Carlos Jorge Pronzato, ou simplesmente
Carlos Pronzato, se apaixonou por cinema acompanhando o trabalho de seu pai,
Victor Pronzato, que foi músico, compositor, dramaturgo e roteirista de cinema e TV.
Victor Proncet (nome artístico também utilizado pelo pai) foi um expoente da cultura da Argentina. Ele transformou um de seus contos num roteiro que deu origem a um dos filmes de ficção política mais importantes do continente:
Los Traidores (dirigido por
Raymundo Gleyzer). “Meu pai sempre foi e é uma inspiração fundamental no meu trabalho e na minha vida, principalmente na atitude e compromisso ético diante das questões do quotidiano”, declara. O pai faleceu em 2009 e a mãe,
Irma Haydée, artista plástica e fotógrafa, em 1993. Ambos deixaram o legado artístico para Pronzato, que é escritor, dramaturgo e cineasta. Entre curtas e longas, alguns de ficção e experimentais, o documentarista tem cerca de 80 filmes, que estão catalogados no site
La Mestiza Audiovisual. “La Mestiza surge no início dos anos 2000 e é apenas um nome de fantasia de algo muito concreto, que é essa penca de filmes produzidos ao longo dos anos, mas não existe como empresa ou algo que se assemelhe”, explica. Da penca de filmes citada por ele, estão na lista os documentários
Maio Baiano (2001),
A Revolta do Buzu (2003),
A Rebelião dos Pinguins (2007),
Che 80: aniversário de nascimento de Ernesto Che Guevara (2008),
Carlos Marighella: quem samba fica, quem não samba via embora (2011),
Copa do Mundo Fifa 2014: sem baianas de acarajé? (2013),
Por uma vida sem catracas: Movimento Passe Livre – São Paulo (2014),
A partir de agora: as jornadas de junho no Brasil (2014),
Forrobodó: uma história de São João na Bahia(2015),
Acabou a paz! Isto aqui vai virar o Chile! Escolas Ocupadas em São Paulo (2016),
A Escola Toma Partido: uma resposta ao projeto de lei Escola Sem Partido (2016),
Mestre Moa do Katendê: a primeira vítima (2018) e
Lama: o crime vale no Brasil – A tragédia de Brumadinho (2019), só para citar alguns. Argentino por natureza e brasileiro de coração, Carlos Pronzato radicou-se no Brasil em 1989. Chegou por aqui, mais especificamente em Salvador, aos 29 anos. Hoje, com 60, circula no país e no exterior para divulgar e produzir conteúdos para contar as suas histórias, sempre com o olhar de cineasta militante. A empreitada mais recente tem como objetivo documentar a atual situação social e política do Chile. Por isso, já está em terras chilenas, fazendo a pré-produção de
Piñera, a Guerra contra o Chile, provável nome do documentário. Nesta entrevista, feita por e-mail e que integra a série
Cinema Falado, que comemora os nove anos do
Desde, Pronzato fala sobre a formação em direção teatral, analisa o cinema brasileiro e argentino, opina sobre o movimento estudantil dos dias de hoje, faz críticas ao atual governo do Brasil, reflete sobre a própria prática profissional e sobre alguns de seus documentários e fala de militância: “Sou um cineasta militante pela perseverança nos temas e numa postura política firme desde o início, mantendo uma independência total no que diz respeito aos parcos recursos de produção, vindos exclusivamente do movimento social, sejam organizações ou pessoas físicas”.
Desde que eu me entendo por gente: O seu contato com a arte se deu dentro de casa, já que os seus pais são artistas. A paixão pelo cinema nasceu acompanhando o seu pai. Ele também trabalhava mais com documentários? E por que a sua predileção por esse gênero?
Carlos Pronzato: Acompanhava meu pai nos laboratórios da indústria cinematográfica argentina, na década de 70, quando ia colocar as trilhas nos filmes e nos ensaios de suas peças teatrais. Depois, ajudei nas adaptações de romances da literatura universal para programas televisivos que ele escrevia. Havia uma belíssima e nutrida biblioteca em casa que foi a fonte das minhas atividades futuras no cinema, na literatura e até na política, não institucional, é claro. Meu pai trabalhou em alguns documentários como roteirista, entre eles, um muito conhecido na área social, também com Raymundo Gleyzer como diretor,
La Tierra Quema, gravado em Pernambuco, em 1963. Compôs a música de muitos filmes e outros tantos roteiros de cinema e TV. A minha predileção pelo gênero documentário vem das minhas viagens de carona por toda a América Latina durante quase toda a década de 80 e um gosto muito especial pela História, e especificamente pela História do nosso povo latino-americano, e a possibilidade de contribuir com um olhar subjetivo e com propostas de ação política dentro do gênero dito documental.
