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Livro infantojuvenil sobre Pedra de Xangô reforça diversidade das culturas africanas e estimula a salvaguarda do patrimônio cultural tombado em 2017

Obra é lançada em homenagem aos três anos de tombamento do monumento histórico localizado em Cajazeiras X

Pedra de Xangô em história voltada para o público infantojuvenil. Ilustração da capa: Dayse Ellen Gomes de Moura

Por Raulino Júnior

Em 4 de maio de 2017, depois de 12 anos de luta da sociedade civil organizada, das comunidades de terreiro e de pesquisadores dos direitos dos povos afro-brasileiros, o monumento histórico Pedra de Xangô foi tombado pela Prefeitura Municipal de Salvador, através da Fundação Gregório de Mattos. Isso significa que a Pedra, além de toda a sua importância para a história e cultura religiosa da cidade, se tornou oficialmente um bem cultural e está inscrita no livro do Tombamento dos Bens Imóveis e Sítios, assegurado pela Lei 8.550/2014, que institui normas de proteção e estímulo à preservação do patrimônio cultural do município de Salvador. Hoje, exatamente após três anos da solenidade de tombamento e como uma forma de homenagear tal conquista, os escritores Maria Alice Silva e Walter Passos lançam o livro infantojuvenil “Pedra de Nzazi, Xangô e Sogbo?”. Em tempos de distanciamento social, devido à pandemia do novo coronavírus, a estratégia de lançamento vai contar com a ajuda dos recursos tecnológicos. O livro, que tem prefácio de Everaldo Duarte (Agbagigan do Terreiro do Bogum) e ilustração de Dayse Ellen Gomes de Moura, será lançado nas redes sociais digitais, nos seguintes perfis: @pedra.de.xango@malice.advogada@walterpassos21@daysegomis (Instagram); e nas páginas do Facebook da Pedra de Xangô, da Conversa de Preto e de Negras Raízes. Inclusive, a criação da obra, escrita numa tarde de domingo, especificamente no dia 26/4/2020, foi feita com intermediação tecnológica: os autores produziram através de trocas de mensagens pelo WhatsApp, em apenas duas horas. O livro estará disponível para qualquer pessoa que queira ler. No futuro, Walter e Maria Alice estudam uma maneira de comercializá-lo. “Trata-se de um projeto piloto, produção independente e estamos estudando a melhor forma de como colocá-lo no mercado. Há todo um trabalho intelectual e tempo que gastamos nessa produção”, explica a escritora. Na entrevista a seguir, feita por e-mail, os autores contam detalhes da produção do livro, opinam sobre a importância de registrar a história da Pedra de Xangô para o público infantojuvenil e falam como professores podem se apropriar da obra.
Maria Alice Silva é advogada, fez mestrado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA (PPGAU/UFBA) e, atualmente, é doutoranda no mesmo programa. Além disso, é especialista em Direito do Estado, Direito Civil e Processual Civil, militante no enfrentamento ao racismo e na promoção da igualdade racial no Estado da Bahia.

Foto: Mônica Silveira

Desde que eu me entendo por gente: Como nasceu a ideia do livro “Pedra de Nzazi, Xangô e Sogbo?” e por que a escolha de direcionar para o público infantojuvenil?
Maria Alice Silva: A ideia de escrever o livro voltada para o público infantojuvenil surgiu em novembro de 2019. Depois de muito relutar, aceitei o convite de uma professora da Escola Municipal Manoel Clemente Ferreira, em Vila Canária, para fazer uma palestra sobre a Pedra de Xangô para 200 alunos na faixa etária de 7 a 12 anos, no dia 20 de novembro, em homenagem ao mês da Consciência Negra. De imediato, recusei o convite, por dois motivos: I – Eu não sabia como introduzir o tema. Nunca fiz palestra para alunos nessa faixa etária e acreditava que não conseguiria prender a atenção dos estudantes por muito tempo; II – A maioria das escolas só pautam a questão em novembro, mês da Consciência Negra. Mas a professora insistiu muito e acabei aceitando o convite. A minha estratégia foi solicitar ajuda a um amigo pedagogo e assistente social, que me deu algumas dicas de como introduzir o tema; e um outro amigo psicólogo, especialista em psicologia ambiental, que convidei para dividir a palestra comigo. Ele introduziu o bate-papo contando a história de Janaína, uma menina negra, inteligente, que lutava contra o racismo ecológico em sua comunidade. Em seguida, foi a minha vez, iniciei a roda de conversa com a apresentação da música que fiz sobre a Pedra de Xangô. Para prender a atenção dos alunos, coloquei pedras de várias texturas, tamanhos e cores no centro do salão e solicitei que algumas crianças escolhessem uma pedra para falar sobre a importância de cada uma delas no seu cotidiano. Os relatos foram incríveis, cada um mais lindo que o outro. Houve quem dissesse que as britas serviam para fazer os alicerces das casas, que a pedra de cristal verde servia para embelezar a vida e as mulheres, através dos colares, brincos e anéis. Iniciei a apresentação falando sobre a importância histórica, cultural, ambiental e geológica do monumento rochoso para a cidade de Salvador e encerrei com o teaser do filme O grito que entrou nos meus sonhos, que trata da história da Pedra de Xangô. Todos ficaram emocionados com a apresentação. Solicitei que um estudante se candidatasse a resumir o que entendeu sobre o tema. Uma aluna se candidatou a fazer o resumo. Iniciou falando que estava feliz em saber que a Pedra de Xangô foi abrigo de negros escravizados, que é uma área remanescente de quilombos e de proteção ambiental, e que todas as pessoas deviam ajudar a proteger o lugar. O contentamento e sentimento de pertencimento dos alunos eram tanto, que alguns deles retornaram à sala de aula, pegaram seus cadernos e voltaram para falar comigo. Queriam autógrafos. Fizeram uma fila e esperaram pacientemente a sua vez. Uma aluna declarou: “Esse autógrafo vou guardar para o resto da minha vida”. Estive em vários lugares para falar sobre a Pedra de Xangô, inclusive em Harvard, mas confesso que a experiência com os alunos da Escola Manoel Clemente Ferreira foi única.
Desde: No portal Pedra de Xangô, do qual você é idealizadora, há um texto em que afirma que “…toda vez que mencionarmos Pedra de Xangô, entenda-se Pedra de Xangô, Nzazi, Sogbo, do Buraco do Tatu, da Onça e do Ramalho…”. Isso significa que não há diferença entre nenhuma dessas menções? 
MAS: Nzazi, Xangô ou Sogbo, no universo das religiões afro-brasileiras, são a mesma figura. O que faz mudar o nome é a origem do terreiro, se é da nação Angola, Ketu, Jeje ou Umbanda. Quanto aos outros nomes dado à Pedra, existem muitos enredos. Optamos por respeitar a posição de todos. É necessário não só atiçar a curiosidade, mas também esclarecer ao público infanto-juvenil porque a Pedra de Xangô tem vários nomes. Há um senhor que batizou a Pedra com o nome dele, Pedra do Ramalho. Há quem diga que o nome da Pedra é Pedra da Onça, porque duas onças moravam em cima da pedra. É muito enredo. Enfim, Pedra de Xangô é enredo, é rede, é de todo mundo, é patrimônio cultural da cidade de Salvador.
Desde: Quanto tempo demorou para terminar o livro e deixá-lo com uma linguagem convidativa para o público a que se destina? E qual abordagem ele traz?
MAS: A história é curta. Levamos, aproximadamente, duas horas construindo a narrativa. Introduzimos o tema Pedra de Xangô a partir da pergunta: Pedra de Xangô, Nzazi ou Sogbo? A história possui cinco personagens. Subliminarmente, trabalhamos com a autoestima dos jovens, pois todos os personagens são negros empoderados e bem-sucedidos na vida. Não tem história de fracassados. Nossos ancestrais foram reis e rainhas e precisamos resgatar essa memória. Nesta primeira história, buscamos responder a pergunta: qual o nome da Pedra e a quem pertence?
Desde: No ano passado, você lançou o livro Pedra de Xangô: um lugar sagrado afro-brasileiro na cidade de Salvador, um desdobramento da sua dissertação de mestrado, defendida em 2017, no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA (PPGAU/UFBA). Hoje, lança outro, em parceria com Walter Passos. Como foi esse processo de escrita em dupla? E quem convidou quem para a parceria?
MAS: Existe um movimento em defesa da Pedra de Xangô, o qual batizei de Pedra de Xangô é enredo, é rede. Por que esse lema? Porque muito atores atuaram e atuam para preservar o monumento sagrado Pedra de Xangô, Walter Passos é um deles. Em 2016, ele aceitou o meu convite para participar da produção da emenda parlamentar encaminhada à Câmara de Vereadores do Município de Salvador propondo a criação da Unidade de Conservação APA Municipal Vale do Assis Valente e Parque em Rede Pedra de Xangô, quando da elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), de 2016. Walter é historiador, poeta e foi uma das primeiras pessoas a escrever um livro sobre quilombos na Bahia. Sempre que necessito, o consulto. Em uma das minhas últimas consultas, em 26/04/2020, falei do meu desejo de escrever sobre a Pedra de Xangô para o público infanto-juvenil. Ali, nascia o convite e começamos mais um enredo. A história foi construída no mesmo dia, remotamente, através de mensagem de WhatsApp. Eu e Walter Passos somos muito ocupados. Assim, estipulamos escrever na tarde daquele domingo, entre às 14 e 18h, o único tempo que teríamos disponível. Levamos, aproximadamente, duas horas construindo a narrativa.

Pedra de Xangô: monumento afro-religioso tombado em 2017 pela Prefeitura de Salvador. Foto: Mônica Silveira

Desde: A sua dissertação de mestrado subsidiou a criação da APA Municipal Assis Valente, o Parque em Rede Pedra de Xangô e foi um instrumento fundamental para o tombamento da Pedra de Xangô como Patrimônio Cultural de Salvador, em 2017. Num trecho da pesquisa, você afirma: “A religião afro-brasileira tem como princípio cultuar e reverenciar a natureza. O respeito a cada elemento animal, vegetal e mineral é direcionado com a mesma intensidade e devoção com que outras religiões devotam aos seus signos de fé. Se a hóstia é o corpo de Cristo, a Pedra de Xangô é uma fração do corpo dos orixás, voduns, inquices e caboclos”. O que os governantes devem fazer para preservar esse e monumento histórico e mantê-lo relevante para toda a cidade, e não só para o povo de santo?
MAS: Em visita de campo à Pedra de Xangô, em 8 de novembro de 2014, constatei a ocorrência de um fato criminoso: duzentos quilos de sal de cozinha e vários sacos plásticos foram colocados na base da pedra sagrada e no seu entorno. Registrei o ocorrido e encaminhei as imagens para várias lideranças e associações religiosas que solicitaram aos órgãos públicos a adoção das medidas judiciais cabíveis. A agressão sofrida pela Pedra de Xangô repercutiu nacionalmente. Notícias foram veiculadas na imprensa escrita e falada, e um relatório foi encaminhado ao Ministério da Justiça solicitando providências. No dia 12 de novembro de 2014, as Comunidades de Terreiro realizaram um ato de desagravo. O evento atraiu redes de televisão, jornais e contou com a presença de autoridades públicas, a exemplo do então titular da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (SEPROMI). Na oportunidade, ele convocou uma reunião para o dia 14 de novembro, com os representantes dos poderes públicos estaduais, municipais e sociedade civil. Os representantes compareceram à reunião e nascia ali a proposta de se criar um Fórum Permanente em Defesa da Pedra de Xangô, com a participação do Estado, Município, União e Sociedade Civil. Uma das primeiras ações foi a realização da aula pública Pedra de Xangô – Nzazi – Sogbo: território sagrado, no projeto História e memória da população afro-brasileira, promovida pela Fundação Pedro Calmon e pelo Centro de Memória da Bahia, em 3 de dezembro de 2014, atendendo ao que preceitua a Lei Federal 10.639/2003. A aula foi ministrada por mim, lá na Pedra de Xangô, para os alunos da rede estadual de ensino. Penso, salvo melhor juízo, que os governantes não devem apenas investir em ações pontuais, é dar efetividade às normas vigentes, transversalizando as ações, tutelando de fato as demandas dos povos e comunidades tradicionais. Como bem dissera Mário Theodoro, no livro As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), ou vamos encarar a questão racial mediante o debate franco e aberto, verificando a ausência do poder público e o que precisa ser feito para mudar essa realidade. As secretarias de educação do município e do estado devem introduzir no conteúdo programático das escolas o tema patrimônio cultural afro-brasileiro. A palavra patrimônio, no seu sentido figurado, significa herança comum, transmitida de uma geração para outra, com valor e importância reconhecidos, que deve ser protegido e preservado. No livro Pedra de Xangô: um lugar sagrado afro-brasileiro na cidade de Salvador, defendo que o patrimônio é uma construção social, política, econômica, que requer a participação de todos. A atuação isolada dos atores ou entes federativos (Município, Estado, União) não é suficiente para atender à complexidade do que é preservar um bem cultural. Faz-se necessário que os órgãos revejam as metodologias aplicadas, a fim de dirimir as sobreposições e as crescentes situações de conflitos, e passem a atuar em rede.
Desde: O que espera que as crianças e adolescentes compreendam sobre a importância histórica e cultural da Pedra de Xangô quando finalizarem a leitura do livro?

