A Roda de Conversa África Atual, que aconteceu na tarde de ontem, na Casa do Olodum (Pelourinho), teve como objetivo propor uma reflexão acerca da África de hoje, bem como fazer um paralelo com a realidade brasileira. A reunião foi idealizada em comemoração pelo Dia da África, celebrado em 25 de maio, e contou com a participação de João Jorge Rodrigues (presidente do Olodum), Zulu Araújo (diretor da Fundação Pedro Calmon), Carla Pita (conselheira do Olodum e educadora), Luciane Reis (publicitária e idealizadora do MercAfro), Aquataluxe Rodrigues (administradora, produtora cultural e integrante da Comissão de Juventude do Olodum), Kátia de Melo (fundadora da Escola Olodum), Tonho Matéria (cantor, compositor, gestor cultural, publicitário e mestre da capoeira) e Abraão Macedo (empresário e palestrante motivacional). A Roda de Conversa foi a segunda da série de ações pensadas para comemorar o Dia da África no Centro Histórico de Salvador. A primeira foi um almoço no restaurante Cantina da Lua, em solidariedade a Clarindo Silva, empresário e agitador cultural que teve os bens do estabelecimento penhorados devido a uma dívida trabalhista.
Rafael Manga, mediador do encontro e um dos organizadores do evento, disse que a iniciativa nasceu para trazer outros diálogos, estrategicamente ausentes das pautas da mídia tradicional, para a internet, aproximando do público jovem. “O Olodum é um grupo cultural que tem diversas ramificações. Entre elas, a TV Olodum. Essa proposta inicial em Dia de África é da TV Olodum, a fim de abrir espaço para outros diálogos, uma nova forma de se comunicar com a sociedade, trazer essa temática para dentro da internet. Sobretudo, com essa juventude que está antenada nos blogs, os digital influencers. Às vezes, a gente fala que a juventude não tem interesse, talvez ela não tem acesso. Nós estamos entrando nesse processo, nesse meio de comunicação, para dialogar com as diversas formas de juventude e da sociedade civil em geral. O Dia de África é um dia muito importante para a sociedade brasileira, sobretudo pela colaboração que a África tem aqui. Esse momento de corrupção, esse momento de democracia é uma coisa muito atual”.
Rafael Manga: “O Dia de África é um dia muito importante para a sociedade brasileira”. Foto: Raulino Júnior
A Roda de Conversa foi aberta por João Jorge, que destacou a importância de pensar um pouco na África contemporânea: “Essa conversa é para pensar um pouco sobre os problemas atuais da África contemporânea, dos nossos problemas e começar abrir o caminho de uma discussão que não seja só da herança africana bem antiga. Os países africanos vivem aqui, ao lado da gente, que tal a gente saber um pouco mais de Angola, da África do Sul, de Gana, da Nigéria, do Benin, do Marrocos?”, provocou. Para Zulu Araújo, embora alguns países africanos apresentem problemas semelhantes aos do Brasil, é preciso avançar nesse olhar que se tem da África: “É surpreendente como alguns países africanos têm problemas tão semelhantes quanto os nossos. Eles não estão em 1500 como muitos de nós podemos pensar ou imaginar. Eles têm problema na área da agricultura, da violência, da saúde, do trabalho, do emprego, que é como também o Brasil vive, como boa parte do mundo vive. Então, não dá pra gente se relacionar com o continente africano com o olho em 1500. Não dá pra gente celebrar o Dia da África com o olho em 1500, porque, se a gente continuar fazendo isso, nós estaremos, na verdade, nos aprisionando no século 15, século 16. E esse seculo 15/século 16 é o século da colonização. São séculos onde o continente europeu, praticamente, aprisionou e quase destruiu o continente africano. Seja pela exploração predatória que fez naquele continente, levando grande parte dos seus minérios, do seu ouro, do seu diamante; mas, principalmente, levando o seu principal ativo, que foram os seres humanos. Mas concordo integralmente com a afirmação de João Jorge: não adianta a gente ficar se lamentando, não adianta a gente ficar remontando esse passado, sem entender que nós temos o presente para viver e para tocar. Essa iniciativa de a gente dialogar com a África atual significa a gente entender que a África atual, assim como o Brasil, precisa trilhar o caminho do desenvolvimento, o caminho do respeito à democracia, o caminho da diversidade, o caminho do respeito às religiosidades distintas, que brancos, negros, amarelos e indígenas possuem. Significa a gente, também, advogar e defender a cultura enquanto um elemento estratégico do desenvolvimento humano. O que nos faz seres humanos é a cultura, não é outra coisa”.
Carla Pita trouxe para a Roda o exemplo de duas mulheres de sucesso do continente africano: Carmen Pereira (primeira mulher a presidir um país africano: Guiné-Bissau) e Ellen Johnson (primeira mulher eleita no continente africano pelo voto). “É importante desconstruir falsas narrativas em relação ao continente africano no dia de hoje. No dia de hoje, nas redes sociais, tem muita gente compartilhando imagens, infelizmente, de uma África envolta pela fome, miséria, epidemias e existe uma África que nós conhecemos, que é uma África tecnológica, que é uma África inventiva. Se eu não me engano, a tecnologia 3G chegou ao Brasil em 2008. Em 2005, Angola já tinha tecnologia 3G. O Brasil ainda tem uma visão minimalista em relação à Africa”. A educadora ainda falou sobre os equívocos da imprensa brasileira na cobertura da epidemia do ebola. Kátia de Melo falou sobre a atuação da mulheres na gestão política, enfatizando o caráter empoderador disso: “As mulheres negras, as jovens principalmente, precisam entrar nesse espaço de disputa, porque é um espaço de empoderamento perfeito. É um espaço de empoderamento para o nosso modelo de sociedade, que é a democracia. Então, não tem outro caminho. A gente está em várias frentes de lutas, em vários caminhos, mas o espaço para o empoderamento, que vai produzir políticas públicas e definir as questões, é o do poder político”, pontuou.