Desde: Entre 1989 e 1993, você estudou direção teatral na UFBA. Por que optou por esse curso?
CP: Optei pelo curso porque era o que já tinha iniciado de forma prática na Argentina, no início da década de 80, antes de viajar para me instalar no México, onde fiquei quase um ano. Foi a partir dessa experiência e aventura mexicana que iniciei uma longa viagem, trabalhando em diversos ofícios pelo continente, que finalizou no Brasil, em São Salvador da Bahia, no fim da década, onde cursei o bacharelado em Artes Cênicas, retomando minhas atividades e estudos teatrais, montando muitas peças em paralelo ao curso. Na adolescência, era um apaixonado pela leitura de peças teatrais, que depois comparava com as montagens, indo assistir às peças que tinha lido previamente. Aí comecei realmente a minha carreira na direção teatral, que pretendo retomar. O que não abandonei nunca é a dramaturgia, escrevendo algumas peças até hoje.
Desde: Além de cineasta, você é escritor e dramaturgo. Como cada atividade dessa contribui para o desenvolvimento de todas elas?
CP: Acho que cada uma dessas atividades artísticas tem sua dinâmica própria. Por exemplo, a literatura de ficção e a escrita teatral precisam de uma concentração extrema, no meu caso. Por isso, essas obras surgem em lapsos relativamente esparsos. Já a poesia acompanha a realização dos documentários, os temas candentes abordados neles vão influenciando a escrita, inclusive temas históricos encontram inspiração na escrita poética, como nos
livros Poemas sem terra,
Poesias contra o Império,
Che, um poema guerrilheiro,
Poesias sem licença para Carlos Marighella,
Bolívia Poema Rebelde,
Alguma poesia para Brumadinho etc. A maioria dos meus livros publicados são, justamente, de poesia; já de contos e crônicas são apenas três e alguns de teatro e infantis.
Desde: Você nasceu na Argentina e se radicou no Brasil a partir de 1989. Pensando no cinema, quais as diferenças e semelhanças dessa arte nesses dois países sul-americanos?
CP: Seria muito longo enumerar coincidências ou diferenças. Num sentido amplo, as duas cinematografias compõem o campo do antigamente denominado Cinema do Terceiro Mundo, que era uma acepção ou um rótulo estritamente político, que ao longo do tempo foi perdendo as suas caraterísticas essenciais, acompanhando o processo político mundial. Diretores como Glauber Rocha foram ícones de um tempo épico e influenciariam o cinema de vários cantos do mundo. Argentina não teve um vulcão glauberiano na sua historia da sétima arte, embora potente a nível do continente de fala hispana, o que lhe rendeu um público diversificado e massivo para poder construir uma indústria nos anos 40 e 50 do século XX, a época de ouro do cinema platino. Da mesma forma, esse auge industrial aconteceu também no Brasil, sendo que aqui o mercado era “apenas” interno, um mercado interno equivalente a vários países da região. Hoje, o Brasil, apesar de ainda não ter ganho nenhum Oscar da Academia — algo que não pode ser parâmetro para a nossa cultura —, e que a Argentina já conseguiu em duas ocasiões, hoje, digo, o Brasil é um referente cinematográfico com obras criadas não só no eixo sulino, mas também em Pernambuco, fonte de criadores e obras marcantes nos últimos tempos. Argentina, por sua parte, produz também hoje um cinema de conteúdo bem particular e caraterístico, de muita personalidade, com roteiros, elenco e direções contundentes e também no âmbito do documentário politico, um verdadeiro núcleo fundante e ativo ainda hoje da escola latino-americana de documentaristas.
Desde: Você se considera como um cineasta militante. Quais são as vantagens e desvantagens de sê-lo?