MAS: Em tudo na vida, temos que ter estratégia. Precisamos pensar a curto, médio e longo prazo. Muito me preocupa os constantes atos de Intolerância religiosa cometidos contra a Pedra de Xangô. Quando o parque estiver pronto, qual será a reação dos moradores de Cajazeiras? Eles estão prontos para receber um parque temático? Já querem mudar o nome do parque. Pensando nisso, optei por também, trabalhar com o público infanto-juvenil, compreender o seu universo e envolvê-los na salvaguarda do patrimônio cultural Pedra de Xangô. Você só preserva o que conhece. Os adultos normalmente são endurecidos, resistentes a qualquer mudança no seu modo de viver e pensar. A ação tática para transformações está no preparo dos futuros guardiões da Pedra de Xangô. Esses, sim, estarão com toda a força para modificar a forma de pensar calcificada, mantenedora da falta de respeito à diversidade religiosa. A proposta é que cada criança, independentemente do credo de seus pais, entenda que a Pedra de Xangô é um patrimônio cultural, ambiental e geológico da cidade de Salvador. Ancestralidade é identidade, é raiz, é a continuidade da existência através dos descendentes. O maior exemplo de respeito aos antepassados é preservar a sua memória. O nome que não é esquecido não morre, viverá sempre. A publicação do livro “Pedra de Nzazi, Xangô ou Sogbo? tem esse objetivo de contribuir para que as futuras gerações tenham a oportunidade de conhecer, vivenciar e preservar as histórias dos seus ancestrais.

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Parque Pedra de Xangô. Lugar do sagrado – centro de reverência; lugar da ciência – centro de referência; lugar de resistência – encruzilhada religiosa, política e comunitária do povo de terreiro de Salvador. Parque Pedra de Xangô, uma construção coletiva e cidadã que deu certo. Poder público, comunidade e ciência trabalhando juntos na implantação do primeiro parque a levar o nome de um orixá no Brasil, Parque Pedra de Xangô. Parabéns ao tripé. Inaugurando uma nova era de se implantar políticas públicas em Salvador, por isso, Pedra de Xangô é enredo, é rede. (Maria Alice).
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Walter Passos é teólogo, historiador, poeta, afrocentrista e pan-africanista. É formado em História há 39 anos e ordenado pastor há 35, pela Igreja Presbiteriana Unida do Brasil. Faz parte da coordenação do Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos e, após a pandemia, com mais dois pastores, inaugurará a Igreja Metodista Episcopal Africana, no bairro da Liberdade, em Salvador.

Foto: Walter Mauro

Desde que eu me entendo por gente: Além de historiador e poeta, você é formado em Teologia e é pastor. Como foi se distanciar do aspecto religioso e se deter ao histórico na escrita do livro? Houve esse distanciamento ou algum conflito no processo de produção?
Walter Passos: Sou afrocêntrico, pan-africanista com tendência garveysta. Sendo assim, defendo que todas as culturas dos africanos no continente e na diáspora devem ser respeitadas. Não tive nenhum problema em escrever o livro, senti-me privilegiado juntamente com Maria Alice. Muitos evangélicos e católicos amam Thor, um deus inimigo e maior rival de Yahushua no cristianismo europeu. Compram livros infantis, brinquedos, jogos para os filhos e os acompanham ao cinema para assistir ao filme. Sorriem quando as criancinhas dizem que estão com o poder do martelo de Thor. Quando se fala em qualquer personagem africana, eles o demonizam. Thor é conhecido por ser Deus do Trovão. Nzazi, Sangò e Sogbo são conhecidos por dominarem os raios e os trovões, entre outros atributos, e os evangélicos e os católicos o consideram ruim, por ser africano. Não houve nenhum conflito da minha parte. O desrespeito às religiões de matrizes africanas pelo cristianismo eurocêntrico é consequência do racismo contra tudo que é africano. Eu sou praticante do mais antigo cristianismo, o de Matriz Africana.
Desde: A obra é voltada para o público infantojuvenil. Qual foi o principal desafio em abordar o conteúdo histórico acerca da Pedra de Xangô com uma linguagem que dialogasse com esse público?
WP: Eu escrevo contos infantis há muito tempo. Comecei criando histórias para os meus filhos, diante da dificuldade à época de encontrarmos materiais didáticos adequados para crianças pretas. Hoje, tenho quatro netos e nenhuma dificuldade de dialogar com o público infantojuvenil. Lecionei muito tempo com as quintas séries no Colégio Estadual Tereza Conceição Menezes, no bairro do Curuzu, e de 1992 a 1994 fundamos o Centro Educacional Quilombo, no bairro na Liberdade, proporcionando, com recurso próprios, alfabetização gratuita para crianças. Como se pode ver, acredito ter intensa vivência e aprendizados com esse público.
Desde: Como foi esse processo de escrita em dupla? Você é autor de outros livros? Quais?
WP: Maria Alice havia me pedido a composição de uma poesia para ser recitada no dia 4 de maio por uma criança. Demorei um pouco a rabiscar e, após alguns dias conversando sobre a poesia, propus a ela que escrevêssemos uma história infantil. Ela aceitou e com tranquilidade rabiscamos o conto. Tenho uma interação muito forte com ela, o trabalho fluiu prazerosamente. Escrevi alguns livros: Teologia NegraAfro-Reflexões e Perfume de Melanina. Também publiquei a primeira pesquisa sobre quilombos no estado da Bahia, compilando-a no livro Bahia: Terra de Quilombos, ainda no início da década de 90. A partir do conhecimento desse meu livro, originaram-se as mais diversas pesquisas e programas de pós-graduação stricto sensu sobre quilombos no estado.
Desde: Qual a importância de uma obra dessa natureza para a sociedade atual?
WP: A Pedra de Nzazi, Sangò e Sogbo vem contribuir preenchendo uma lacuna nos livros infantis africanos na sociedade brasileira. Vivemos dias difíceis, com falta de respeitabilidade com tudo o que é africano no Brasil, especialmente as religiões de matrizes africanas, as quais sofrem ataques diretos da mídia e instituições cristãs, além do descaso dos governantes e a falta de conhecimento das maravilhosas cosmogonias oriundas da África.
Desde: O que espera que as crianças e adolescentes compreendam sobre a importância histórica e cultural da Pedra de Xangô quando finalizarem a leitura do livro?
WP: Nossas crianças africanas em diáspora não possuem monumentos de suas ancestralidades, toda a informação perpassada é da ancestralidade eurocêntrica: nomes de ruas, logradouros, praças, bairros, datas festivas, escolas, inclusive os seus próprios nomes e sobrenomes. No livro, mostramos a diversidade de algumas das culturas africanas prisioneiras de guerras e sequestradas para o Brasil: Golfo de Benin (Jejes, Ketus, Ijesas), do grupo étnico-linguístico Bantu (Kongo e Angola) com suas diversas culturas e dos nativos brasileiros, os quais também foram escravizados pelos europeus. Após a leitura das crianças, dos jovens e dos adultos, com certeza, todos ficarão orgulhos da ancestralidade das culturas que perseveram Nzazi, Sangò e Sogbo, representantes da justiça que tanto carecem o povo africano no Brasil e os nativos (indígenas), e protegerão a pedra como um patrimônio de resistência de todos os africanos no Brasil.
Desde: Como, na sua opinião, os professores poderão se apropriar do livro para usar como recurso pedagógico nas aulas, garantindo assim a implementação da Lei 10.639/2003?

WP: Os(As) professores(as) poderão fazer uma leitura transversal da história. No livro, se trabalha a língua portuguesa, a geografia, a história, a educação física, o teatro, as línguas africanas, as ciências naturais, as artes, as religiões, a matemática e todas as matérias. É uma oportunidade para os(as) professores(as) trabalharem a diversidade cultural brasileira contida no livro sobre as nações africanas e indígenas de uma forma ancestral e contundente.

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Agradecimentos especiais ao autores, pela disponibilidade, confiança e atenção; e ao jornalista Tiago Bittencourt, pela sugestão da pauta.
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Lilih Curi: “Ser mulher no cinema é como ser mulher na vida. Somos silenciadas ou nossas opiniões não são levadas em consideração como gostaríamos”

Entrevista com cineasta mineira radicada em Salvador fecha a série Cinema Falado, que comemorou os nove anos do Desde

Lilih Curi: jornalista, diretora, roteirista, atriz e produtora. Foto: Marina Lordelo

Por Raulino Júnior

Se alguma cineasta resolvesse roteirizar a vida de Lilih Curi para produzir uma cinebiografia, teria muito “pano pra manga”, como se diz. Neta de libaneses (os avós maternos são de Zahlé) e mineira de Belo Horizonte (BH), ela teve o seu primeiro contato com a arte na infância. “Nasci num bairro católico, onde até hoje vivem meus pais. Minha casa ficava na frente da igreja e meu primeiro contato com a arte foi cantando, vestida de anjo, nas festas de coroação de Nossa Senhora, no mês de maio. Lá, descobri também o teatro, interpretando Lúcia, que vê Nossa Senhora de Fátima. Eu tinha nove anos nessa época. O canto, o teatro, as festas juninas, os figurinos, as maquiagens, a brincadeira de fazer cena… Tudo isso foi uma diversão na minha infância e na adolescência”, recorda. Pelo que o histórico familiar indica, ela não é a única artista da linhagem. “Há rumores na família de que o Ivon Curi era primo de minha avó Labibe Curi, mas não sei se isso é verdadeiro. Há poucos anos, descobri que Labibe tocava violino, mas não profissionalmente. E minha prima, Denise Curi, dançava ballet e tinha uma escola onde cheguei a fazer aulas na minha infância”. Ao enveredar no universo artístico, adotou o nome Lilih Curi. “Este ‘h’, no final de Lili, eu ganhei de uma numeróloga”, adianta-se. Na adolescência, começa a dar os primeiros passos para uma carreira mais sólida: “Aos 16 anos, no Teatro Universitário da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), fiz um curso profissionalizante de três anos, que era, na época, a ‘graduação pública’ em teatro, em BH. Mas iniciei, de fato, em 1991, como atriz, no espetáculo Il Festino – Opereta de Adriano Banchieri, com direção de Ivan Feijó, no Palácio das Artes, na capital mineira”. Filha dos comerciantes Marta Curi e Dezejar Oliveira, e tendo três irmãos, Lilih parece personificar muito bem aquilo que dizem sobre os libaneses (e sobre quem tem o sangue libanês correndo nas veias!): é cosmopolita e resiliente. Para a primeira característica, um bom exemplo foi a vinda definitiva para Salvador, em 2008: “Vim morar em Salvador, pela primeira vez, em 1993, a convite da diretora teatral Carmen Paternostro, para substituir Iami Rebouças em Merlin ou a Terra Deserta, um espetáculo de sucesso da época que esteve em cartaz no Goethe Institut Salvador. Fiquei aqui até final de 94 e fui para São Paulo. Anos depois, no final de 2008, voltei para fazer mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA). Aqui casei, fiquei e estou até hoje”. Para a segunda, o próprio ofício de fazer cinema independente no Brasil explica. Como ilustração, ela se apropria de um discurso de Hamlet, famoso personagem de Shakespeare: “Estar pronta é tudo”. Nesta entrevista, feita por e-mail e que fecha a série Cinema Falado, que comemorou os nove anos do Desde, a jornalista, diretora, roteirista, atriz e produtora mostra que está mais do que pronta para falar sobre carreira, cinema, políticas públicas, governo brasileiro, filmes prediletos e de como é ser mulher na sétima arte: “Somos silenciadas”, reclama.

