2021: Paulo Freire é 100!, Cultura, DESDEnhas, Jornalismo Cultural, Resenha

Em Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire convida o leitor a se olhar no espelho

     Livro foi lançado em 1968 e é considerado o mais famoso do educador pernambucano

Imagem: reprodução do site Martins Fontes Paulista

Por Raulino Júnior||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Para encerrar a série 2021: Paulo Freire é 100!, que teve como objetivo fazer resenhas e refletir sobre algumas obras do educador pernambucano, o destaque vai para o livro Pedagogia do Oprimido, lançado em 1968, quando Freire estava exilado no Chile. É uma das obras mais conhecidas do autor e leitura recomendada em cursos de licenciatura do Brasil e do exterior. Nela, Paulo Freire faz uma analogia entre a sociedade que está fora da escola e a que faz parte do cotidiano escolar, enfatizando os papéis de cada pessoa nesse universo. Nesse sentido, mostra como o oprimido e o opressor estão, a todo tempo, num campo de disputa e como um assume o lugar do outro, a depender das circunstâncias.
No 1º capítulo, Justificativa da Pedagogia do Oprimido, Freire fala das contradições entre opressores e oprimidos e mostra como o opressor passa a ser oprimido e como o oprimido passa a ser opressor. Chega a dizer que os oprimidos hospedam o opressor em si. Isso, infelizmente, está presente nas relações sociais, dentro e fora da escola. Alguns professores reproduzem opressões que sofreram e os estudantes, por sua vez, tomam aquilo como uma manifestação de poder e, de vítimas da opressão, passam a oprimir. Tal fato pode acontecer de imediato, no presente, ou no futuro, já na vida profissional. Assim, há uma infinita permanência da opressão. “O  ‘homem novo’, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem a nascer da superação da contradição, com a transformação da velha situação concreta opressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação. Para eles, o novo homem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua visão do homem novo é uma visão individualista. A sua aderência ao opressor não lhes possibilita a consciência de si como pessoa, nem a consciência de classe oprimida”, p. 18.
Na publicação, Freire fala do opressor, mas a sua investigação é no papel do oprimido. Fica evidente a chamada de atenção do Patrono da Educação Brasileira para esse agente, vítima e algoz no processo de relação humana. “Há, por outro lado, em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de ‘classe média’, cujo anseio é serem iguais ao ‘homem ilustre’ da chamada classe ‘superior'”, p. 28.
Numa parte do capítulo, Paulo Freire diz que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. Significa que, para superar os problemas, sociais e escolares, deve haver cumplicidade, ajuda mútua. O oprimido só se reconhece como tal quando existe um opressor. “Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua ‘conivência’ com o regime opressor”, p. 29. Ou seja, o problema deve ser identificado e reconhecido. Só assim, uma intervenção pode ser pensada.
O capítulo 2, A Concepção Bancária da Educação como Instrumento da Opressão, é uma análise crítica de Freire sobre as práticas pedagógicas muito comuns nas escolas brasileiras. O desafio ainda é superá-las. O educador mostra como essas práticas perpetuam a opressão, pois são punitivas, e fazem parecer que só o professor sabe; o estudante é visto como um ser vazio, sem conhecimento. “Na visão ‘bancária’ da educação, o ‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro”, p. 33. É a prática de depositar, guardar e arquivar os conhecimentos.
O ideal, de acordo com Freire, é pensar numa escola em que os educadores sejam humanistas (e pratiquem uma educação problematizadora), em detrimento do educador bancário. Nesse cenário, o educador passa a educando e o educando a educador. Há uma troca de conhecimento, superando a dicotomia “sabe/não sabe” para “todos sabem”.
A dialogicidade – Essência da Educação como Prática da Liberdade é o título do capítulo 3. Nele, Freire destaca a importância do diálogo na prática pedagógica e na emancipação do ser. A educação libertadora pressupõe o diálogo, porque mostra como o educador e o educando podem contribuir para a a produção do conhecimento de forma conjunta. “A autossuficiência é incompatível com o diálogo”, p. 46. A educação dialógica se faz em rede. “O importante, do ponto de vista de uma educação libertadora, e não ‘bancária’, é que, em qualquer dos casos, os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros”, p. 69. Ou seja, não há espaço para sabichões de rodapé de livros, que acham que são os donos da verdade e, como isso, oprimem as pessoas.
No último capítulo, A Teoria da Ação Antidialógica, Freire retoma muito do que foi discutido nos capítulos anteriores. Só que aqui ele dá as coordenadas para uma práxis libertadora. “Na práxis revolucionária há uma unidade, em que a liderança – sem que isto signifique diminuição de sua responsabilidade coordenadora e, em certos momentos, diretora – não pode ter nas massas oprimidas o objeto de sua posse”. p 71. A revolução exige o diálogo. Não existe revolução com imposição. “A nossa convicção é a de que, quanto mais cedo comece o diálogo, mais revolução será”, p. 72. Isso não pode ficar só no discurso. Freire afirma que tem que ter uma prática. A teroia antidialógica é opressora, de dominação. Já a dialógica é libertadora e revolucionária. A primeira manipula; a segunda, convida para pensar junto. Paulo Freire afirma que “a manipulação, na teoria da ação antidialógica, tal como a conquista a que serve, tem de anestesiar as massas populares para que não pensem”. A educação não pode prescindir deste objetivo: fazer as pessoas pensarem.
O pernambucano fala também sobre invasão cultural, que caracteriza como sendo “a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua expansão”, p. 86. Uma discussão sempre relevante. Principalmente, se a gente considerar o contexto da escola. Nessa seara, dá para discutir racismo, sexismo, etarismo, feminismo, homofobia e tantos outros temas que devem estar na sala de aula.
Pedagogia do Oprimido é uma obra que faz a gente se olhar no espelho. É, muitas vezes, doloroso, mas tem que ser feito.
Referência:
 