CP: Bom, em grande medida se pode dizer que sou um cineasta militante pela perseverança nos temas e numa postura política firme desde o início, mantendo uma independência total no que diz respeito aos parcos recursos de produção, vindos exclusivamente do movimento social, sejam organizações ou pessoas físicas. Digo parcos porque as solicitações de apoio para os diversos projetos são parcas também, justamente para manter o perfil de um cinema político “do Terceiro Mundo”, que nunca se vendeu ao mercado capitalista e continua nas trincheiras. As vantagens são basicamente no plano ético, já que podemos escolher os assuntos e até decidir sobre os convites, desistindo sempre, por exemplo, de se envolver em campanhas políticas, apesar do monte de dinheiro que se pode ganhar nessas farsas burguesas eleitorais. Nosso campo é outro, é o terreno da luta popular. A desvantagem é justamente sobreviver sem entrar nesse submundo.
Desde: Você considera o documentário como um instrumento de luta. De onde vem essa predileção por documentar, especificamente, manifestações e personagens ligados a combates políticos?
CP: As viagens, sempre por terra e da maneira que eu as vivi, percorrendo diversos países, em situações políticas complexas nos anos 80, quando ainda havia os confrontos bélicos na América Central, por exemplo, e também em alguns países da América do Sul, entre as guerrilhas e o terrorismo de Estado, despertou em mim o interesse pelas conjunturas da época e pelos processos históricos prévios. Assim cheguei a figuras como
Ernesto Che Guevara,
Salvador Allende,
Marighella etc. Posteriormente, passei a documentar as manifestações surgidas no seio popular, ditas “espontâneas”, principalmente manifestações não surgidas em gabinetes ou com convocatórias previamente organizadas. Primeiro, no Brasil, e depois retornei a outros países do continente, como Bolívia (
A Guerra da Água,
A Guerra do Gás etc.), Chile (
A Rebelião dos Pinguins) ou na própria Argentina dos levantes populares de dezembro de 2001 e das lutas operárias das fábricas fechadas e recuperadas pelos trabalhadores, como a Brukman (
Fábrica Brukman sob controle operário).
Desde: Na sua opinião, o que falta ao audiovisual brasileiro?
CP: Em grande medida, o audiovisual brasileiro (excetuando as comédias de apelo fácil e massivo produzidas regularmente por grandes cadeias televisivas) tem conquistado uma expressiva fatia do interesse de uma ampla gama da população, que poderia ter um grande apelo formativo político, se houvesse uma política de Estado constante, responsável e convidativa. Uma oportunidade perdida de construção popular durante os 13 anos do governo petista. O que falta ao audiovisual brasileiro, então, como a todo o cinema do continente ao sul do Rio Bravo (salvo algumas exceções, como Cuba, que tem conquistado um
ethos próprio de reivindicar sua cultura), é uma estrutura política de confrontação com o mercado capitalista audiovisual invasivo norte-americano e europeu, seja nas telonas ou no mundo digital de exibição. Uma política de Estado. Se houvesse um Estado com voz coletiva e diariamente ativa, muito além das máquinas burocráticas dos gestores das Secretarias respectivas, onde cinemas de intervenção política como o nosso não tenham que disputar verbas com o cinema comercial através de editais de cartas marcadas. Falta isso. Se você me perguntar especificamente por um cinema de combate político, uma verba fixa para trabalhar a partir do interesse social com todos os coletivos de cineastas com preocupações políticas e sociais, sem a interferência de ONGs amigas dos governantes de turno ou encomendas de próprio governo a integrantes ou simpatizantes dos partidos eventualmente no poder.
Desde: 2019 não foi um ano fácil para o setor cultural, que sofreu com censura e desmantelamentos. Quais, na sua opinião, são as perspectivas para a área até 2022, quando encerra a gestão do presidente Jair Bolsonaro?
