Cultura, DESDEnhas, Jornalismo Cultural, Leitura, Negritude, Negro, Resenha, Toca o Desde

Um livro para aprender brincando

Catálogo reúne jogos, brincadeiras e informações sobre países africanos e o Brasil

Imagem: reprodução do livro

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Brincar na rua, com os amigos, usando os materiais disponíveis e colocando muita criatividade nisso tudo: essa realidade foi muito comum na infância da maioria da população negra. Do Brasil e de alguns países africanos. O Catálogo de Jogos e Brincadeiras Africanas e Afro-Brasileiras (Aziza Editora, 2022), organizado pelas professoras Helen Pinto, Luciana Soares da Silva e Míghian Danae, ilustrado por Rodrigo Andrade, deixa isso muito evidente. O livro, que foi contemplado pelo edital Equidade Racial, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), em 2020, partiu de uma pesquisa que fez “escuta de mulheres e homens do Brasil e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs), com idade entre 40 e 60 anos, sobre quais os jogos e as brincadeiras que conheciam”, p. 3. Entre outubro de 2020 e março de 2021, estudantes bolsistas, oriundos de sete países (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe), entrevistaram familiares e conhecidos de seus países de origem. Exceto José Maye (catalogou brincadeiras da Guiné Equatorial), que estuda na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), todos os outros pesquisadores são da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), campus Malês, que fica em São Francisco do Conde, na Bahia. São eles: Pedro Nguvu (Angola), Luliane Sousa (Brasil), Jacica Fernandes (Cabo Verde), Yacine Tavares (Guiné-Bissau), Hercinia Wasse (Moçambique) e Quezia Miranda (São Tomé e Príncipe).

O catálogo apresenta algumas brincadeiras e jogos interessantes, outros nem tanto.  Fita e Melancia, do Brasil, justificam o que digo. Muita atividade relatada tem semelhança com outras, de países diferentes. Por exemplo, Bica Bidom, brincadeira da Angola, tem a mesma dinâmica de Esconde-Esconde, daqui do Brasil. Assim como Escondida, de São Tomé e Príncipe. O Jogo da Carambola, de Cabo Verde, pela descrição presente no livro, é igual ao Jogo da Bola de Gude daqui. Por sinal, não está catalogado na obra. Curioso. Os países que têm mais brincadeiras e jogos catalogados são Angola e Brasil. Apesar de não ter sido o objetivo da pesquisa, faz falta a informação sobre a origem dos nomes das atividades listadas. Por que a brincadeira se chama AmarelinhaNeguri? O leitor fica muito curioso para saber. Na página 36, por exemplo, a obra explica o que é “bater foguinho”, na brincadeira Pula Corda (Brasil): “Na brincadeira, ‘bater foguinho’ é bater a corda em um ritmo acelerado, a fim de desafiar ainda mais quem está pulando – remete à sensação de quentura do atrito da corda com a pele de quem pula, por isso, deve-se ter cuidado com essa variação, para não haver machucados e queimaduras”. A explicação de alguns nomes de jogos e brincadeiras enriqueceria muito o catálogo.

É impossível ler o livro e não lembrar das brincadeiras e jogos que já participamos e daqueles que, pela descrição, a gente fica com vontade de participar. Mocho (Moçambique) é um bom exemplo: “Entre os participantes da brincadeira, um deve ser escolhido para ser o mocho, aquele que vai se esconder. Os demais integrantes devem ficar de costas, esperando que o mocho se esconda. Em seguida, o grupo sai à procura do mocho. A primeira pessoa a encontrá-lo não deve avisar a ninguém da sua descoberta. Em vez disso, deve se juntar ao mocho, escondendo-se também, enquanto os demais continuam a busca”, p. 56. Terra-Mar, também de Moçambique, é simples, mas deve ser muito divertida, porque exige atenção redobrada: “Uma longa reta deve ser riscada no chão. De um lado, escreve-se ‘terra’ e do outro, ‘mar’. No início, todas as crianças podem ficar do lado da terra. Ao ouvirem ‘mar!’, todas devem pular para o lado do mar. Ao ouvirem ‘terra!’, pulam para o lado da terra. Quem pular para o lado errado é eliminado da rodada. O último a permanecer sem errar, vence”, p. 58. Lembra muito o Morto-Vivo, que, curiosamente, também não foi catalogada. Achei a brincadeira Banho no Rio – Plantar Bananeira (Brasil) um pouco perigosa. Principalmente, pela sugestão de ser feita dentro d’água, mesmo com o alerta de ter um adulto supervisionando.

Na Apresentação da obra, a gente lê:

“Este catálogo foi produzido com base nessa recolha de dados e esperamos que seja utilizado em redes municipais de educação básica – em especial na etapa da educação infantil – dos países envolvidos.

Objetivamos que este material possa colaborar, no Brasil, para a aplicação, nas escolas, da Lei 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (nº 9.394/96), além de auxiliar nas reflexões sobre processos curriculares e abordagens pedagógicas inovadoras e na produção de propostas pedagógicas de mediação estética e lúdica”, p. 3.