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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“O ato de ler implica sempre percepção crítica”, Paulo Freire

    Educador reflete sobre leitura, formação de leitor e alfabetização em obra lançada em 1981

Imagem: reprodução do site da Cortez Editora

Por Raulino Júnior||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

A série 2021: Paulo Freire é 100! tem como objetivo fazer resenhas de algumas obras do educador pernambucano. Ela integra o Pacotão do DEZde, projeto que comemora os dez anos do blog. Hoje, vamos fazer reflexões relacionadas ao livro A Importância do Ato de Ler, cuja primeira edição foi publicada em 1981. Ler é uma prática fundamental para toda e qualquer pessoa que quer se emancipar. Quando pensamos no universo da educação, ela é (e deve ser!) prioritária. Principalmente, evidenciando que professores são profissionais que devem contribuir para o estímulo à leitura. Obviamente que, para isso, eles têm que ler.
De acordo com os dados da 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, estamos perdendo leitores. Dos 213 milhões de brasileiros, 100 milhões leem. Ou seja, 52% da população. Houve uma queda de 4,6 milhões de leitores, entre 2015 e 2019, ano de referência da pesquisa. As crianças estão lendo mais, os adolescentes e adultos estão lendo menos. É importante ressaltar que a pesquisa considera leitor toda pessoa que leu, na íntegra ou parcialmente, pelo menos um livro  três meses antes de sua realização.
O livro de Paulo Freire é constituído de três artigos, que, como já vem no título da obra, se complementam, pois falam de leitura e de alfabetização. O texto do primeiro capítulo, que dá nome ao livro, foi escrito para ser lido, pois foi tema de uma palestra de Freire. Logo no início, o educador define o ato de ler: “… não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas […] se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente”, p. 9. Sendo assim, tudo pode ser lido e o que se lê no mundo se complementa na leitura da palavra.
Ao longo do texto, Paulo fala de sua formação como leitor, da sua experiência particular no universo da leitura: “Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-neqro; gravetos, o meu giz”, p. 11. Freire critica a lógica de quem acha que passar muitas leituras para os educandos, focando apenas na quantidade, é o caminho para fomentar a leitura. “Creio que muito de nossa insistência, enquanto professoras e professores, em que os estudantes ‘leiam’, num semestre, um sem-número de capítulos de livros, reside na compreensão errônea que às vezes temos do ato de ler. […] A insistência na quantidade de leituras sem o devido adentramento nos textos a serem compreendidos, e não mecanicamente memorizados, revela uma visão mágica da palavra escrita. Visão que urge ser superada. A mesma, ainda que encarnada desde outro ângulo, que se encontra, por exemplo, em quem escreve, quando identifica a possível qualidade de seu trabalho, ou não, com a quantidade de páginas escritas”, p. 12. Tudo que foi dito nesse trecho é posto em prática por muitas universidades, que fazem isso achando que a qualidade de ensino se dá dessa forma. Freire, como escreveu em 1981, discorda.
Durante a leitura do artigo, fica muito evidente a posição de Paulo Freire sobre o ato de ler. Para ele, é sempre uma oportunidade de se libertar, se emancipar e ter percepção crítica. Não é um ato isolado. Está sempre relacionado com as vivências de cada pessoa. A leitura de mundo vai ter ressonância na leitura da palavra. Isso é repetido com insistência no texto.
Ao falar de alfabetização, tema que explora com mais afinco no artigo seguinte, em que trata da alfabetização de adultos e bibliotecas populares, Freire reafirma que alfabetizar, para ele, é um ato político. “…me parece interessante reafirmar que sempre vi a alfabetização de adultos como um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador”, p. 14. Ele critica a memorização mecânica e, mais adiante, chama a atenção dos professores, exigindo que o discurso democrático que eles propalam vire, de fato, ação na prática. “Nem sempre, infelizmente, muitos de nós, educadoras e educadores que proclamamos uma opção democrática, temos uma prática em coerência com o nosso discurso avançado. Daí que o nosso discurso, incoerente com a nossa prática, vire puro palavreado”, p. 16.
No terceiro artigo, Paulo Freire fala sobre uma experiência de alfabetização de adultos desenvolvida por ele em São Tomé e Príncipe. Essa parte é um pouco maçante, mas vale destacar o que o educador traz sobre conhecimento, que é algo que todo mundo tem: “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa”., p. 39. Também é significativo o que ele diz sobre o processo de formação, que é contínuo: “Ninguém se forma realmente se não assume responsabilidades no ato de formar-se. O nosso povo não se forma na passividade, mas na ação sempre em unidade com o pensamento”, p. 49.
Ler, formar leitor e alfabetizar são atos políticos. Não podem ser implementados sem esse viés, na superficialidade. É isso que fica evidente quando se conclui a leitura da obra. O ato de ler nos leva além. Sempre.
Referência:
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo).

