizarem a leitura do livro?

MAS: Em tudo na vida, temos que ter estratégia. Precisamos pensar a curto, médio e longo prazo. Muito me preocupa os constantes atos de Intolerância religiosa cometidos contra a Pedra de Xangô. Quando o parque estiver pronto, qual será a reação dos moradores de Cajazeiras? Eles estão prontos para receber um parque temático? Já querem mudar o nome do parque. Pensando nisso, optei por também, trabalhar com o público infanto-juvenil, compreender o seu universo e envolvê-los na salvaguarda do patrimônio cultural Pedra de Xangô. Você só preserva o que conhece. Os adultos normalmente são endurecidos, resistentes a qualquer mudança no seu modo de viver e pensar. A ação tática para transformações está no preparo dos futuros guardiões da Pedra de Xangô. Esses, sim, estarão com toda a força para modificar a forma de pensar calcificada, mantenedora da falta de respeito à diversidade religiosa. A proposta é que cada criança, independentemente do credo de seus pais, entenda que a Pedra de Xangô é um patrimônio cultural, ambiental e geológico da cidade de Salvador. Ancestralidade é identidade, é raiz, é a continuidade da existência através dos descendentes. O maior exemplo de respeito aos antepassados é preservar a sua memória. O nome que não é esquecido não morre, viverá sempre. A publicação do livro “Pedra de Nzazi, Xangô ou Sogbo? tem esse objetivo de contribuir para que as futuras gerações tenham a oportunidade de conhecer, vivenciar e preservar as histórias dos seus ancestrais.

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Parque Pedra de Xangô. Lugar do sagrado – centro de reverência; lugar da ciência – centro de referência; lugar de resistência – encruzilhada religiosa, política e comunitária do povo de terreiro de Salvador. Parque Pedra de Xangô, uma construção coletiva e cidadã que deu certo. Poder público, comunidade e ciência trabalhando juntos na implantação do primeiro parque a levar o nome de um orixá no Brasil, Parque Pedra de Xangô. Parabéns ao tripé. Inaugurando uma nova era de se implantar políticas públicas em Salvador, por isso, Pedra de Xangô é enredo, é rede. (Maria Alice).
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Walter Passos é teólogo, historiador, poeta, afrocentrista e pan-africanista. É formado em História há 39 anos e ordenado pastor há 35, pela Igreja Presbiteriana Unida do Brasil. Faz parte da coordenação do Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos e, após a pandemia, com mais dois pastores, inaugurará a Igreja Metodista Episcopal Africana, no bairro da Liberdade, em Salvador.