Desde que eu me entendo por gente: Quando nasceu a sua paixão pelo cinema?
Lilih Curi: Desde pequena, tenho paixão pelo audiovisual. Vi muita TV na minha infância e adolescência, como a maioria dos brasileiros. Marcantes foram o Sítio do Picapau Amarelo e os filmes da Sessão da Tarde. Outra lembrança dessa época foi ter visto o meu tio num programa de TV local. Aquilo foi tão mágico que até hoje tenho a imagem daqueles instantes e sei que por muito tempo permaneci me indagando como aquilo acontecia. Acho que ali já era paixão! O cinema, especificamente, entrou na minha vida aos dez anos, quando assisti ET, de Spielberg. Aí sim, a telona, que experiência arrebatadora! Lembro como se fosse hoje: o cinema lotado e eu sentada na escadaria da sala, em êxtase. O filme tinha uma tecnologia avançadíssima para a época, o que me marcou profundamente. Como eles faziam para a bicicleta voar? Mas, aos 26 anos, já trabalhando como atriz em SP, que decidi ser cineasta, ao assistir Central do Brasil, de Walter Salles. Eu acho que assisti a esse filme umas sete vezes, e sempre sozinha. Sou da época que se alugava sete filmes, por R$ 7, durante sete dias. Quando você devolvia antes, que era o meu caso, conseguia bônus para um novo pacote e assim fui me formando, no VHS. Assisti a tanto filme, que não me lembro nem mais o nome, mas tudo está guardado em algum lugar!
Desde: Mostra Lugar de Mulher é no Cinema, da qual você é uma das idealizadoras, com Hilda Lopes Pontes e Moara Rocha, é um espaço político de representatividade feminina. Como nasceu a ideia do evento e qual a importância dele dentro da cena?
LC: A Mostra surgiu numa sinergia entre nós três à época do levante feminista que acontecia em 2016 no Brasil. Foi uma proposta da gente se juntar e conhecer as mulheres do audiovisual baiano para “fazer alguma coisa juntas”. Tínhamos a ideia de exibir nossos filmes e conhecer os das outras mulheres. Na época, eu tinha uma pequena coleção de filmes sobre o universo feminino, uns 18 curtas sobre aborto, violência contra as mulheres etc., que queria exibir para as mulheres também. Eu já era conectada às questões de gênero. Então, depois de algumas tentativas frustradas de juntar filmes e mulheres numa criação e gestão compartilhada de um evento, resolvemos encabeçar a Mostra meio que no ímpeto de, de fato, “fazer alguma coisa” para saciar a sede que tínhamos (e ainda temos!) de sermos escutadas, visibilizadas, contra qualquer tipo de apagamento criativo e artístico, que a gente vivencia aqui na Bahia ou em qualquer lugar do mundo! O sistema patriarcal nos impõe essa situação e a Mostra chegava como um respiro, uma ação concreta, o nosso antídoto para tanta invisibilidade. A partir das três edições, realizadas em 2017, 2018 e 2019, percebemos que todas as 54 mulheres diretoras e gestoras como nós, profissionais do audiovisual da cidade de Salvador e do Estado da Bahia, que sustentam o evento diretamente com a gente, são hoje uma rede viva de atuação na área, com muito mais visibilidade, reconhecimento e autonomia criativa do que antes. Hoje, sabemos quem são as caras! Nós hoje nos reconhecemos! Sabemos quem somos! Estamos em vários projetos, em múltiplas funções, em várias produtoras, saindo do Estado, do País. Sabemos também que é apenas o começo, que cada vez mais estaremos ocupando os espaços de poder, porque não tem mais volta. Sabemos do nosso valor. Se nós mulheres não colocarmos a coroa na cabeça, ninguém o fará! No total, chegamos à casa de cerca de 90 pessoas envolvidas direta e indiretamente no projeto na última edição. Para nos firmarmos, e isso significa ter um público assíduo nos sete dias do evento, precisamos de patrocínio. A 4ª edição está programada para o final de 2020, mas só realizaremos se tivermos patrocínio. Temos valor e sabemos do valor do evento para a cidade de Salvador e, além, para o Brasil, minimamente. Exibimos 156 curtas do Brasil inteiro na 3ª edição. Nossa ideia é crescer mais ainda, internacionalizando o evento, mas pra que isso aconteça, precisamos, e merecemos, o investimento do setor público e privado. Desde a terceira edição, temos Dayane Sena como sócia também do projeto e responsável pela produção executiva. Então, cada vez mais, estamos nos profissionalizando e agregando profissionais de valor e experiência como Day, que, com a gente, tem se mobilizado para que a  4ª edição aconteça.
Desde: E o que é ser mulher no cinema?
LC: É como ser mulher na vida. Somos silenciadas ou nossas opiniões não são levadas em consideração como gostaríamos. Salvo a conduta de alguns poucos homens conscientes, que praticam a igualdade de ser, estar e viver com mulheres. Para permanecermos num ambiente saudável de trabalho, temos que ter jogo de cintura e ensinar o respeito. Por outro lado, sinto que tenho atraído cada vez mais trabalhos diferenciados, em que as mulheres estão na linha de frente, o que faz toda a diferença. E também cheguei numa etapa profissional em que tenho firmado parcerias com amigos, artistas e profissionais que jogam junto com fidelidade, leveza e alegria.
Desde: Você é roteirista, diretora, atriz e produtora na Segredo Filmes, que está em atividade desde 2013. Fazendo um trocadilho, qual é o segredo para fazer cinema independente no Brasil? E na Bahia?
LC: Ufa! O maior segredo é ser positiva, porque se eu for aqui reclamar que a Prefeitura de Salvador, o Governo do Estado e o Governo Federal não apoiam, não investem o suficiente em editais e projetos, é clamar de novo, é clamar pela escassez, pela falta de investimento, pela falta de respeito com a arte e a cultura nesse país. Uma cidade, um Estado que fabrica gênios como GlauberCaetanoGilBethâniaRiachãoCaymmiJorge AmadoBel Borba e muitos, muitos, muitos outros… deveria tem um mínimo de amor-próprio. Mas mudou alguma coisa? Adiantou a gente reclamar? A gente consegue se unir enquanto classe? Não! Quem sabe com o COVID isso muda. Tenho esperanças! Mas, o que sabemos é que não temos formação política no Brasil, não sabemos exigir os nossos direitos. E quando conseguimos um mínimo de organização, como foi na “Era LulaDilma”, não soubemos manter as políticas e valorizá-las. Honestamente, não acredito mais nesse sistema. Ele é caduco, com teorias e práticas velhas, viciadas, é uma “Matrix” da exploração do trabalho e do capital, é um sistema de compadres brancos que se acham europeus e que repetem a violação e o roubo do nosso tempo, da nossa vida, como sofreram os antepassados desses mesmos homens. Está tudo errado. Então… o que me mantém positiva, criativa? São as parcerias, escambos, trocas com as pessoas. Os artistas salvam os artistas! Efetivamente, se cada um de nós não nos sintonizarmos com essa outra frequência para realizar os nossos sonhos, nada muda, continuaremos no limbo do limbo. O segredo é estarmos conscientes da frequência que a gente atua e agirmos na frequência que nos eleve! A Bahia me ensinou que, ou você tem uma atitude proativa, confiante, com parceiros, amigos, na fé, ou você não realiza nada aqui. Ficar esperando editais e empresas apoiarem é uma falácia. Na Segredo Filmes acreditamos e praticamos esta outra frequência: de um sistema de trabalho e economia solidária, onde um colabora com o outro, ganha em um lugar, repassa o cachê e vai realizando os sonhos, os projetos. E claro, não somos Polianas! Quando abre um edital, uma oportunidade, buscamos estar prontos! Como diz Hamlet, estar pronta é tudo!
Desde: Na Segredo Filmes, você já realizou os curtas CARMEN (2013), TERESA (2014) e CAROLINA (2017), que, com ANASTÁCIA (em fase de captação de recursos), integram a Tetralogia da IndignaçãoDISTOPIA ainda é inédito. Contudo, a mulher é, quase sempre, tema central de suas produções. Por quê? 
LC: Aconteceu de maneira espontânea. Na hora que vi, já estava enredada no gênero. Já tinha o background com a pesquisa em torno da vida e obra de Frida Kahlo, mas não pensava que no cinema iria escrever personagens femininas. Fui então sistematizando as criações na “Tetralogia” e tive influências no entendimento disso, uma delas foi com Minom Pinho, no Kinoforum Labs – Mulheres no Cinema. Ela me despertou para a compreensão de que todas as personagens fazem parte de mim. Por muitas vezes, não fui escutada como Carmen ou fui esquecida como Teresa e como Carolina. Para não permanecer na invisibilidade, aprendi a tomar partido de mim. Anastácia fecha a “Tetralogia”. É um roteiro de curta de ficção selecionado para o Laboratório de Roteiros do PanLab – 2019, que escrevi para Johsi Varjão atuar. A personagem é uma mulher negra que não mais se silencia, ela vai além, denuncia a violência vivenciada. Me vejo também nessa personagem. São várias as violências que sofremos e não é mais possível nos calarmos. Aprendemos a falar, a denunciar. Não tem mais volta. Distopia está sendo lançado neste ano de 2020. É o único “filho”! E toca na minha relação com o masculino e a família. Ainda estou processando… Dois outros projetos estão em andamento, o curta-documentário A Residência e o longa-documentário Mátria, neles as mulheres também são protagonistas e falo de maternidade e família.

Emilio Le Roux e Lilih Curi durante a gravação do curta CAROLINA. Foto: Claudio Zakka.

Desde: Na sua opinião, o que falta ao audiovisual brasileiro?
LC: Investimento. Os editais pararam de acontecer em todo o Brasil. A Cultura está sendo sabotada. O nosso imaginário está sendo atacado. A nossa diversidade está sendo aniquilada.
Desde: E o audiovisual da Bahia? Quais são as principais demandas?
LC: No Governo Rui Costa, não tem investimento, muito menos contínuo. Enquanto Pernambuco dá um show de gestão pública da cultura, Rui investe uma única vez no audiovisual no seu primeiro mandato e uma outra através do edital do Irdeb. E neste mandato de agora fez um outro edital, com problemas. Está aberto agora um edital de 30 milhões para uma única organização social, o que é um absurdo, enquanto as linguagens agonizam por investimento. E a Prefeitura de Salvador também não tem investido no audiovisual. A gestão pública municipal trata a Cultura através da Fundação Gregório de Mattos, com uns trocados da pasta do Turismo, e não através de uma Secretaria de Cultura, com orçamento próprio, como a cidade merece.
Desde: 2019 não foi um ano fácil para o setor cultural, que sofreu com censura e desmantelamentos. Quais, na sua opinião, são as perspectivas para a área até 2022, quando encerra a gestão do presidente Jair Bolsonaro?
LC: O pior possível. Infelizmente, temos um DESpresidente, eleito por um golpe de fake news via WhatsApp, vindo a reboque do golpe anterior, em que Temer articulou “Com o Supremo, com tudo.”, dando uma punhalada no povo pelas costas. Foi o povo que elegeu Dilma. Esses personagens e o Supremo são traidores do Brasil. O Deus chamado Mercado e os seus seguidores que escrevem Brasil com Z nos entregaram ao abismo. Enfim, é isso. É lastimável e aterrorizador chegar aonde chegamos, com a Porcina na Secretaria Especial da Cultura! É tudo um grande Teatro de Horrores ou do Absurdo, eu diria.
Desde: O cinema, inclusive, foi muito atacado pelo atual chefe do Executivo federal. Como o meio lidou com esses ataques?
LC: Esses senhores são incultos. É um governo de incultos. Não são pessoas que compreendem a importância da cultura na formação do imaginário de um povo. Na realidade, eles não querem compreender que o audiovisual eleva uma nação simbólica e economicamente, aumentando o PIB, diminuindo a fome, a violência, o desemprego e tudo que não presta. Não querem aceitar que o Cinema é uma indústria que rende mais que a da Borracha neste país. São caducos na forma de ver e estar no mundo: uma elite do atraso, como qualifica Jessé Souza, aliada a uma alta patente do exército, que alimenta um projeto autoritário de governo, um projeto de apagamento da nossa diversidade cultural. Imagine que eles censuraram o site da ANCINE (Agência Nacional do Cinema), tirando do ar vários cartazes de filmes brasileiros com a justificativa delirante de que os filmes seriam representantes da esquerda. Ou seja, ao atacar uma suposta “ditadura de esquerda”, eles agem como uma “ditadura de direita”. Uma atitude descabida, ilógica! Existe um projeto claro de eliminação das instituições ligadas a toda pauta progressista ou à cultura. A ANCINE foi a melhor coisa que aconteceu para o mercado audiovisual nos últimos anos e ela está sendo bloqueada, não estão liberando cerca de 2 bilhões de reais que estão parados nos cofres da Agência. Os artistas e as produtoras defendem a ANCINE como podem, através dos grupos de trabalho, associações, na busca de diálogo com diversos setores, entre eles, deputados e senadores, para que a Agência e o setor não tenham um fim trágico.
Desde: Qual é a função do cinema na sociedade atual?
LC: A construção e reconstrução do nosso imaginário. Sempre foi! Cinema é o retrato da identidade e da cultura de um povo. A função do cinema chega além, num sentido mais elevado. O cinema toca a alma.
Desde: Se o Brasil atual fosse um filme, de qual gênero seria e por quê? 
LC: Terror? Cinema do Absurdo? Será que preciso explicar o porquê? Acho que não, né? Infelizmente!
Desde: Lei de Incentivo à Cultura (antiga “Lei Rouanet”) passou por mudanças no primeiro ano da gestão de Bolsonaro. Antes disso, o instrumento de fomento à cultura já recebia críticas de artistas e produtores culturais. Claro que os criadores faziam críticas de outra natureza. Qual análise você faz disso tudo? 
LC: Com tanto disse-me-disse, o que mais me entristece é que neste momento estamos sem Lei. Está no Congresso pra ser votada, passou pela Câmara e pelo Senado e nada! Com todos os problemas que tínhamos, o pior seria a Cultura parar. E parou! O pior aconteceu. O problema não é a forma – a Lei em si – isso sim deve sempre passar por avaliações, transformações necessárias e evoluir. Não devemos ter problemas com as críticas, muito pelo contrário, devemos reformular o que já não nos serve mais e medir o que é mais justo para um país de dimensão continental como o Brasil, que vem de 350 anos de história de escravidão e que se tornou República num golpe militar e político em 1889. Ou seja, a Cultura sempre esteve em risco, desde que os invasores roubaram dos índios as suas terras, desde que os jesuítas impuseram às etnias a catequização! Não devemos descansar. É isso! Quanto mais tentam nos calar, mais a gente tem que falar, e falar bem alto.