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Para Paulo Freire, reduzir professora à condição de tia é uma armadilha ideológica

   Em livro publicado em 1993, educador traça caminhos para uma prática pedagógica crítica

Por Raulino Júnior||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Dando continuidade à série 2021: Paulo Freire é 100!, que tem como objetivo fazer resenhas de algumas obras do educador pernambucano, o Desde aborda hoje as ideias contidas no livro Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar, publicado em 1993. A série integra o Pacotão do DEZde, projeto que comemora os dez anos do blog. Na primeira postagem, falamos de uma das cartas presentes no livro, por considerá-la bem importante para o debate sobre educação. Agora, vamos fazer uma reflexão do livro como um todo.
A obra traz um Paulo Freire professor, no sentido mais amplo da palavra. A todo tempo, a impressão é a de que ele está conversando com a gente, pegando na mão, nos guiando. Logo no início, ele justifica o provocativo título: “Recusar a identificação da figura do professor com a da tia não significa, de modo algum, diminuir ou menosprezar a figura da tia, da mesma forma como aceitar a identificação não traduz nenhuma valoração à lei. Significa, pelo contrário, retirar algo fundamental do professor: sua responsabilidade profissional de que faz parte a exigência política por sua formação permanente”, p. 9.
Freire critica a associação de professores e professoras com tios e tias. Para ele, isso  contribui para uma desvalorização profissional. “A tentativa de reduzir a professora à condição de tia é uma ‘inocente’ armadilha ideológica em que, tentando-se dar a ilusão de adocicar a vida da professora o que se tenta é amaciar a sua capacidade de luta ou entretê-la no exercício de tarefas fundamentais”, afirma na página 18.
Depois de uma longa introdução para debater o tema principal do livro, Paulo Freire apresenta aos leitores e às leitoras as dez cartas a quem ousa ensinar. Elas atuam como conselhos do mestre, mostrando o que deve e não deve ser feito na prática pedagógica. Em alguns trechos, reforça o que já tinha dito (“Quanto mais aceitamos ser tias e tios, tanto mais a sociedade estranha que façamos greve e exige que sejamos bem comportados”, p.33); em outros, dá lição de cidadania (“É preciso acompanharmos a atuação da pessoa em que votamos, não importa se para vereador, deputado estadual, federal, prefeito, senador, governador ou presidente; vigiar seus passos, gestos, decisões, declarações, votos, omissão, conivência com a desvergonha. Cobrar suas promessas, avaliá-los com rigor para neles de novo votar ou negar-lhes o nosso voto”, p. 34).
Numa das cartas, elenca as qualidades que, na opinião dele, todo professor deve ter para um melhor desempenho: humildade, amorosidade, coragem, tolerância, decisão, segurança, paciência, impaciência e alegria de viver. O livro tem frases daquelas que os educadores devem levar para a vida, como:
1) “A escola que é aventura, que marcha, que não tem medo do risco, por isso que recusa o imobilismo”, p. 42.
2) “Não há vida nem humana existência sem briga e sem conflito”, p. 42.
3) “Sem intervenção democrática do educador ou da educadora, não há educação progressista”, p. 53.
4) “… é bom admitir que somos todos seres humanos, por isso, inacabados. Não somos perfeitos e infalíveis”, p. 55.
5) “…coerência não é conivência”, p. 72.
6) “Sem limites a vida social seria impossível”, p. 73
7) “O professor deve ensinar. […]. Só que ensinar não é transmitir conhecimento”, p.79.