O objetivo é cumprido. O catálogo deve ser usado pelas instituições de ensino, numa forma de implementar o que preconiza a Lei 10.639/2003. O fato de pesquisadores terem se debruçado sobre a temática das brincadeiras e jogos africanos e afro-brasileiros é de um ganho enorme para a nossa cultura, que é alicerçada pelas contribuições do povo negro. Além disso, o livro estimula o brincar, ação importante para toda e qualquer criança. A vontade de quem lê é sair brincando, seguindo o que está descrito. É para aprender brincando mesmo!

Referência:

PINTO, Helen Santos; SILVA, Luciana Soares da; NUNES, Míghian Danae Ferreira (Orgs.). Catálogo de jogos e brincadeiras africanas e afro-brasileiras. São Paulo: Aziza Editora, 2022. Disponível em: <https://anansi.ceert.org.br/biblioteca-pdf/catalogo-jogos.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2022.

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Livro voltado para o público infantil mostra como ser antirracista desde a mais tenra idade

Publicação é fruto de parceria entre a Defensoria Pública do Estado da Bahia e a UFBA

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

“Nossa querida Bia é a realização de uma mãe que vive o desafio de educar seus filhos de pele negra em uma sociedade racista”. Essa mensagem está na apresentação do livro Nossa querida Bia: enfrentamento ao racismo desde a infância e só quem é responsável pela educação de crianças negras sabe o quanto ela é importante. Fazer com que essas crianças tenham uma outra narrativa na vida, com estímulos positivos em relação aos seus traços e aspectos culturais, é o principal objetivo da publicação, lançada em 2020, numa parceria entre a Defensoria Pública do Estado da Bahia(DPE-BA) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Escrita por Eva Rodrigues, Gisele Argolo e Laissa Rocha (DPE-BA); Karina Menezes e Nanci Franco (Núcleo Integrado de Estudos e Pesquisas em Infâncias e Educação Infantil (NEPESSI), da Faculdade de Educação da UFBA (Faced)), a obra é extremamente didática e precisa nas informações que traz.

Composto por quatro minicontos (Os cabelos de cada pessoa, Cada um com sua religião, Princesas negras e Vou ser médica), o livro prende a atenção por ter histórias interessantes e por discutir a temática do racismo na infância. E, ainda melhor, estimula o tempo todo o antirracismo, que deve ser um compromisso de toda a sociedade, independentemente da etnia. Bia, a protagonista, foi inspirada em Ana Beatriz Rocha, filha de Laissa, que também é mãe de João Gabriel Rocha. Ambos são negros e isso justifica a mensagem da apresentação, que foi destaque na abertura desta resenha.

Ao ler os contos, percebe-se um trabalho bem apurado de pesquisa, para evitar equívocos. No primeiro, Os cabelos de cada pessoa, a tônica é a de que não existe cabelo bom e cabelo ruim. Existe cabelo; no segundo, Cada um com sua religião, o objetivo é fazer com que todas as religiões sejam respeitadas. A narrativa desmistifica o viés negativo dado à palavra macumbeira, por exemplo; o terceiro, Princesas negras, mostra a importância de as crianças negras saberem de sua ancestralidade; o quarto, Vou ser médica, fala de representatividade. Nesse sentido, destaca como é fundamental para as crianças, e todas as pessoas negras, de uma forma geral, se verem em lugares de poder.

O livro apresenta as histórias, explica o assunto de cada situação narrada e convida o leitor a partir para a ação, através da seção O que eu posso fazer? Inclusive, disponibiliza o e-mail infanciasemracismo@defensoria.ba.def.br para que as pessoas denunciem casos de racismo e de injúria racial. Além disso, traz sugestões de leitura e de filmes que ajudam a reforçar toda a potencialidade dos povos negros. A obra, que já foi reconhecida numa premiação nacional, está disponível em PDF, no site da Defensoria, e também está sendo distribuída nos postos da instituição.

As pessoas interessadas podem pegar a versão impressa do livro nos postos da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Foto: Raulino Júnior

É sempre gratificante ver iniciativas como essa, que, de fato, promove o antirracismo. Para combater o racismo, é necessário agir para que a transformação aconteça. Não dá mais para ficar só no discurso. Já deu! O livro é para todo mundo: crianças não negras e adultos! Que a mensagem de Nossa querida Bia ecoe pelo mundo! A Lei 10.639/2003 agradece! Assim, vamos caminhar para uma sociedade mais igualitária e sem violência racista.

Referência:

RODRIGUES, Eva dos Santos; ARGOLO, Gisele Aguiar Ribeiro Pereira; ROCHA, Laissa Souza de Araújo; MENEZES, Karina Moreira; FRANCO, Nanci Helena Rebouças. Nossa querida Bia: enfrentamento ao racismo desde a infância. 1. ed. v.1. Salvador: ESDEP, 2020.