Wallace Nogueira e Lilih Curi no set de DISTOPIA. Foto: Daiane Rosário.

Desde: Podemos dizer que o seu cinema é de militância? Por quê?
LC: Eu acho que não. Não tenho “uma obra” pra poder ter uma síntese ainda. Sinto que o que realizo tem posicionamento, está endereçado, pois desejo que faça o espectador pensar. Sou militante de um pensamento e de uma prática edificante, para todos, isso sim.
Desde: Quais são as suas referências no cinema?
LC: No Brasil, Walter Salles e Eduardo Coutinho me tocam a alma. Fora daqui, os iranianos. Sou apaixonada por vários cineastas iranianos, porém tenho uma conexão especial com Jafar Panahi e com os MakhmalbafMohsen, o pai, é um gênio; e as filhas, Samira e Hanna, a esposa, Marzieh, têm também obras excelentes. Essas mulheres são também, sem dúvida, uma referência para mim.
Desde: Quais filmes mais te marcaram? Por quê?
LC: Central do Brasil, de Walter Salles, por toda a força do roteiro, da fotografia, das atuações, por toda a arte que Walter nos doou à época, naquele retrato impresso dos nossos brasis. Esta é, sem dúvida, a melhor obra do cineasta até o momento. A Maçã, de Samira Makhmalbaf. Simplesmente fenomenal: poético, tocante, de uma sensibilidade não antes vista na condução da atuação, realizada com atores não profissionais. É a vida real ali, pulsante! Um documentário que se pretende ficção ou vice-versa, e que nos conquista por ser tão orgânico, que a gente vê a pulsão da vida ali, hibridizada nos gêneros. Samira faz magia, consegue realizar uma alquimia entre uma história real e aquilo que entenderíamos por ficção. Este cinema é o meu norte como realizadora. Naquele modo de fazer, reside a minha alma de artista. Salve o Cinema, de Mohsen Makhmalbaf é de uma inteligência arrebatadora. O jogo entre a verdade e a atuação é a base da forma do filme e da relação que o diretor cria com os atores, o que nos dá margem também pra analisar a obra do cineasta como um todo, as intertextualidades que ele cria com a sua própria trajetória fílmica. Este filme é uma aula poderosa. E esta obra me conecta a Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, no que tange à questão da representação ali posta novamente, mas sobre uma ótica diversa, pois Coutinho nos faz pensar sobre o conceito da verdade no cinema e também sobre a possibilidade da fonte/personagem ser ou não uma representação. Coutinho é luxo! Veja que essa questão da representação e do hibridismo dos gêneros, esse lugar limítrofe entre o documentário e a ficção me atrai muito. Enfim, poderia citar outros filmes marcantes: Cabra Marcado para Morrer, também do Coutinho, uma obra-prima, por tudo o que o documentário representa na história do cinema brasileiro; Isto Não é Um Filme, de Jafar Panahi, realizado na prisão domiciliar do diretor; Táxi Teerã, um “falso documentário” de Panahi, que bebe na obra do grande mestre de todos, Abbas Kiarostami, ao realizar todo o filme dentro de um carro; e muitos outros por distintas questões… Amor, de Michael HanekeA Separação, de Asghar FarhadiQue Horas Ela Volta?, de Ana MuylaertBacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano DornellesMadame Satã, de Karim Aïnouz. Enfim, é muito filme incrível.
Desde: Você tem experiência tanto na produção de documentários quanto na produção de filmes de ficção. Qual gênero te mobiliza mais? Por quê?
LC: São processos diferentes na ficção e no documentário e sou enamorada dos dois em medidas diversas. Obedeço a minha pulsão em criar, então não me guio pelo gênero, para ser sincera. Na ficção, amo o processo da carpintaria do roteiro, me apaixono pela potência da escrita cinematográfica. O desafio tem sido sempre conseguir editais que financiem os projetos para esses roteiros saírem da gaveta e se tornarem, de fato, os filmes. DISTOPIA, que lançaremos neste ano de 2020, foi o meu primeiro roteiro de ficção, propriamente dito. Digo isto porque os curtas anteriores foram híbridos entre ficção e documentário. ANASTÁCIA é o segundo roteiro e continuamos buscando formas de realizar o filme. Na seara dos documentários, a criação processual me encanta, inicia com uma paixão por um personagem ou tema e o filme vai tomando forma de uma maneira mais livre de um roteiro prévio. Além de ser mais viável financeiramente do que a ficção, o processo criativo e as questões que o filme traz vão se definindo à medida que o material fílmico se concretiza, quando já temos as imagens e sons no HD. Sinto que a criação no documentário me inspira a dialogar diariamente com as minhas questões mais subjetivas, sinto que posso tudo naquele instante da filmagem. Inclusive, não fazer o filme, não colocar aquele instante amarrado a uma ação concreta no futuro. Posso, despretensiosamente, filmar ou apenas testemunhar o que a câmera me pedir pra olhar. E com o documentário me sinto muito mais livre pra fotografar também. Cada vez mais, sinto necessidade de fotografar os meus filmes. É um espaço de muita paixão! Paixão pela criação. E gosto das pessoas, das personagens, da profundidade das questões que escolho abordar nos filmes.
Desde: Como é o exercício de ir ao cinema, assistir a um filme e ter um olhar menos criterioso? Existe esse distanciamento?
LC: Sou espectadora de profissão sendo diretora de cinema, não é mesmo? Então, para mim, é um misto de coisas. Quando o filme é bom, envolvente, não dá pra pensar, você entra, já está lá, pronto! Sentiu. Embarcou. É mágica a sétima arte! Mas há filmes que nos distanciam mesmo, inevitavelmente, mas isso acontece quando ele não me cativa pela narrativa, principalmente, quando o discurso é frágil. Ou quando tecnicamente é muito ruim, principalmente quando o som é muito ruim. Algumas questões menos arrojadas de imagens e arte, às vezes, passam batido quando a história me prende. Eu tenho tido boas experiências nas salas de cinema. Os últimos que eu assisti foram Parasita e Coringa e saí mexida com os dois, de maneira completamente diversa.
Desde: Qual história você ainda quer contar na tela grande? Por quê?
LC: São muitas. Mas tem um longa que venho devagarinho desenvolvendo o roteiro, intitulado de Por uma banana. Uma ficção baseada numa história dos meus avós que vieram do Líbano, em que três irmãos se dividiram entre Brasil, Argentina e EUA depois de brigarem no navio por uma banana. Uma história de fome que custou a separação da família Curi.
Desde: Você é multifacetada, tem experiência em teatro, cinema e TV. Contudo, e é uma pergunta filosófica, o que você mais gosta de ser?
LC: Pintora. Frida Kahlo está me ensinando! Mas é um hobby. A pintura me centra, me dá presença, me acalma. E, ultimamente, tenho voltado a compor também, despretensiosamente. Fiz algumas músicas com Élio Camalle quando morei em São Paulo e, desde 2019, tenho criado com Johsi Varjão e Luã Almeida. As músicas estão, sem pressa, sem pausa, chegando nas plataformas musicais.
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Solange Souza Lima Moraes: “O papel do cinema também é social”

Em entrevista para o DesdeSolange Souza Lima Moraes destaca a importância dos profissionais de produção, fala de suas experiências no audiovisual e diz por que acredita na função social do cinema

Solange Souza Lima Moraes: cineasta e produtora audiovisual. Foto: Raulino Júnior

Por Raulino Júnior

Solange Souza Lima Moraes é formada em Cinema pela Universidade Federal da Bahia, produtora audiovisual com mais de 30 anos de experiência e proprietária da Araçá Filmes, que foi fundada em 1998. Solange trabalhou em importantes produções do cinema nacional, como Tieta do Agreste (Cacá Diegues, 1996), Brilhante (Conceição Senna, 2005), Estranhos (Paulo Alcântara, 2009), Jardim das Folhas Sagradas (Pola Ribeiro, 2011) e Capitães da Areia (Cecília Amado, 2011). Além disso, foi a responsável pela produção, em Salvador, do videoclipe Eles não se importam conosco (Spike Lee, 1996), de Michael Jackson. Atualmente, está prestes a lançar o curso A Engenharia da Produção no Cinema, para interessados em cinema, e os filmes A Pele Morta (Bruno Torres e Denise Moraes), Longe do Paraíso (Orlando Senna) e Nina (Paulo Alcântara). Nesta entrevista que concedeu ao Sem Edição, integrando a série Cinema Falado, que comemora os nove anos do Desde, Solange mostra a sua paixão pela sétima arte, destaca a importância dos profissionais de produção na realização de um filme, opina sobre a indústria de videoclipes, fala sobre suas experiências em atividades de gestão e afirma: “Eu trabalho com filmes que tenham um retorno reflexivo”. Assista, nos vídeos a seguir, à entrevista com Solange Souza Lima Moraes.

OBSERVAÇÃO: 1) Na apresentação de Solange e na parte final da entrevista, Raulino Júnior acrescenta um “de” que não existe ao nome da produtora. Ainda na apresentação, o jornalista fala: “…dos filmes pelos quais ela participou como produtora”. Na verdade, o correto seria: “…dos filmes dos quais ela participou como produtora”. Desde já, pedimos desculpas pelos erros; 2) Pedimos desculpas também pelos ruídos que comprometeram alguns trechos da entrevista. Foi problema de configuração da câmera. Ficaremos mais atentos nas próximas entrevistas.

Sem Edição| Solange Souza Lima Moraes ⇨ Série “Cinema Falado” – Parte 1

Na primeira parte da entrevista, Solange fala como se transformou numa produtora de cinema, diz como é ser mulher na sétima arte e conta como foi as suas experiências trabalhando na produção de filmes. Ela fala também sobre a passagem pela gestão, onde atuou em  órgãos como a Associação Baiana de Cinema e Vídeo e Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas, entre outros. Na entrevista, a produtora ainda opina sobre a Lei de Incentivo à Cultura e sobre as políticas públicas para o audiovisual.

Sem Edição| Solange Souza Lima Moraes ⇨  Série “Cinema Falado” – Parte 2 

Na segunda parte, Solange fala sobre o papel do cinema na sociedade, sobre o curso “A Engenharia da Produção no Cinema” e sobre os atuais projetos da “Araçá Filmes”.
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Carlos Pronzato: “O que falta ao audiovisual brasileiro é uma estrutura política de confrontação com o mercado capitalista audiovisual invasivo norte-americano e europeu”

Documentarista argentino radicado no Brasil fala sobre carreira, cinema, militância e movimento estudantil da atualidade, em entrevista para a série Cinema Falado, que comemora os nove anos do Desde

Carlos Pronzato: escritor, dramaturgo e cineasta. Foto: divulgação.

