Hoje, faz exatos 40 anos que Elis Regina Carvalho Costa deixou fãs e admiradores muito tristes com a sua partida precoce aos 36 anos. Na época, foi uma comoção. Desde lá, a cada dia 19 de janeiro, o sentimento permanece e é isso que faz Elis se manter viva na memória da cultura brasileira. A morte de um ídolo dá vazão a uma série de documentos sobre sua vida e trajetória. Com a cantora porto-alegrense, não seria diferente. Nesse aspecto, Elis também é campeã. São documentários, livros, coletâneas, série e filme. Em 1985, três anos após a sua morte, a editora Nórdica publicava Furacão Elis, de Regina Echeverria, responsável pela primeira biografia da Pimentinha (apelido dado por Vinicius de Moraes).
A obra tem um diferencial por ter sido publicada pouco tempo depois do fatídico dia 19. Assim, Regina conseguiu colher depoimentos e apurar fatos com uma proximidade muito grande do acontecimento. A biógrafa fez mais de 100 entrevistas para contar a história da filha de Ercy Carvalho e Romeu Costa. O livro-reportagem detalha muita coisa. Por exemplo, o nome “Elis” foi sugerido por uma amiga de Ercy. “O Regina vem de uma exigência legal. Na burocracia da época, as crianças não podiam ser batizadas com nomes que tanto serviam para meninos como para meninas. Já prevendo que não pudesse batizar sua menina apenas Elis, dona Ercy mandou um Regina de reserva”, p. 16. Elis já cantava nas reuniões familiares, mesmo bem pequena. Porém, aos sete anos, quando foi se apresentar no programa Clube do Guri, da Rádio Farroupilha, travou. Só soltou a voz na atração quando tinha onze anos. E o Brasil ganhou aquela que é considerada sua maior cantora por causa da falta de dinheiro da família para comprar um piano. Na página 28, Regina narra: “Aos 9 anos, Elis foi aprender piano com a professora Waleska, uma vizinha da vila do IAPI. Estudou dois anos. Aprendia rápido demais, tão rápido que se viu diante do dilema: ou comprava um piano ou parava de estudar. Elis Regina começou a cantar porque não podia comprar um piano”. Através da leitura do livro, a gente fica sabendo que Elis fez um aborto. “Ela ficou grávida, fez o aborto e não me disse nada. Disse depois”, Solano Ribeiro em depoimento para o livro. Ele foi namorado de Elis e o término foi potencializado por causa desse fato.
Furacão Elis se debruça sobre a trajetória da cantora antes e depois que ela foi para o Rio de Janeiro, em março de 1964, aos 18 anos. A biografia mostra a ascensão da artista e traz depoimentos de pessoas que estavam na sua órbita, como Ronaldo Bôscoli, Miele, Roberto Menescal, Nelson Motta, Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil, só para citar alguns. Gil, inclusive, revela que tinha inveja e tesão por Elis: “Ela era diferente das outras cantoras – a gestuália toda, a voz, o modo de cantar, o repertório. E eu fiquei logo oprimido na primeira vez que a vi. Esses artistas todos me oprimem. Com Maria Bethânia tenho a mesma sensação. São todos meus pares, porém me sinto oprimido. Mas isso é coisa de deformação da minha personalidade mesmo, coisas de inveja, de dificuldade. E eu tinha muito isso com ela. Então, vê-la ali, em casa, descontraída, a coisa se tornava mais palpável. Eu ficava com tesão. Ficava louco por ela. Ela nunca soube disso. Pode ter suspeitado, porque eu era muito terno com ela”, p. 67. O livro mostra algumas contradições de Elis, desmistificando a ideia da cantora segura de si, independente. A Elis do livro é forte e frágil ao mesmo tempo. É humana. Longe de ser aquela fortaleza que muitas pessoas idealizavam. Solano afirma que “ela se deixava mesmo influenciar”. A personalidade forte, no entanto, aparece nas linhas escritas por Echeverria. A coisa de mudar da água para o vinho, dos ciúmes, da rivalidade com outras cantoras, a briga e a reconciliação na mesma intensidade: tudo está lá e caracteriza Elis. Na página 95, Regina afirma: “Seu furacão incomodava e instigava as pessoas. Seu pingue-pongue de ódio e paixão enlouquecia quem buscava nela alguma coerência”. E reforça isso no Capítulo VI: “Ao mesmo tempo em que pregava a independência, mergulhava em sofridos momentos de angústia, em profunda solidão”, p. 107.
De acordo com a narrativa de Furacão Elis, quando a cantora começou a ganhar dinheiro, a relação com a família ficou tensa. Houve um rompimento. Dona Ercy confidenciou a Echeverria que chegou a passar fome. Hoje em dia, o sonho de muitas cantoras é fazer carreira internacional. Elis não tinha esse desejo. Queria fazer sucesso no Brasil. E fez. Falso Brilhante, de 1975, foi uma apoteose. Ficou 14 meses em cartaz. Claro que muitos conflitos aconteceram, Myriam Muniz, que dirigiu o espetáculo, fala deles na biografia. A diretora ficou na função só até dez dias após a estreia.
É bonita a forma como Elis Regina e Rita Lee construíram uma tímida amizade. Isso é narrado no livro com uma atmosfera poética muito grande. Duas mulheres donas de si, desbravadoras, com muita personalidade. Rita e o marido, Roberto de Carvalho, compuseram Doce de Pimenta para Elis. Uma letra certeira, que define muito bem a essência Elis Regina de ser. Maria Rita, filha de Elis, tem esse nome em homenagem a Rita. “Maria Rita” era uma das formas que Elis chamava Rita.
Teria muito mais coisa para falar sobre Furacão Elis, mas a melhor dica é ler. Lendo, a gente monta o quebra-cabeça e consegue ter uma noção de quem foi Elis e de toda a sua grandiosidade. Regina Echeverria fez um excelente trabalho. Deu lugar ao contraditório, mostrou as fraquezas e potencialidades da artista. Como canta Caetano, “de perto, ninguém é normal”. Não é. Elis não era.
Referência:
ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Editora Globo, 1994.