CP: A perspectiva neste deserto cultural que foi imposto pelas milícias que ocupam atualmente o Planalto é a pior possível. Vivemos cercados de uma constelação de imbecis de toda espécie nos ministérios e repartições que se apossaram de um espaço público através de eleições fraudulentas, após colocar na cadeia o candidato opositor e ganhador natural do pleito. A perspectiva então, se não houver nalgum momento uma rebelião popular de uma contundência tal que os retire violentamente do Planalto, é de que os desmantelamentos continuarão até ficar uma paisagem tão inóspita quantos as terras onde se edificou Brasília nos anos 60. Portanto, independentemente dos processos coercitivos e desmotivadores vindos da Presidência, e as suas surrealistas Secretarias, o fundamental é produzir de qualquer maneira, sem importar esforços e sacrifícios, ignorando qualquer dependência ou tentativa de censura do poder central. Por exemplo,
o filme sobre Marighella, de
Wagner Moura, deveria ter promovido a sua estreia através de formas alternativas, driblando os obstáculos econômicos postos pela
ANCINE. Assim, para Carlos Marighella, o homem que enfrentou a ditadura civil militar da época, esta realidade de hoje cheia de milicos em postos importantes de poder, seria até piada para ele e sua organização, a
ALN (Ação Libertadora Nacional). Portanto, onde ele estiver, não deve ter gostado nada dessa claudicação, de um filme em seu nome, em tempos de “democracia”. Mas, no fundo, isso é cinema comercial, visa apenas o lucro e não a ativação de molas políticas, e não tem por que se expor como se expõe um cineasta ou uma equipe de intervenção política.
Desde: Qual é a função do cinema na sociedade atual?
CP: A sua função é a mesma de qualquer outra forma de expressão artística, submeter à opinião pública fatos, acontecimentos de todo tipo, através de elaborações estéticas de ficção ou documental, no intuito de obter um diálogo e a consequente mobilização da sociedade ou do indivíduo.
Desde: Se o Brasil atual fosse um filme, de qual gênero seria e por quê?
CP: Brasil é um filme infinito, colorido, pulsante e de todos os gêneros possíveis, por causa da composição da sua população extremamente miscigenada, étnica, social e culturalmente. Um drama em muitos sentidos, porém sempre com pitadas de comédia libertadora, parte essencial de toda revolução dinâmica e quotidiana que se preze.
Desde: Você produziu inúmeros documentários, o que fica até impossível de falar de todos numa entrevista, mas a pergunta é: quando você sente que um episódio vale a pena ser documentado? Qual é o insight?
CP: Bem, essa é a pergunta inicial e principal que todo documentarista político se faz diante de algum acontecimento. A decisão de topar a parada, ou não, vai depender de diversos fatores. Antes, não havia opção, a decisão tinha que ser imediata, já que o documentário cumpria, além da sua função histórica posterior de resgate da memória, um papel imediato, pontual e noticioso, algo que hoje é preenchido pela informação instantânea das redes sociais. Portanto, a entrada em campo era imprescindível para documentar, e o mais rápido possível editar, fazer o recorte autoral em função do material coletado e lançar o documentário… em
VHS! Era uma maneira, e ainda é em menor medida, pela existência da internet
— e a metralhadora informativa das redes e dos meios virtuais profissionais também
—, de interceder na realidade sociopolítica através dos cines debates posteriores, que ainda são o ponto alto das discussões provocadas por esse tipo de documentário. Às vezes, a gente acerta e a obra fica como uma referência obrigatória quando se abordam certos temas históricos, daí a nossa responsabilidade, principalmente quando é a única realização audiovisual sobre determinado tema.
Desde: Nunca pensou em fazer jornalismo? Por quê?
CP: O jornalismo é uma atividade intrínseca ao documentário. A gente se nutre constantemente de matérias, artigos e coberturas feitas no calor da hora, quando não nos é possível participar
in situ. Isso em referência a materiais que envolvem luta de classes e uma realidade do momento. Até nos materiais sobre episódios do passado, o jornalismo é importante pelas matérias da época, escritas e audiovisuais. Nunca pensei em fazer Jornalismo como nunca pensei em fazer Cinema nem Letras, e nem Teatro na universidade, mas quando apareceu a oportunidade das Artes Cênicas na UFBA, entrei imediatamente para exercitar o que já fazia e ter maior tempo e possibilidades de acesso à bibliografia e à prática teatral. Todas essas disciplinas, como as artes em geral, são fundamentalmente práticas e, se não há um interesse vital e uma vocação inexplicável, o melhor é se dedicar a estudos acadêmicos mais seguros. Os estudos formais nessas áreas, para mim, são apêndices importantes, mas não decisivos para exercer a profissão.