Por Raulino Júnior

Carlos Jorge Pronzato, ou simplesmente Carlos Pronzato, se apaixonou por cinema acompanhando o trabalho de seu pai, Victor Pronzato, que foi músico, compositor, dramaturgo e roteirista de cinema e TV. Victor Proncet (nome artístico também utilizado pelo pai) foi um expoente da cultura da Argentina. Ele transformou um de seus contos num roteiro que deu origem a um dos filmes de ficção política mais importantes do continente: Los Traidores (dirigido por Raymundo Gleyzer). “Meu pai sempre foi e é uma inspiração fundamental no meu trabalho e na minha vida, principalmente na atitude e compromisso ético diante das questões do quotidiano”, declara. O pai faleceu em 2009 e a mãe, Irma Haydée, artista plástica e fotógrafa, em 1993. Ambos deixaram o legado artístico para Pronzato, que é escritor, dramaturgo e cineasta. Entre curtas e longas, alguns de ficção e experimentais, o documentarista tem cerca de 80 filmes, que estão catalogados no site La Mestiza Audiovisual. “La Mestiza surge no início dos anos 2000 e é apenas um nome de fantasia de algo muito concreto, que é essa penca de filmes produzidos ao longo dos anos, mas não existe como empresa ou algo que se assemelhe”, explica. Da penca de filmes citada por ele, estão na lista os documentários Maio Baiano (2001), A Revolta do Buzu (2003), A Rebelião dos Pinguins (2007), Che 80: aniversário de nascimento de Ernesto Che Guevara (2008), Carlos Marighella: quem samba fica, quem não samba via embora (2011), Copa do Mundo Fifa 2014: sem baianas de acarajé? (2013), Por uma vida sem catracas: Movimento Passe Livre – São Paulo (2014), A partir de agora: as jornadas de junho no Brasil (2014), Forrobodó: uma história de São João na Bahia(2015), Acabou a paz! Isto aqui vai virar o Chile! Escolas Ocupadas em São Paulo (2016), A Escola Toma Partido: uma resposta ao projeto de lei Escola Sem Partido (2016), Mestre Moa do Katendê: a primeira vítima (2018) e Lama: o crime vale no Brasil – A tragédia de Brumadinho (2019), só para citar alguns. Argentino por natureza e brasileiro de coração, Carlos Pronzato radicou-se no Brasil em 1989. Chegou por aqui, mais especificamente em Salvador, aos 29 anos. Hoje, com 60, circula no país e no exterior para divulgar e produzir conteúdos para contar as suas histórias, sempre com o olhar de cineasta militante. A empreitada mais recente tem como objetivo documentar a atual situação social e política do Chile. Por isso, já está em terras chilenas, fazendo a pré-produção de Piñera, a Guerra contra o Chile, provável nome do documentário. Nesta entrevista, feita por e-mail e que integra a série Cinema Falado, que comemora os nove anos do Desde, Pronzato fala sobre a formação em direção teatral, analisa o cinema brasileiro e argentino, opina sobre o movimento estudantil dos dias de hoje, faz críticas ao atual governo do Brasil, reflete sobre a própria prática profissional e sobre alguns de seus documentários e fala de militância: “Sou um cineasta militante pela perseverança nos temas e numa postura política firme desde o início, mantendo uma independência total no que diz respeito aos parcos recursos de produção, vindos exclusivamente do movimento social, sejam organizações ou pessoas físicas”.
Desde que eu me entendo por gente: O seu contato com a arte se deu dentro de casa, já que os seus pais são artistas. A paixão pelo cinema nasceu acompanhando o seu pai. Ele também trabalhava mais com documentários? E por que a sua predileção por esse gênero?
Carlos Pronzato: Acompanhava meu pai nos laboratórios da indústria cinematográfica argentina, na década de 70, quando ia colocar as trilhas nos filmes e nos ensaios de suas peças teatrais. Depois, ajudei nas adaptações de romances da literatura universal para programas televisivos que ele escrevia. Havia uma belíssima e nutrida biblioteca em casa que foi a fonte das minhas atividades futuras no cinema, na literatura e até na política, não institucional, é claro. Meu pai trabalhou em alguns documentários como roteirista, entre eles, um muito conhecido na área social, também com Raymundo Gleyzer como diretor, La Tierra Quema, gravado em Pernambuco, em 1963. Compôs a música de muitos filmes e outros tantos roteiros de cinema e TV. A minha predileção pelo gênero documentário vem das minhas viagens de carona por toda a América Latina durante quase toda a década de 80 e um gosto muito especial pela História, e especificamente pela História do nosso povo latino-americano, e a possibilidade de contribuir com um olhar subjetivo e com propostas de ação política dentro do gênero dito documental.
Desde: Entre 1989 e 1993, você estudou direção teatral na UFBA. Por que optou por esse curso?
CP: Optei pelo curso porque era o que já tinha iniciado de forma prática na Argentina, no início da década de 80, antes de viajar para me instalar no México, onde fiquei quase um ano. Foi a partir dessa experiência e aventura mexicana que iniciei uma longa viagem, trabalhando em diversos ofícios pelo continente, que finalizou no Brasil, em São Salvador da Bahia, no fim da década, onde cursei o bacharelado em Artes Cênicas, retomando minhas atividades e estudos teatrais, montando muitas peças em paralelo ao curso. Na adolescência, era um apaixonado pela leitura de peças teatrais, que depois comparava com as montagens, indo assistir às peças que tinha lido previamente. Aí comecei realmente a minha carreira na direção teatral, que pretendo retomar. O que não abandonei nunca é a dramaturgia, escrevendo algumas peças até hoje.
Desde: Além de cineasta, você é escritor e dramaturgo. Como cada atividade dessa contribui para o desenvolvimento de todas elas?
CP: Acho que cada uma dessas atividades artísticas tem sua dinâmica própria. Por exemplo, a literatura de ficção e a escrita teatral precisam de uma concentração extrema, no meu caso. Por isso, essas obras surgem em lapsos relativamente esparsos. Já a poesia acompanha a realização dos documentários, os temas candentes abordados neles vão influenciando a escrita, inclusive temas históricos encontram inspiração na escrita poética, como nos livros Poemas sem terraPoesias contra o ImpérioChe, um poema guerrilheiroPoesias sem licença para Carlos MarighellaBolívia Poema RebeldeAlguma poesia para Brumadinho etc. A maioria dos meus livros publicados são, justamente, de poesia; já de contos e crônicas são apenas três e alguns de teatro e infantis.
Desde: Você nasceu na Argentina e se radicou no Brasil a partir de 1989. Pensando no cinema, quais as diferenças e semelhanças dessa arte nesses dois países sul-americanos?
CP: Seria muito longo enumerar coincidências ou diferenças. Num sentido amplo, as duas cinematografias compõem o campo do antigamente denominado Cinema do Terceiro Mundo, que era uma acepção ou um rótulo estritamente político, que ao longo do tempo foi perdendo as suas caraterísticas essenciais, acompanhando o processo político mundial. Diretores como Glauber Rocha foram ícones de um tempo épico e influenciariam o cinema de vários cantos do mundo. Argentina não teve um vulcão glauberiano na sua historia da sétima arte, embora potente a nível do continente de fala hispana, o que lhe rendeu um público diversificado e massivo para poder construir uma indústria nos anos 40 e 50 do século XX, a época de ouro do cinema platino. Da mesma forma, esse auge industrial aconteceu também no Brasil, sendo que aqui o mercado era “apenas” interno, um mercado interno equivalente a vários países da região. Hoje, o Brasil, apesar de ainda não ter ganho nenhum Oscar da Academia — algo que não pode ser parâmetro para a nossa cultura , e que a Argentina já conseguiu em duas ocasiões, hoje, digo, o Brasil é um referente cinematográfico com obras criadas não só no eixo sulino, mas também em Pernambuco, fonte de criadores e obras marcantes nos últimos tempos. Argentina, por sua parte, produz também hoje um cinema de conteúdo bem particular e caraterístico, de muita personalidade, com roteiros, elenco e direções contundentes e também no âmbito do documentário politico, um verdadeiro núcleo fundante e ativo ainda hoje da escola latino-americana de documentaristas.
Desde: Você se considera como um cineasta militante. Quais são as vantagens e desvantagens de sê-lo?
CP: Bom, em grande medida se pode dizer que sou um cineasta militante pela perseverança nos temas e numa postura política firme desde o início, mantendo uma independência total no que diz respeito aos parcos recursos de produção, vindos exclusivamente do movimento social, sejam organizações ou pessoas físicas. Digo parcos porque as solicitações de apoio para os diversos projetos são parcas também, justamente para manter o perfil de um cinema político “do Terceiro Mundo”, que nunca se vendeu ao mercado capitalista e continua nas trincheiras. As vantagens são basicamente no plano ético, já que podemos escolher os assuntos e até decidir sobre os convites, desistindo sempre, por exemplo, de se envolver em campanhas políticas, apesar do monte de dinheiro que se pode ganhar nessas farsas burguesas eleitorais. Nosso campo é outro, é o terreno da luta popular. A desvantagem é justamente sobreviver sem entrar nesse submundo.
Desde: Você considera o documentário como um instrumento de luta. De onde vem essa predileção por documentar, especificamente, manifestações e personagens ligados a combates políticos?
CP: As viagens, sempre por terra e da maneira que eu as vivi, percorrendo diversos países, em situações políticas complexas nos anos 80, quando ainda havia os confrontos bélicos na América Central, por exemplo, e também em alguns países da América do Sul, entre as guerrilhas e o terrorismo de Estado, despertou em mim o interesse pelas conjunturas da época e pelos processos históricos prévios. Assim cheguei a figuras como Ernesto Che GuevaraSalvador AllendeMarighella etc. Posteriormente, passei a documentar as manifestações surgidas no seio popular, ditas “espontâneas”, principalmente manifestações não surgidas em gabinetes ou com convocatórias previamente organizadas. Primeiro, no Brasil, e depois retornei a outros países do continente, como Bolívia (A Guerra da ÁguaA Guerra do Gás etc.), Chile (A Rebelião dos Pinguins) ou na própria Argentina dos levantes populares de dezembro de 2001 e das lutas operárias das fábricas fechadas e recuperadas pelos trabalhadores, como a Brukman (Fábrica Brukman sob controle operário).
Desde: Na sua opinião, o que falta ao audiovisual brasileiro?
CP: Em grande medida, o audiovisual brasileiro (excetuando as comédias de apelo fácil e massivo produzidas regularmente por grandes cadeias televisivas) tem conquistado uma expressiva fatia do interesse de uma ampla gama da população, que poderia ter um grande apelo formativo político, se houvesse uma política de Estado constante, responsável e convidativa. Uma oportunidade perdida de construção popular durante os 13 anos do governo petista. O que falta ao audiovisual brasileiro, então, como a todo o cinema do continente ao sul do Rio Bravo (salvo algumas exceções, como Cuba, que tem conquistado um ethos próprio de reivindicar sua cultura), é uma estrutura política de confrontação com o mercado capitalista audiovisual invasivo norte-americano e europeu, seja nas telonas ou no mundo digital de exibição. Uma política de Estado. Se houvesse um Estado com voz coletiva e diariamente ativa, muito além das máquinas burocráticas dos gestores das Secretarias respectivas, onde cinemas de intervenção política como o nosso não tenham que disputar verbas com o cinema comercial através de editais de cartas marcadas. Falta isso. Se você me perguntar especificamente por um cinema de combate político, uma verba fixa para trabalhar a partir do interesse social com todos os coletivos de cineastas com preocupações políticas e sociais, sem a interferência de ONGs amigas dos governantes de turno ou encomendas de próprio governo a integrantes ou simpatizantes dos partidos eventualmente no poder.
Desde: 2019 não foi um ano fácil para o setor cultural, que sofreu com censura e desmantelamentos. Quais, na sua opinião, são as perspectivas para a área até 2022, quando encerra a gestão do presidente Jair Bolsonaro?
CP: A perspectiva neste deserto cultural que foi imposto pelas milícias que ocupam atualmente o Planalto é a pior possível. Vivemos cercados de uma constelação de imbecis de toda espécie nos ministérios e repartições que se apossaram de um espaço público através de eleições fraudulentas, após colocar na cadeia o candidato opositor e ganhador natural do pleito. A perspectiva então, se não houver nalgum momento uma rebelião popular de uma contundência tal que os retire violentamente do Planalto, é de que os desmantelamentos continuarão até ficar uma paisagem tão inóspita quantos as terras onde se edificou Brasília nos anos 60. Portanto, independentemente dos processos coercitivos e desmotivadores vindos da Presidência, e as suas surrealistas Secretarias, o fundamental é produzir de qualquer maneira, sem importar esforços e sacrifícios, ignorando qualquer dependência ou tentativa de censura do poder central. Por exemplo, o filme sobre Marighella, de Wagner Moura, deveria ter promovido a sua estreia através de formas alternativas, driblando os obstáculos econômicos postos pela ANCINE. Assim, para Carlos Marighella, o homem que enfrentou a ditadura civil militar da época, esta realidade de hoje cheia de milicos em postos importantes de poder, seria até piada para ele e sua organização, a ALN (Ação Libertadora Nacional). Portanto, onde ele estiver, não deve ter gostado nada dessa claudicação, de um filme em seu nome, em tempos de “democracia”. Mas, no fundo, isso é cinema comercial, visa apenas o lucro e não a ativação de molas políticas, e não tem por que se expor como se expõe um cineasta ou uma equipe de intervenção política.
Desde: Qual é a função do cinema na sociedade atual?
CP: A sua função é a mesma de qualquer outra forma de expressão artística, submeter à opinião pública fatos, acontecimentos de todo tipo, através de elaborações estéticas de ficção ou documental, no intuito de obter um diálogo e a consequente mobilização da sociedade ou do indivíduo.
Desde: Se o Brasil atual fosse um filme, de qual gênero seria e por quê? 
CP: Brasil é um filme infinito, colorido, pulsante e de todos os gêneros possíveis, por causa da composição da sua população extremamente miscigenada, étnica, social e culturalmente. Um drama em muitos sentidos, porém sempre com pitadas de comédia libertadora, parte essencial de toda revolução dinâmica e quotidiana que se preze.
Desde: Você produziu inúmeros documentários, o que fica até impossível de falar de todos numa entrevista, mas a pergunta é: quando você sente que um episódio vale a pena ser documentado? Qual é o insight?
CP: Bem, essa é a pergunta inicial e principal que todo documentarista político se faz diante de algum acontecimento. A decisão de topar a parada, ou não, vai depender de diversos fatores. Antes, não havia opção, a decisão tinha que ser imediata, já que o documentário cumpria, além da sua função histórica posterior de resgate da memória, um papel imediato, pontual e noticioso, algo que hoje é preenchido pela informação instantânea das redes sociais. Portanto, a entrada em campo era imprescindível para documentar, e o mais rápido possível editar, fazer o recorte autoral em função do material coletado e lançar o documentário… em VHS! Era uma maneira, e ainda é em menor medida, pela existência da internet — e a metralhadora informativa das redes e dos meios virtuais profissionais também —, de interceder na realidade sociopolítica através dos cines debates posteriores, que ainda são o ponto alto das discussões provocadas por esse tipo de documentário. Às vezes, a gente acerta e a obra fica como uma referência obrigatória quando se abordam certos temas históricos, daí a nossa responsabilidade, principalmente quando é a única realização audiovisual sobre determinado tema.
Desde: Nunca pensou em fazer jornalismo? Por quê?
CP: O jornalismo é uma atividade intrínseca ao documentário. A gente se nutre constantemente de matérias, artigos e coberturas feitas no calor da hora, quando não nos é possível participar in situ. Isso em referência a materiais que envolvem luta de classes e uma realidade do momento. Até nos materiais sobre episódios do passado, o jornalismo é importante pelas matérias da época, escritas e audiovisuais. Nunca pensei em fazer Jornalismo como nunca pensei em fazer Cinema nem Letras, e nem Teatro na universidade, mas quando apareceu a oportunidade das Artes Cênicas na UFBA, entrei imediatamente para exercitar o que já fazia e ter maior tempo e possibilidades de acesso à bibliografia e à prática teatral. Todas essas disciplinas, como as artes em geral, são fundamentalmente práticas e, se não há um interesse vital e uma vocação inexplicável, o melhor é se dedicar a estudos acadêmicos mais seguros. Os estudos formais nessas áreas, para mim, são apêndices importantes, mas não decisivos para exercer a profissão.