E tantas outras. No final do livro, ele segue assertivo: “Que o saber tem tudo a ver com o crescer, tem. Mas é preciso, absolutamente preciso, que o saber de minorias dominantes não proíba, não asfixie, não castre o crescer das imensas maiorias dominadas”, p. 84. Professora sim, tia não é uma obra política e, como tal, necessária.

Referência:
 
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

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Carta de Paulo Freire aos Professores alerta para o aprendizado mútuo e fala de formação permanente

  Ensinar é aprender, professor deve estudar sempre, ler é fundamental: ideais freireanos para quem ousa ensinar

Paulo Freire deixou um legado imensurável para a educação. Foto: reprodução do site Brasil de Fato

Por Raulino Júnior||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Hoje, o Desde dá início à série 2021: Paulo Freire é 100!, que tem como objetivo fazer resenhas de algumas obras do educador pernambucano, que, se estivesse vivo, completaria 100 anos neste 19 de setembro de 2021. A ação integra o Pacotão do DEZde, projeto que comemora os dez anos do blog. Íamos começar resenhando o livro Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar, publicado em 1993, mas a potência de uma das cartas presentes no livro é tão grande, que resolvemos falar dela isoladamente. Trata-se da primeira delas, conhecida como Carta de Paulo Freire aos Professores. Nela, o Patrono da Educação Brasileira dá dicas para professores e professoras e explora muitos dos seus ideais para educação. Para quem ousa ensinar, a leitura da carta é indispensável.

Logo no início do texto, Freire afirma: “…não existe ensinar sem aprender”, p. 19. E, assim, reflete sobre a importância de o professor estar aberto para aprender com o educando, de saber que todo mundo tem algo a ensinar e de ter a consciência de que o processo de ensino proporciona um aprendizado mútuo. A ideia de que o professor é quem sabe tudo e o estudante chega na escola ou nos espaços de produção de conhecimento sem saber nada é tão ultrapassada que não deveria nem ser mais pauta de debates. Infelizmente, ainda é necessário reafirmar. Por isso, Paulo Freire alerta: “O aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através da retificação que o aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do ensinante ao ensinar se verifica à medida em que o ensinante, humilde, aberto, se ache permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em que procura envolver-se com a curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos e veredas, que ela os faz percorrer”, p. 19.

Nas linhas seguintes, Freire toca numa questão importantíssima, que sempre é debatida: a formação de professores. Tal formação deve ser contínua, para o professor não ensinar o que não sabe e mostrar competência na sua prática. O fato de aprender quando ensina não é prerrogativa para abdicar dos estudos. O recado do mestre é enfático: “O fato, porém, de que ensinar ensina o ensinante a ensinar um certo conteúdo não deve significar, de modo algum, que o ensinante se aventure a ensinar sem competência para fazê-lo. Não o autoriza a ensinar o que não sabe. A responsabilidade ética, política e profissional do ensinante lhe coloca o dever de se preparar, de se capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige que sua preparação, sua capacitação, sua formação se tornem processos permanentes. Sua experiência docente, se bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que ela requer uma formação permanente do ensinante. Formação que se funda na análise crítica de sua prática”, p. 19.

Para analisar criticamente a sua prática, o professor, além de se capacitar o tempo todo, deve colocar a leitura como prioridade na sua vida. Leitura de tudo. Leitura do mundo. Para Freire, “o ato de estudar implica sempre o de ler, mesmo que neste não se esgote. De ler o mundo, de ler a palavra e assim ler a leitura do mundo anteriormente feita. Mas ler não é puro entretenimento nem tampouco um exercício de memorização mecânica de certos trechos do texto”, p. 20. E arremata: “Estudar é desocultar, é ganhar a compreensão mais exata do objeto, é perceber suas relações com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do estudo, se arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria”, p. 23. Ou seja, quem ousa ensinar deve ter a consciência de que estudar será uma prática frequente no seu cotidiano. Não se esgota nem chega ao fim. É permanente. É uma retroalimentação, como ler e escrever.