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#OFatoEmFoto: o grito contra o racismo mascarado

Fotorreportagem mostra como foi a manifestação, em Salvador, do Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo

Manifestantes gritaram para desmascarar o racismo. Foto: Raulino Júnior

Ontem, a Coalizão Negra por Direitos convocou manifestações em todo o país para denunciar o racismo que insiste em se perpetuar na sociedade brasileira. Os atos tiveram como pauta a luta contra a chacina e o genocídio do povo negro. Intitulado de 13 de Maio de Lutas, o levante gritou “Fora, Bolsonaro!” e exigiu justiça para as vítimas do massacre na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Em Salvador, a mobilização aconteceu na Praça da Piedade, que fica na mesma região do prédio da Polícia Civil da Bahia. Uma das reivindicações mais constantes foi a exigência de uma investigação responsável a respeito da execução de Bruno Barros e Yan Barros, respectivamente tio e sobrinho, que foram assassinados porque furtaram carne no Atakadão Atakarejo. De acordo com as investigações, que ainda estão em curso, eles foram entregues, pelos seguranças do mercado, a traficantes do Nordeste de Amaralina. O Desde esteve lá e fez a cobertura fotográfica para a segunda edição de #OFatoEmFoto, projeto que registra ações da sociedade civil feitas nas ruas da cidade. Fique à vontade e se ligue nas legendas.
A Praça da Piedade foi o palco para a mobilização contra a violência racista.

O direito de viver foi reafirmado durante todo o ato.

Manifestante faz gesto característico dos Panteras Negras, evidenciando que “nossos passos vêm de longe”.

A morte de negros, infelizmente, não sai de cartaz…

Vidas negras importam: recado para a polícia, para o governo, para o país. Basta!

Fora, Bolsonaro!: para sempre!

Mobilização organizada.

O povo negro só quer viver…

…com segurança!

Todas as fotos foram feitas por Raulino Júnior.

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É Desde! É Dez! É DEZde!

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Discriminação, Entrevista, Jornalismo, Negritude, Negro, Preconceito, Racismo

ESTUDIOSOS DISCUTEM QUESTÕES LIGADAS À NEGRITUDE

 
Sabrina Gledhill e Jaime Nascimento

|Educação Os professores Sabrina Gledhill e Jaime Nascimento concederam entrevista exclusiva para o Desde que eu me entendo por gente. Na ocasião, eles falaram sobre negritude, preconceito e discriminação. A inglesa Sabrina Gledhill, 55 anos, é bacharel em Letras Inglesas e mestre em Estudos Latinoamericanos. Radicada na Bahia desde 1986, realiza pesquisas históricas e antropológicas. Jaime Nascimento tem 40 anos, é bacharel em História pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL) e mestrando em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
 
Desde que eu me entendo por gente: Negritude é algo que vai muito além da cor da pele? Por quê?
 
Sabrina Gledhill: É uma pergunta que, realmente, eu teria que pensar muito para responder, mas claro que negritude é uma filosofia. É uma questão de amor próprio, de visão de cultura, de história, de ancestralidade. Eu acho que têm muitas pessoas que são consideradas negras e que não têm negritude, no sentido de ter orgulho da cultura dos seus ancestrais negros. Aqui no Brasil se diz que todo mundo tem ancestralidade tripla, mas a ênfase é mais nos europeus. A parte indígena nem se fala. Existem muitos preconceitos e muita falta de informação sobre a África. Algumas pessoas acham até que a África é um país.
 
Jaime Nascimento: Sim. Isso pode ser mais ligado à questão do pertencimento, das pessoas se perceberem como negras ou não. Por exemplo, o nosso Rei do Futebol tem esse entendimento? Alguma vez ele se declarou? Eu não estou falando de ser militante, de carregar bandeira, não; mas de colocar “minha posição é essa”. Infelizmente, tem um monte de gente que não é negra; mas, felizmente, tem muita gente que é. Inclusive, não sendo fenotipicamente negra, mas considerando-se como tal. É questão de pertencimento, de percepção individual de cada um.
 
DQEMEPG: Muita gente costuma confundir preconceito e discriminação. Para esclarecer, diferencie cada conceito.
 
SG: Preconceito é uma questão muito pessoal. Discriminação é o que se faz no dia a dia para oprimir e excluir pessoas. O preconceito é a base de tudo isso. É uma coisa que, infelizmente, as pessoas aprendem no berço e com a televisão. Pode ser até inconsciente. O preconceito fere, mas é a discriminação que realmente perpetua as desigualdades.
 
JN: O preconceito é a sua opinião, positiva ou negativa, em relação à determinada coisa. A discriminação é a sua ação em função disso. Inclusive, o que a lei proíbe é a discriminação. Você não pode tratar as pessoas de forma diferente em função de uma característica física, psicológica, religiosa, sexual, o que for. A não ser que seja uma coisa da própria lei que vise, justamente, a promoção da igualdade. É o que se chama de discriminação positiva. O contrário não pode ser feito: discriminar prejudicando. Ninguém pode fazer isso e se fizer está passível de cumprir as penas que a lei impõe. A diferença básica é essa: a discriminação é a ação em função do preconceito.

# As péssimas fotos foram feitas por Raulino Júnior. Locação: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).

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