Carlos Pronzato: militância através das lentes. Foto: Ícaro Juan.

Desde: O documentário A Revolta do Buzu, lançado em 2003, é usado como referência por movimentos sociais espalhados pelo Brasil. O filme foi um divisor de águas na sua carreira? Por quê?
CP: Sim, foi e é usado largamente no Brasil afora pelos movimentos de Tarifa Zero, inclusive chegando a incidir na formação política do MPL (Movimento Passe Livre), a garotada que provocou o maior levante popular do Brasil neste século, em junho de 2013. Isso é dito por eles no documentário A partir de agora: as jornadas de junho no Brasil. Foi um episódio marcante, que da Bahia se espalhou para outras capitais, formando muitos militantes e provocando grandes manifestações pelo passe livre. No sentido da difusão e popularidade do meu trabalho, acho que foi, sim, um marco positivo nos âmbitos estudantil e universitário; mas, ao mesmo tempo que é uma carta de apresentação, inclusive em manifestações para ter livre trânsito entre a militância quando a desconheço, foi um rótulo que até hoje é difícil de descolar da minha câmera.
Desde: Além de terem o movimento estudantil como referência, o que mais você acha que tem em comum entre os documentários A Revolta do BuzuAcabou a paz! Isto aqui vai virar o ChilePor uma vida sem catracas e A partir de agora: as jornadas de junho no Brasil? Por quê?
CP: Todos estão intimamente ligados, nem só por terem todos o mesmo diretor e a mesma proposta editorial, senão pela linha condutora, inclusive cronológica, dos acontecimentos através do tempo. Mas o filme que mais influenciou as ocupações de escolas em São Paulo, em 2016, foi o documentário A Rebelião dos Pinguins, de 2007, e poderia ser incluído nessa lista da sua pergunta. O traço fundamental é a rebeldia dos jovens, sempre a vanguarda de todas as lutas, a organização política autônoma sem necessidade de partidos políticos, apesar de muitos militantes de partidos participarem como indivíduos, sem necessariamente a tutela do gabinete. Porém, essa dicotomia a gente não aborda de maneira contundente nesses documentários, o que seria um ótimo tema de discussão, além de ser um tema de eternas brigas. O importante nesses documentários é retratar as causas, os progressos, retrocessos e efeitos das revoltas, as estratégias utilizadas e as perspectivas políticas de emancipação que essas mobilizações podem provocar.
Desde: Para documentar, como você ganha a confiança dos manifestantes e das forças que o poder público usa para coibir as manifestações?
CP: A confiança das forças da repressão nunca as ganho e nem me interessa ganhar, porque as combato tanto quanto os manifestantes, mas sobre a confiança que é necessário ganhar destes últimos, tenho diversos exemplos. Para documentar os protestos de 2013  aos quais só cheguei quando o processo estava bem avançado, já que estava fora do país, num Festival naquele momento  numa das concentrações populares que se dirigiam a protestar na sede da TV Globo, em São Paulo, como não conseguia acesso para entrevistar os manifestantes durante a marcha, coloquei para alguns que eu era o diretor de A Revolta do Buzu (“Você é o Pronzato?”, “Sou!”), aí as comportas se abriram (risos). De outra feita, numa grande manifestação na Avenida Paulista, em novembro de 2015, durante as manifestações das Escolas Ocupadas, também usei o expediente diante da recusa a falar dos manifestantes, estudantes secundaristas. Dessa vez, o título enunciado e mostrado foi o DVD dos pinguins chilenos, que eles estavam utilizando nas escolas para mobilizar os alunos. Ali mesmo já marcamos minha ida às escolas… Claro que, além de tudo isso, também participo das revoltas como qualquer manifestante, quando as pausas na gravação o permitem.
Desde: Em 2001, você lançou o documentário Maio Baiano. Na época, embora já estivéssemos num regime democrático, vivíamos num contexto de coronelismo. Você não teve medo de retaliação dos governantes? Por quê?
CP: A última coisa que me vem à cabeça nessas situações é essa percepção do perigo. Deve ser algo inconsciente, que no momento da ação se apaga para poder agir em liberdade e com todo ímpeto. Já o momento posterior faz parte do quotidiano e não tenho como medir as consequências, porque, se em algum lugar uma porta se fecha, inclusive sutilmente, noutro se abre. Mas aprendi cedo a não colocar na balança situações a posteriori, para poder pensar no impossível e conseguir o máximo do possível, como dizia Bakunin. Além do que, se você assume um compromisso, não pode ser pela metade, tem que ir fundo. Não sou um político, com todo respeito a alguns que atuam do nosso lado e que exercem a arte da negociação para atingir o sucesso possível em certas pautas sociais.
Desde: Politicamente, o que acha do movimento estudantil da atualidade?
CP: Há um retrocesso atroz em nível nacional, se levarmos em conta as vitórias históricas conseguidas pelos movimentos estudantis (são vários e diversos) nas ruas e nas ocupações de Escolas, como no Paraná, por exemplo, um recorde mundial de ocupações que registarmos no documentário Ocupa Tudo: Escolas Ocupadas no Paraná. Com esse volume de ações e exigências, parece que, no fim, há sempre uma acomodação posterior influenciada pelo dispositivo partidário e as diversas tensões entre grupos políticos, não necessariamente institucionais, que ultrapassam até a capacidade da mobilização efetuada para reivindicar os direitos e as diversas pautas. Há um foco excessivo das organizações estudantis na política eleitoral e até isso não ser devidamente quebrado e enterrado, o movimento estudantil será apenas mais um tijolo da institucionalidade cada dia mais vilipendiada pelas populações do mundo todo, vide Chile como exemplo definitivo disso.
Desde: Lei de Incentivo à Cultura (antiga “Lei Rouanet”) passou por mudanças no primeiro ano da gestão de Bolsonaro. Antes disso, o instrumento de fomento à cultura já recebia críticas de artistas e produtores culturais. Claro que os criadores faziam críticas de outra natureza. Qual análise você faz disso tudo?
CP: Lamentavelmente, deixei de acompanhar essas discussões há muito tempo, para poder me entregar de cheio a ações práticas. O jogo burocrático instalado nesse enjambre legislativo me excede completamente, não é um campo onde me sinta à vontade. É fundamental para arrancar do Estado certas questões favoráveis a classe, mas, se já era ruim antes, um labirinto imobilizador de reuniões e mais reuniões para quem tem compulsão de trabalho, imagina agora, quando dificilmente se possa arrancar algo de positivo. Por outro lado, o meu cinema é muito modesto para estar discutindo e me digladiando por quantias de milhões de reais. Outros profissionais, que tem que cobrir estruturas super profissionais de produção, estão mais aptos a essas discussões e embates com os burocratas do Estado. Mas hoje, com o protofascismo instalado nos espaços de Poder, é preciso voltarmos a um Estado com as condições mínimas de sanidade mental para que tudo isso possa ser discutido. Neste momento, não adianta propor nada, já que não há ninguém minimamente normal e decente com quem sentar e discutir. O primeiro passo é destituir essa turma.
Desde: Você soube que o Governo do Estado da Bahia fechou o Colégio Estadual Odorico Tavares, não foi? Cerca de 30 estudantes chegaram a ocupar o colégio, mas o movimento não foi adiante. Se se alongasse, você se interessaria em fazer um documentário? Por quê?
CP: Infelizmente, não estava no Brasil quando isso aconteceu. Um outro absurdo para a coleção de equívocos da social-democracia, para um governo estadual que alguma vez neste Estado teve na sua cartilha o culto ao bem-estar social. É inadmissível, pelas razões das quais tive conhecimento, deslocar essa Escola, que, paradoxalmente, foi inaugurada por um governo da direita explícita naquele bairro nobre de Salvador e, hoje, um governo que deveria prestar atenção à majoritária massa pobre da cidade e à sua educação, muito além das políticas sociais que todo governo promove em maior ou menos medida  segundo os interesses do Banco Mundial  promove um absurdo desses para beneficiar projetos do mercado imobiliário. Soube, sim, da ocupação, foi bastante divulgado e seria um episódio digno de ser documentado, além das matérias jornalísticas que fizeram a cobertura. Na Itália, precisamente no bairro mais famoso de Roma, o Trastevere, tive a oportunidade, em 2014, de presenciar o trabalho de ocupação feito por estudantes universitários num cinema, o histórico Cinema América, que foi fechado e seria entregue à voracidade imobiliária. Até hoje os estudantes, com atividades políticas e culturais, mantém a ocupação, detendo os empresários, que, com certeza, não são de esquerda. Aqui no Brasil, inversamente, do que se trata é de deter um governo de centro esquerda! Inadmissível. Foi tema de um conto do meu livro O Milagre da luz e outros contos em Trastevere. Disto, sim, eu gostaria de fazer um documentário.
Desde: Para você, um governo que fecha escolas deixa o pior legado para a sociedade? Por quê?
CP: Nem só para a sociedade, esse legado, esse peso é principalmente para aqueles ainda entusiastas, ainda esperançosos, estoicos membros do partido do governo. A maior vergonha é para eles.
Desde: Em 2018, você fez um documentário sobre a morte de Moa do Katendê; e em 2019, sobre a tragédia de Brumadinho. Como foi registrar essas duas tristes páginas da história recente do Brasil? Por quê?
CP: Recebi um convite de grupos de capoeira da Bahia, no dia seguinte do assassinato de Mestre Moa, para realizar um documentário sobre esse triste episódio e, em seguida, emprestei a minha solidariedade e convidei um sindicato que aportou toda a ajuda desinteressadamente, colocando à disposição suas estruturas, o SINDAE (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente no Estado da Bahia). Casualmente, estava em Salvador, digo casualmente porque ultimamente passo pouco tempo durante o ano na Bahia. Valeu muito pela aproximação de um universo especifico, o da capoeira, e o dos valores do mundo afro-baiano, do qual andava bastante distante desde os meus primeiros tempos na Bahia, quando treinei capoeira no forte de Santo Antônio com o mestre João Pequeno e as adaptações teatrais que fiz do Mestre Didi, naquelas minhas primeiras incursões no labirinto baiano. Conhecer a família e os afetos do Mestre Moa, a quem nunca conheci pessoalmente, foi um imenso prazer e um aprendizado imenso. O documentário se espalhou rapidamente pelo Brasil através da web e até ganhou legendagem em espanhol. Pouco mais de um ano depois, aconteceu o crime da empresa Vale, em Brumadinho. O documentário Lama, o crime Vale no Brasil, a tragédia de Brumadinho está numa plataforma virtual chamada Libreflix. Eu estava em Sergipe, em janeiro de 2019, realizando um outro trabalho, sobre o educador Manoel Bomfim, e fui para as Minas Gerais, estado onde já tinha realizado outros trabalhos, pelo qual não foi difícil estruturar a produção do documentário. Montei uma equipe pequena e colocamos mãos à obra até a sua estreia, no início de abril do ano passado. Foi outro assassinato, este coletivo, com quase 300 mortos e desaparecidos, e pelos motivos mais capitalistas possíveis, o pouco interesse pela vida humana.
Desde: Che e Marighella, pelo visto, são ídolos para você. O que chama tanto a sua atenção na história dos dois? Por quê?
CP: Não são ídolos, são muito mais do que isso, são companheiros de viagem, assim como alguns outros personagens da História, guerrilheiros, comandantes, subcomandantes, exploradores, escritores, pintores, cineastas, poetas ….Ambos, Ernesto e Carlos, são personagens da nossa História popular continental que respeito como poucos, pela lucidez a prova de qualquer acomodação política, pela coragem, pelo desprendimento, pela entrega das suas vidas como exemplo, pela ética, por não se apegarem a nenhum poder, por seguirem o curso certo que o destino, sempre variável, lhes ofereceu. Do primeiro, Che, conheci seus percursos nas minhas viagens iniciais latino-americanas; do segundo, Mariga, tive as primeiras informações a respeito no Brasil. Quando se aproximava o centenário de nascimento de Carlos Marighella, em 2011, houve um caudal imenso de informações a respeito e fiz a minha contribuição com o documentário Carlos Marighella, quem samba fica, quem não samba vai embora (se encontra numa plataforma virtual chamada Bombozila), cuja produção me colocou em contato com pessoas fantásticas, ligadas a ele e à Historia desse pais. E, talvez por isso, a possibilidade de conhecer todos esses universos ligados à construção de cada filme, seja o melhor desta profissão.
Desde: Você é multifacetado, tem experiência em teatro, cinema e literatura. Contudo, e é uma pergunta filosófica, o que você mais gosta de ser?