Da esquerda para a direita: Carla Pita, Aquataluxe Rodrigues e Luciane Reis. Foto: Raulino Júnior
Aquataluxe Rodrigues direcionou o seu discurso para os aspectos ligados à mulher preta. Nesse sentido, questões como representatividade e protagonismo da juventude negra e das jovens negras foram destacadas. Aquataluxe mostrou uma projeção na qual trazia perfis de africanas que são referências para mulheres negras de todo o mundo, como a rainha Nzinga Mbandi Ngola, Wangari Maathai (primeira mulher africana a ganhar o prêmio Nobel da Paz, em 2004), Phiona Mutesi (campeã de xadrez, em Uganda, em 2013) e Leila Lopes (Miss Universo de 2011). “A África reconhece os seus e a gente tem que aprender também a reconhecer as nossas. Porque nós reconhecemos os nossos, mas, às vezes, a gente esquece das nossas mulheres guerreiras que fizeram história e que precisam ser reverenciadas e lembradas o tempo todo. Não só por uma questão de igualdade, mas por uma questão também da importância da representatividade”, reconheceu Aquataluxe. A administradora chamou a atenção também para a ideia ultrapassada que está no inconsciente das pessoas em relação à África: “A gente tem que tirar essa ideia de que esse continente, com esse grau de complexidade, com mais de cinquenta países, fala a mesma língua, tem a mesma moeda, tem o mesmo sotaque. Essa visão de uma juventude ou de uma população ou de um povo negro, sofrido, não é mais a África que a gente quer representar”. Como falou muito de representatividade, Aquataluxe Rodrigues fez uma crítica positiva ao evento: “Eu gostaria muito que, nesse debate como o de hoje, a gente tivesse realmente uma pessoa da África aqui ou que tivesse morando no Brasil, para que essa roda de conversa sobre essa África atual fosse, de fato, representada”, sugeriu.
Luciane Reis deu dicas e falou muito sobre empreendedorismo negro. “Nós empreendemos sozinhos. Diferente [sic] do empreendedor não negro, que vai ter um mentor dizendo a ele como é que o negócio caminha, como é que o negócio não caminha, que vai ter gente dando suporte psicológico, a gente constrói esse processo sozinho”. E completou: “Nós também precisamos parar com essa concepção de achar que a gente só empreende numa perspectiva financeira. A gente não empreende somente na perspectiva financeira. A gente empreende também na perspectiva de disputa política. A gente empreende no processo da disputa ideológica”. Tonho Matéria falou sobre a primeira vez que visitou o continente africano, quando ainda era cantor do Olodum, e fez o seguinte alerta: “Muitas vezes, os elementos africanistas são renegados por nós mesmos que fazemos parte até do Movimento Negro. Muitas vezes, a gente renega, não quer aceitar certos elementos, certos símbolos”. Já Abraão Macedo destacou a importância do uso de bitcoin (moeda digital) pela comunidade negra, para acompanhar os avanços da tecnologia financeira. “Eu acho que a comunidade negra, sobretudo a baiana, que é empreendedora, os blocos afro, que sempre foram modelos de empreendedorismo e organização, de resistência organizada, devem pensar nisso. Por que a gente não começa a falar em bitcoins, a investir em bitcoins? A África atual está bem moderna, está à frente do Brasil e, dos cincos países hoje que pesquisam, que quererem saber, que estão investindo em bitcoins, três são africanos: Nigéria, África do Sul e Gana”.
Dia da África
O Dia da África foi instituído pela ONU (Organização das Nações Unidas) depois que 32 chefes de estado se reuniram na Etiópia com o objetivo de tornar o continente independente do domínio europeu. Isso foi em 25 de maio de 1963 e, na ocasião, os líderes assinaram uma carta de fundação da Organização de Unidade Africana (OUA). A OUA foi a semente para a União Africana (UA), que a substituiu em 2002.
Card criado pela União Africana para comemorar o Dia da África em 2018. Imagem: divulgação
Em 2018, o tema escolhido pela União Africana para comemorar o Dia da África foi Ganhar a luta contra a corrupção: um caminho sustentável para a transformação de África. No final do debate, Zulu Araújo fez uma consideração muito pertinente para reforçar essa discussão: “Tem um elemento que deve estar presente na África atual, no Brasil atual, no mundo atual, que é um componente de ordem cidadã: chama-se democracia. Eu conheço, razoavelmente, alguns países africanos e temos que admitir que a democracia não se faz presente na maioria desses países. Isso faz com que a gente continue tendo, assim como no Brasil, uma elite extremamente desvinculada da maioria da sua população. A democracia possibilitará que avanços possam alcançar a maioria do nosso povo e, no continente africano, isso ainda não é uma realidade. A África hoje, apesar de ter lideranças políticas riquíssimas, representa apenas 1% da inserção na economia mundial”, concluiu.