Foto: Walter Mauro

Desde que eu me entendo por gente: Além de historiador e poeta, você é formado em Teologia e é pastor. Como foi se distanciar do aspecto religioso e se deter ao histórico na escrita do livro? Houve esse distanciamento ou algum conflito no processo de produção?
Walter Passos: Sou afrocêntrico, pan-africanista com tendência garveysta. Sendo assim, defendo que todas as culturas dos africanos no continente e na diáspora devem ser respeitadas. Não tive nenhum problema em escrever o livro, senti-me privilegiado juntamente com Maria Alice. Muitos evangélicos e católicos amam Thor, um deus inimigo e maior rival de Yahushua no cristianismo europeu. Compram livros infantis, brinquedos, jogos para os filhos e os acompanham ao cinema para assistir ao filme. Sorriem quando as criancinhas dizem que estão com o poder do martelo de Thor. Quando se fala em qualquer personagem africana, eles o demonizam. Thor é conhecido por ser Deus do Trovão. Nzazi, Sangò e Sogbo são conhecidos por dominarem os raios e os trovões, entre outros atributos, e os evangélicos e os católicos o consideram ruim, por ser africano. Não houve nenhum conflito da minha parte. O desrespeito às religiões de matrizes africanas pelo cristianismo eurocêntrico é consequência do racismo contra tudo que é africano. Eu sou praticante do mais antigo cristianismo, o de Matriz Africana.
Desde: A obra é voltada para o público infantojuvenil. Qual foi o principal desafio em abordar o conteúdo histórico acerca da Pedra de Xangô com uma linguagem que dialogasse com esse público?
WP: Eu escrevo contos infantis há muito tempo. Comecei criando histórias para os meus filhos, diante da dificuldade à época de encontrarmos materiais didáticos adequados para crianças pretas. Hoje, tenho quatro netos e nenhuma dificuldade de dialogar com o público infantojuvenil. Lecionei muito tempo com as quintas séries no Colégio Estadual Tereza Conceição Menezes, no bairro do Curuzu, e de 1992 a 1994 fundamos o Centro Educacional Quilombo, no bairro na Liberdade, proporcionando, com recurso próprios, alfabetização gratuita para crianças. Como se pode ver, acredito ter intensa vivência e aprendizados com esse público.
Desde: Como foi esse processo de escrita em dupla? Você é autor de outros livros? Quais?
WP: Maria Alice havia me pedido a composição de uma poesia para ser recitada no dia 4 de maio por uma criança. Demorei um pouco a rabiscar e, após alguns dias conversando sobre a poesia, propus a ela que escrevêssemos uma história infantil. Ela aceitou e com tranquilidade rabiscamos o conto. Tenho uma interação muito forte com ela, o trabalho fluiu prazerosamente. Escrevi alguns livros: Teologia NegraAfro-Reflexões e Perfume de Melanina. Também publiquei a primeira pesquisa sobre quilombos no estado da Bahia, compilando-a no livro Bahia: Terra de Quilombos, ainda no início da década de 90. A partir do conhecimento desse meu livro, originaram-se as mais diversas pesquisas e programas de pós-graduação stricto sensu sobre quilombos no estado.
Desde: Qual a importância de uma obra dessa natureza para a sociedade atual?
WP: A Pedra de Nzazi, Sangò e Sogbo vem contribuir preenchendo uma lacuna nos livros infantis africanos na sociedade brasileira. Vivemos dias difíceis, com falta de respeitabilidade com tudo o que é africano no Brasil, especialmente as religiões de matrizes africanas, as quais sofrem ataques diretos da mídia e instituições cristãs, além do descaso dos governantes e a falta de conhecimento das maravilhosas cosmogonias oriundas da África.
Desde: O que espera que as crianças e adolescentes compreendam sobre a importância histórica e cultural da Pedra de Xangô quando finalizarem a leitura do livro?
WP: Nossas crianças africanas em diáspora não possuem monumentos de suas ancestralidades, toda a informação perpassada é da ancestralidade eurocêntrica: nomes de ruas, logradouros, praças, bairros, datas festivas, escolas, inclusive os seus próprios nomes e sobrenomes. No livro, mostramos a diversidade de algumas das culturas africanas prisioneiras de guerras e sequestradas para o Brasil: Golfo de Benin (Jejes, Ketus, Ijesas), do grupo étnico-linguístico Bantu (Kongo e Angola) com suas diversas culturas e dos nativos brasileiros, os quais também foram escravizados pelos europeus. Após a leitura das crianças, dos jovens e dos adultos, com certeza, todos ficarão orgulhos da ancestralidade das culturas que perseveram Nzazi, Sangò e Sogbo, representantes da justiça que tanto carecem o povo africano no Brasil e os nativos (indígenas), e protegerão a pedra como um patrimônio de resistência de todos os africanos no Brasil.
Desde: Como, na sua opinião, os professores poderão se apropriar do livro para usar como recurso pedagógico nas aulas, garantindo assim a implementação da Lei 10.639/2003?

WP: Os(As) professores(as) poderão fazer uma leitura transversal da história. No livro, se trabalha a língua portuguesa, a geografia, a história, a educação física, o teatro, as línguas africanas, as ciências naturais, as artes, as religiões, a matemática e todas as matérias. É uma oportunidade para os(as) professores(as) trabalharem a diversidade cultural brasileira contida no livro sobre as nações africanas e indígenas de uma forma ancestral e contundente.

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Agradecimentos especiais ao autores, pela disponibilidade, confiança e atenção; e ao jornalista Tiago Bittencourt, pela sugestão da pauta.
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