CP: Nem sei se gosto de mim, mas tento ser apenas eu, o que, posso afirmar, não é nada fácil sendo, como você diz, tão multifacetado.

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Antonio Olavo: “O documentário é a forma, na linguagem do cinema, que mais se aproxima da verdade”

Em entrevista para o DesdeAntonio Olavo fala de carreira, violência racista e políticas públicas para o audiovisual

Antonio Olavo: cineasta, documentarista, roteirista, diretor e escritor. Foto: Raulino Júnior

Por Raulino Júnior

Entrevistar Antonio Olavo é se conectar de forma potente com a ancestralidade negra que resistiu de todas as maneiras à opressão e contribuiu para formar a história e cultura do povo brasileiro. É sentir-se diante de um mestre griô, aquele que transmite conhecimentos através de suas vivências e de saberes que acumulou durante a vida. Aos 64 anos, 45 deles dedicados ao cinema, Antonio Olavo dos Santos Filho, como é registrado, teve o estímulo para se tornar cineasta através de um curso livre de cinema que frequentou na juventude e pelo fato de ter vivenciado, na mesma época, a dinâmica de um set de filmagem profissional, ao participar da produção dos filmes Dona Flor e Seus Dois Maridos (Bruno Barreto, 1976) e Os Pastores da Noite (Marcel Camus, 1979). Nesta entrevista que concedeu ao Sem Edição, integrando a série Cinema Falado, que comemora os nove anos do Desde, o baiano de Jequié mostra por que é um dos documentaristas mais importantes do país. Pesquisador contumaz dos temas a que se dedica, nenhuma obra de Olavo fica na superficialidade. Tudo tem um quê e um porquê. Em 1992, em parceria com Josias Santos, fundou a PORTFOLIUM Laboratório de Imagens, produtora de cinema e, eventualmente, editora. Ao longo da carreira como documentarista, produziu cinco longas: Paixão e Guerra no Sertão de Canudos (1993), Quilombos da Bahia (2004), Abdias Nascimento – Memória Negra (2008), A Cor do Trabalho (2014) e Revolta dos Búzios (2018). Além de Travessias Negras, série exibida na TV Educativa da Bahia (TVE Bahia), em 2017. Atualmente, está finalizando o documentário Ave Canudos! Os que sobreviveram te saúdam. Preocupado em valorizar a memória social, especificamente a do povo negro, Olavo é categórico: “A história da escravidão já nos foi contada. Eu já ouvi demais essa história […]. Eu quero contar a história da resistência à escravidão, que essa existiu, foi grandiosa, foi digna, foi maravilhosa, foi emocionante, foi encantadora […]. Onde há a opressão, há resistência à opressão. Onde houve a escravidão, houve a luta por liberdade. O tempo inteiro”. Assista, nos vídeos a seguir, à entrevista com Antonio Olavo.
Sem Edição| Antonio Olavo ⇨ Série “Cinema Falado” – Parte 1

Na primeira parte da entrevista, Antonio Olavo fala sobre sua vinda de Jequié para Salvador, no final de 1973. Na capital, ingressou na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde cursou Geologia. Nessa mesma época, fez um curso livre de cinema, ministrado por Guido Araújo. Assim, nasceu a vontade de ser cineasta. Através de Guido, teve a oportunidade de participar das produções dos filmes Dona Flor e Seus Dois Maridos e Os Pastores da Noite. Era o responsável pela seleção dos figurantes. No bate-papo, Olavo fala ainda sobre as suas referências no cinema documental, citando Eduardo Coutinho e Silvio Tendler, reflete sobre a falta de crítica cultural nos periódicos, explica o processo de produção dos documentários Paixão e Guerra no Sertão de Canudos e Quilombos da Bahia. No final da entrevista, o documentarista opina sobre racismo e a omissão do Estado: “Essas práticas de violências contra o povo negro, particularmente, é coerente com a estrutura que é montada no Estado já de muito antes e que ainda hoje se perpetua”.

Sem Edição| Antonio Olavo ⇨  Série “Cinema Falado” – Parte 2 

Na segunda parte, Antonio Olavo fala sobre os documentários Abdias Nascimento: Memória NegraA Cor do Trabalho e Revolta dos Búzios. Sobre Abdias, conta como o conheceu e o que o intelectual lhe disse no dia do lançamento do filme, num Teatro Castro Alves completamente lotado, em 2008. O cineasta conta de onde vem a sua predileção em produzir documentários, reflete sobre a Lei de Incentivo à Cultura, analisa as práticas do atual governo no âmbito da cultura e opina sobre as políticas públicas para o audiovisual na Bahia: “Muito aquém do que poderia, muito aquém do que deveria, muito aquém do necessário”.

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Shelmer Gvar: “É necessário divulgar melhor cada produto do audiovisual brasileiro para o próprio país”

Cineasta mineiro abre série de entrevistas Cinema Falado, que comemora os nove anos do Desde

Shelmer Gvar: dramaturgo, ator, cineasta, roteirista, produtor e gestor cultural. Foto: Bruno Rezende.

Por Raulino Júnior

Filho do advogado Shelmer José Queiroga e da reikiana Marília Queiroga, o mineiroShelmer Gvarteve contato com a arte ainda na infância, através de seu avô. “Dentre muitas atividades, ele era bonequeiro. Tenho lembranças dele fazendo teatro de bonecos somente para mim, na sala da minha casa, até os meus 6 anos de idade, antes dele falecer”. De lá pra cá, o menino se tornou um homem totalmente envolto em experiências artísticas. Multifacetado, o belo-horizontino começou a carreira artística como dramaturgo e, logo depois, passou a atuar (no teatro, na TV e no cinema). Nessa época, era Shelmer de Queiroga. Hoje, Shelmer, que adotou o “Gvar” no nome artístico, acumula as funções de diretor de cinema, roteirista, produtor e gestor cultural. Em 2010, fundou a produtora Operários da Alma, que tem o audiovisual como principal ramo de atuação. Nela, entre outras coisas, já produziu os documentários Além dos Sentidos e A Peleja da Essência (ambos de 2016). Passageiro, filme de ficção que está em fase de pós-produção e cujo título não é definitivo, tem previsão de estreia para o segundo semestre deste ano. Nesta entrevista, feita por e-mail e que abre a série Cinema Falado, em comemoração pelos nove anos do Desde, o cineasta fala sobre o trabalho que desenvolve na produtora, reflete sobre a Lei de Incentivo à Cultura e opina sobre o papel do cinema: “Retratar a realidade de uma sociedade”.
Desde que eu me entendo por gente: Quando nasceu a paixão pelo cinema?
Shelmer Gvar: Primeiramente, através dos filmes que eu assistia. Mas o fator determinante para eu entrar no setor audiovisual aconteceu quando o saudoso diretor Geraldo Santos Pereira foi assistir a uma peça teatral que eu escrevi e eu também atuava, intitulada “Bordel de Véu”. Me lembro dele entrando no camarim, elogiando muito o espetáculo e dizendo que enxergou em mim um ator de cinema. Aí ele me convidou para participar do próximo filme dele, “O Aleijadinho”. Achei que eu iria receber um papel secundário, mas já no meu primeiro filme eu tive a chance de fazer um personagem antagonista do Aleijadinho e muito interessante. O filme ainda dividiu o prêmio de melhor filme com o Bicho de Sete Cabeças, no festival de Recife, esteve em cartaz na Europa e participou de outros festivais.
Desde: Onde se formou artisticamente?
SG: A minha formação aconteceu, de fato, na prática diária com a arte. Porém, mestres e os estudos foram fundamentais para minha arte. Eu posso, primeiramente, citar o saudoso e grande amigo Jarbas Medeiros. Todos o conhecem como um dos grandes cientistas políticos, mestre de ciência política na UFMG, colunista da revista Carta Capital, porém ele tem vários quadros pintados, livros de poemas lançados e uma passagem muito importante como crítico de cinema na França. Ele apontou para mim vários filmes e dramaturgias que eu deveria consumir. Ele lia todos os meus textos e apontava vários caminhos para melhorar a minha arte. Também não posso deixar de citar o Ronaldo Boschi com seu núcleo de estudo sobre o método Stanislavsky. Através dos vários espetáculos de pesquisa sobre o dramaturgo russo Anton Tchekhov, aprofundamos muito na arte da interpretação. Preciso citar Marcos Vogel, que me convidou para participar do Núcleo de Estudos Shakespeariano. Esse período trouxe para mim um amplo significado da arte no sentido atemporal. Todas as montagens dos textos de Shakespeare surgiam após um grande período de estudos do teatro medieval, contemporâneo e reflexão sobre o dever da arte. Também preciso citar o professor Valentin Teplyakov, da Academia Russa de Artes, de Moscou, e um dos mais reconhecidos estudiosos e seguidores de Stanislavski (The Fundamentals of Stanislavski’s Method); e Jonas Bloch, que além de ser o grande ator que todos conhecem, é uma grande professor. Ambos tiveram uma passagem de extrema importância na minha formação. Falar de formação artística, para mim, não é citar um lugar em que se ganha um diploma e sim citar inúmeros locais e pessoas que passaram por minha vida.
Desde: Há dez anos, você fundou a produtora Operários da Alma. Quais mudanças percebeu no mercado cultural de lá pra cá?
SG: A prática melhorou muito o fazer cultural de todos. Os projetos são melhor elaborados, vários gestores culturais trouxeram os conceitos da economia criativa para gerir atividades mais lucrativas e que atendam demandas claras da cultura nas suas cidades. Hoje, é comprovado que a cultura no Brasil tem grande peso econômico. A economia criativa é responsável por injetar R$ 171 bilhões na economia brasileira.
Desde: A Operários da Alma busca sempre realizar projetos culturais voltados para a inclusão social. De onde vem essa preocupação?
SG: A produtora tem duas vertentes: uma é essa que você citou e a outra é trabalhar com projetos com pesquisa artística e, nesse caso, não necessariamente vai trabalhar com inclusão social. A inclusão social surgiu através de uma série de acontecimentos na minha vida. Acredito que tudo começou quando atendi a um telefonema da Magdalena Rodrigues (presidente do Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado de Minas Gerais – SATED Minas), dizendo que gostaria que eu conhecesse um grupo de cegos que precisava de um professor para montar um espetáculo. Relatei o meu receio em trabalhar com pessoas com deficiência visual, mas, a princípio, eles falaram que precisavam de um professor/diretor paciente e que gostasse de pesquisar. Por isso, estavam me convidado para trabalhar com eles. Propus duas semanas de experiência para que pudéssemos sentir como seria trabalharmos juntos, mas, para minha surpresa, foi ótimo! Depois desse dia, eu passei a entender cada vez mais afundo sobre a importância da inclusão social na cultura desse país e tudo aconteceu naturalmente.
Desde: Embora trabalhe também com outros setores culturais, o principal campo de atuação de sua produtora é o audiovisual. Na sua opinião, o que falta ao audiovisual brasileiro?
SG: Já faz tempo que audiovisual brasileiro conquista os maiores festivais internacionais do mundo. Recentemente, Bacurau Vida Invisível ganharam dois dos principais prêmios de CannesPacarrete foi o grande vencedor do Los Angeles Brazilian Film Festival – LABRFF. Antes, teve AquariusGabriel e a MontanhaQue Horas Ela Volta?Hoje Eu Quero Voltar SozinhoCinema, Aspirinas e Urubus. Isso para não citar vários outros filmes premiados em SundaceBerlinaleTorontoetc. Saindo do cinema e indo para a obra seriada, a Netflix quer investir 350 milhões de reais em conteúdo brasileiro. A Disney e a Amazon estão vindo para o mercado brasileiro. Fica claro, mesmo sabendo que é importante melhorarmos sempre, que a falta do audiovisual brasileiro não está nos artistas, técnicos e a mão de obra. Então, sobra para o reconhecimento de uma boa parte do público e do governo atual. Acredito que é necessário divulgar melhor cada produto do audiovisual brasileiro para o próprio país. Sem essa divulgação, como as pessoas vão perceber a importância desses filmes? E essa falta de divulgação impacta diretamente no tempo que um filme brasileiro fica em cartaz no cinema e, consequentemente, afeta no planejamento de lançamento. Poucos filmes brasileiros reconhecidos lá fora conseguem ter cauda longa no mercado daqui. Isso precisa ser revisto.
Desde: E o audiovisual de Minas? Quais são as principais demandas?
SG: Recentemente, foi aprovada uma lei de fomento do audiovisual no Estado de Minas Gerais. Temos pessoas trabalhando muito em Minas para mostrar a importância do audiovisual no Estado e o setor vem sendo apontado como um dos mais promissores da cultura em Minas Gerais. Acredito que essa ação vai melhorar muito algumas demandas, como a produção, a exibição, o público etc. Mas agora é ajustar algumas questões, trabalhar e aguardar para entender quais impactos teremos no setor.
Desde: 2019 não foi um ano fácil para o setor cultural, que sofreu com censura e desmantelamentos. Quais, na sua opinião, são as perspectivas para a área até 2022, quando encerra a gestão do presidente Jair Bolsonaro?
SG: A cultura é a identidade de um povo e vital para uma sociedade. Acho que é tão notório isso, que o melhor a se fazer é citar uma frase de Mario Quintana“Eles passarão… Eu passarinho”.
Desde: O cinema, inclusive, foi muito atacado pelo atual chefe do Executivo federal. Como o meio lidou com esses ataques?
SG: Também houve ataques na época do Collor sobre a Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME). A ANCINE (Agência Nacional do Cinema) surgiu no governo do Fernando Henrique Cardoso e hoje sofre ameaças parecidas. Mas, dessa vez, o setor teve tempo de mostrar sua importância, inclusive na economia brasileira. Então, está claro que a ANCINE deve permanecer e corrigir algumas ações no setor administrativo e nunca na seleção de filmes, pois nesse ponto a ANCINE sempre foi democrática e deve continuar assim. Enquanto isso, o setor vem criando novas parcerias, vem surgindo novas coproduções. A união de produtoras as fortaleceu e isso é um ponto muito positivo no setor.