Outro aspecto importante que Paulo Freire destaca na sua carta é sobre a mecanização do ensino. Ensinar não é transferir conhecimento, é possibilitar reflexões críticas acerca de vários assuntos. É formar cidadãos. Para o pernambucano, “ensinar não pode ser um puro processo, […], de transferência de conhecimento do ensinante ao aprendiz. Transferência mecânica de que resulte a memorização maquinal que já critiquei. Ao estudo crítico corresponde um ensino igualmente crítico que demanda necessariamente uma forma crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo, leitura do contexto”.

Às vezes, na prática pedagógica, o professor tem pressa, quer que tudo aconteça imediatamente. Paulo Freire afirma que todo o processo que voltado para a educação tem que ser paciente: “…ler, estudar, é um trabalho paciente, desafiador, persistente”, p. 24. Para o educador, a qualidade da educação vai chegar ao ideal quando a prática for feita com alegria e prazer: “Se estudar, para nós, não fosse quase sempre um fardo, se ler não fosse uma obrigação amarga a cumprir, se, pelo contrário, estudar e ler fossem fontes de alegria e de prazer, de que resulta também o indispensável conhecimento com que nos movemos melhor no mundo, teríamos índices melhor reveladores da qualidade de nossa educação”, p. 25-26.

No finalzinho do texto, ao falar sobre a dificuldade que as pessoas dizem ter com a escrita, o patrono da nossa educação diz: “Ninguém escreve se não escrever, assim como ninguém nada se não nadar”, p. 26. Isso vale também para o ensinar. Ninguém ensina se ficar parado, sem buscar aprender, sem ler, sem estudar. Ensinar pressupõe movimento. Em todos os sentidos. Esse é o recado que Paulo Freire deixa para professores e professoras na sua carta. Quem ousa ensinar, tem que se mobilizar. Assim, mobiliza o outro e todo mundo sai do lugar em que estava.

Referência:
 

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“2021: Paulo Freire é 100!”: série comemora 100 anos de Paulo Freire e 10 anos do Desde

 Patrono da Educação Brasileira definiu caminhos das práticas pedagógicas

Por Raulino Júnior

Se estivesse vivo, Paulo Freire (1921-1997) completaria 100 anos em 2021. Mais precisamente, no dia 19 de setembro. Considerado como o Patrono da Educação Brasileira, o pernambucano criou métodos que são seguidos até hoje por educadores. Respeitar os conhecimentos prévios dos educandos e estimular a autonomia neles são alguns elementos da pedagogia freireana. Em setembro, vamos falar de muitos outros na série 2021: Paulo Freire é 100!. O objetivo é fazer resenhas de algumas obras do educador. A ação integra o Pacotão do DEZde, projeto que comemora os dez anos do blog.

Paulo Reglus Neves Freire é uma referência quando o assunto é educação. A experiência de alfabetização que realizou em Angicos (RN), em 1963, se tornou revolucionária e definiu os caminhos das práticas pedagógicas desenvolvidas no Brasil. O Método Paulo Freire consiste em fazer com que os educandos tenham uma leitura crítica do mundo, para interferir na sua dinâmica e transformar a realidade. O saber está atrelado ao fazer. É a educação para a cidadania, emancipadora e contextualizada. Tudo parte do local para o global. Nesse sentido, a experiência que o educando traz é considerada como parte importante do processo de ensino e de aprendizagem. A autonomia é estimulada o tempo todo. Freire foi um ativista da educação de qualidade como um direito humano. Não é por acaso que virou o expoente que virou. Em 2012, através da Lei nº 12.612, ele foi declarado Patrono da Educação Brasileira.

Paulo Freire: um visionário da educação. Arte: Raulino Júnior

A série 2021: Paulo Freire é 100! será publicada a partir de 19 de setembro e se estenderá até 19 de dezembro. Quatro obras serão analisadas criticamente, a fim de provocar reflexões e contribuir para repensar aspectos da educação brasileira da atualidade. O legado de Paulo Freire é importantíssimo e não pode ser visto apenas como uma teoria. Temos que colocar em prática. Sempre.

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