Shelmer Gvar: “Aqui existe muita desinformação”, ao falar sobre as críticas à Lei de Incentivo à Cultura. Foto: Bruno Rezende.

Desde: Qual é a função do cinema na sociedade atual?
SG: A função do cinema atual é a mesma que sempre será: retratar a realidade de uma sociedade, questionar caminhos da humanidade, provocar reflexões de diversas naturezas, emocionar e entreter.
Desde: Se o Brasil atual fosse um filme, de qual gênero seria? Por quê? 
SG: Dizer um único gênero para um país com a enorme pluralidade cultural que temos é uma tarefa impossível. Lembra das locadoras de vídeos? Lá, os filmes eram divididos por gêneros. Eu diria que o Brasil é uma locadora de filmes inteira.
Desde: O seu primeiro documentário, Além dos Sentidos, aborda a realidade de algumas pessoas surdas. Qual foi a motivação para produzi-lo?
SG: Eu fiz alguns trabalhos como professor de interpretação cênica para pessoas com deficiência visual junto com a fonoaudióloga Camila Rezende. A Camila tem uma linha de pesquisa na saúde auditiva. A motivação foi realizar um projeto que desse a continuidade da inclusão social em uma área que a produtora ainda não tinha atuado, que é a deficiência auditiva. Também ter a Camila na pesquisa do documentário me motivou muito. Ela que trouxe para o documentário vários contatos de grande relevância, como, por exemplo, Neto Oliveira, que tem forte representação na saúde auditiva de Minas Gerais e o CEMEAR, que é referência na reabilitação auditiva. Buscamos também as comunidades de pessoas surdas. Deu muito certo, tanto que o filme (que contém Libras) foi lançado no Cine Humberto Mauro com uma quantidade tão elevada de público que o Palácio das Artes foi obrigado a abrir uma segunda sessão lotada. Desse público, uma grande parte era de pessoas com deficiência auditiva, que nunca tinha pisado no cinema.
Desde: O seu olhar para os artistas de rua mudou após produzir o documentário A Peleja da Essência ou você já tinha um olhar atencioso para eles?
SG: Eu já tinha um olhar muito atencioso para eles. A arte de rua existe desde o princípio da arte no mundo. Particularmente, no Centro de Pesquisa Shakespeariano, estudei muito sobre a Commedia dell’Arte e foi inevitável a comparação daqueles artistas medievais com a arte de rua de hoje. Eu sempre me acostumei a enxergar a arte de rua como uma pequena performance que carrega a essência desse teatro popular. Engraçado que muitas vezes eu até identificava em alguns artistas de rua atuais os arquétipos medievais, como o BrighellaPantaloneArlecchino etc. Quando escolhi os artistas que participariam do documentário, o principal critério era que eles tivessem uma linha de pesquisa artística e foi o que eu mais encontrei. O artista de rua de verdade é aquele que se aprofunda numa pesquisa popular, aprimora sua técnica e está sempre se reinventando.
Desde: O seu mais novo filme, Passageiro, que, de acordo com o site da Operários da Alma, está em fase de finalização, trata das passagens (mudanças) na vida de nove personagens. Qual foi a passagem mais significativa da sua vida? Por quê?
SG: Eu poderia citar tantas. Já que você citou o filme, que, por sinal, o título ainda não é definitivo, vou eleger a passagem desses alunos/atores/amigos que encontrei na minha vida. Sobretudo, a Bárbara LemosGeovane CarvalhoGracielle PradoFabiano MesquitaKelly KoolyMarcella FreittasLuiza Uckermann e o Robson Wallace (Mutante). Nossa pesquisa foi justamente a passagem. Tivemos alguns exercícios cênicos muito afetivos e todas as passagens deles foram as minhas. Hoje, cada um seguirá seu caminho e a sua passagem. O tempo de três anos que convivemos será marcado para sempre. O filme é o fruto disso tudo e vai eternizar esse momento. Está aí uma bonita passagem da minha vida.
Desde: A Lei de Incentivo à Cultura (antiga “Lei Rouanet”) passou por mudanças no primeiro ano da gestão de Bolsonaro. Antes disso, o instrumento de fomento à cultura já recebia críticas de artistas e produtores culturais. Qual análise você faz disso tudo?
SG: Primeiramente, é necessário dizer que em vários países existem as leis culturais, inclusive nos Estados Unidos e Europa. Aqui existe muita desinformação. Para começar, as críticas que você cita dos artistas e produtores não são as mesmas do governo. Pelo contrário. É o oposto. O setor da cultura pede melhoria na distribuição do incentivo e o governo questionava a existência da Lei. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas apontou a Lei Rouanet com um retorno financeiro 59% maior que o valor financiado pelo governo. Isso mostra um impacto econômico altamente positivo para o país. Acredito que foram esses dados e outras informações que fizeram o governo recuar sobre a ideia de acabar com a Lei. Tanto que eles decidiram mudar o nome da Lei, buscar estudar melhor a distribuição e manter o incentivo. Outra desinformação muito grande está no público que acha que o governo sai dando dinheiro para artista. Não é assim. Após a aprovação do projeto no governo, são os empresários que decidem sobre o incentivo através de um repasse do dinheiro que vem de uma pequena porcentagem do Imposto de Renda, que a empresa já teria que pagar ao governo. O montante do incentivo do governo é irrisório comparado com outros setores do Brasil. A Cultura custa 0,66% dos 100% dos gastos do governo.
Desde: Você é multifacetado, tem experiência em teatro, cinema e TV. Contudo, e é uma pergunta filosófica, o que você mais gosta de ser?

SG: Filosoficamente falando, eu gosto de ser eu na arte dos encontros que a vida me proporciona. Esse caminho me inspira e me transforma no dia a dia.

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#NoveAnosDoDesde, Cinema Falado, Cultura, Jornalismo Cultural

Desde estreia série “Cinema Falado” para comemorar nove anos no ar

Série de entrevistas com cineastas discute produção audiovisual no Brasil

Cinema Falado: o cinema por quem sabe e faz. Imagem: adaptação de layout do Canva feita por Raulino Júnior.

Por Raulino Júnior

No dia 1º de janeiro, o Desde completou nove anos em atividade. Na ocasião, publicamos um texto falando brevemente sobre os caminhos do blog até aqui e sobre o que preparamos para comemorar todo esse tempo de vida. O nosso planejamento inicial era fazer um série de reportagens intitulada Eu sou Foca!, para contar histórias de focas (jornalistas em início de carreira) que fazem o jornalismo acontecer Brasil afora. O objetivo era encontrar estudantes com iniciativas interessantes na área do jornalismo. Queríamos mostrar como o trabalho do foca era importante para transformar a realidade na qual ele estava inserido e a sociedade como um todo. Contudo, não não obtivemos inscrições, mesmo divulgando a proposta através das redes sociais digitais e de inúmeros e-mails enviados para universidades de todo o país. O jeito foi mudar de estratégia. Só não podíamos deixar de comemorar os nossos nove anos em atividade, não é? O jornalismo lida com o imprevisível todos os dias. Faz parte do ofício. Pensando nisso, para comemorar os nove anos do blog, decidimos falar sobre um tema importante para a nossa cultura e que, em 2019, foi muito atacado pelo atual chefe do nosso Executivo federal: o cinema. Assim, nasceu a ideia da série Cinema Falado, que vai trazer entrevistas com cineastas brasileiros a fim de refletir sobre o papel do cinema na sociedade, leis de incentivo e sobre o que está por vir no campo do audiovisual.

Cinema Falado

O cinema é considerado uma arte total, síntese de todas as outras artes. Essa ideia remonta lá de 1911 e partiu do crítico de cinema Ricciotto Canudo. Em 1923, ele lançou o Manifesto das Sete Artes, no qual incluía o cinema no rol das Belas Artes (junto com música, pintura, escultura, arquitetura, poesia e dança). Por isso, a arte de contar história na telona também é conhecida como Sétima Arte. O Desde vai se aproximar um pouquinho dela com a série Cinema Falado. Vamos publicar cinco grandes entrevistas com cineastas que falarão sobre os seus respectivos trabalhos, a importância do cinema para a cultura, os desafios de produzir audiovisual no Brasil e muito mais. A nossa sessão vai começar neste domingo e você é o nosso convidado. Seja bem-vindo!

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