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Solange Souza Lima Moraes: “O papel do cinema também é social”

Em entrevista para o DesdeSolange Souza Lima Moraes destaca a importância dos profissionais de produção, fala de suas experiências no audiovisual e diz por que acredita na função social do cinema

Solange Souza Lima Moraes: cineasta e produtora audiovisual. Foto: Raulino Júnior

Por Raulino Júnior

Solange Souza Lima Moraes é formada em Cinema pela Universidade Federal da Bahia, produtora audiovisual com mais de 30 anos de experiência e proprietária da Araçá Filmes, que foi fundada em 1998. Solange trabalhou em importantes produções do cinema nacional, como Tieta do Agreste (Cacá Diegues, 1996), Brilhante (Conceição Senna, 2005), Estranhos (Paulo Alcântara, 2009), Jardim das Folhas Sagradas (Pola Ribeiro, 2011) e Capitães da Areia (Cecília Amado, 2011). Além disso, foi a responsável pela produção, em Salvador, do videoclipe Eles não se importam conosco (Spike Lee, 1996), de Michael Jackson. Atualmente, está prestes a lançar o curso A Engenharia da Produção no Cinema, para interessados em cinema, e os filmes A Pele Morta (Bruno Torres e Denise Moraes), Longe do Paraíso (Orlando Senna) e Nina (Paulo Alcântara). Nesta entrevista que concedeu ao Sem Edição, integrando a série Cinema Falado, que comemora os nove anos do Desde, Solange mostra a sua paixão pela sétima arte, destaca a importância dos profissionais de produção na realização de um filme, opina sobre a indústria de videoclipes, fala sobre suas experiências em atividades de gestão e afirma: “Eu trabalho com filmes que tenham um retorno reflexivo”. Assista, nos vídeos a seguir, à entrevista com Solange Souza Lima Moraes.

OBSERVAÇÃO: 1) Na apresentação de Solange e na parte final da entrevista, Raulino Júnior acrescenta um “de” que não existe ao nome da produtora. Ainda na apresentação, o jornalista fala: “…dos filmes pelos quais ela participou como produtora”. Na verdade, o correto seria: “…dos filmes dos quais ela participou como produtora”. Desde já, pedimos desculpas pelos erros; 2) Pedimos desculpas também pelos ruídos que comprometeram alguns trechos da entrevista. Foi problema de configuração da câmera. Ficaremos mais atentos nas próximas entrevistas.

Sem Edição| Solange Souza Lima Moraes ⇨ Série “Cinema Falado” – Parte 1

Na primeira parte da entrevista, Solange fala como se transformou numa produtora de cinema, diz como é ser mulher na sétima arte e conta como foi as suas experiências trabalhando na produção de filmes. Ela fala também sobre a passagem pela gestão, onde atuou em  órgãos como a Associação Baiana de Cinema e Vídeo e Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas, entre outros. Na entrevista, a produtora ainda opina sobre a Lei de Incentivo à Cultura e sobre as políticas públicas para o audiovisual.

Sem Edição| Solange Souza Lima Moraes ⇨  Série “Cinema Falado” – Parte 2 

Na segunda parte, Solange fala sobre o papel do cinema na sociedade, sobre o curso “A Engenharia da Produção no Cinema” e sobre os atuais projetos da “Araçá Filmes”.
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Canais de Solange Moraes nas redes sociais digitais:
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Carlos Pronzato: “O que falta ao audiovisual brasileiro é uma estrutura política de confrontação com o mercado capitalista audiovisual invasivo norte-americano e europeu”

Documentarista argentino radicado no Brasil fala sobre carreira, cinema, militância e movimento estudantil da atualidade, em entrevista para a série Cinema Falado, que comemora os nove anos do Desde

Carlos Pronzato: escritor, dramaturgo e cineasta. Foto: divulgação.

Por Raulino Júnior

Carlos Jorge Pronzato, ou simplesmente Carlos Pronzato, se apaixonou por cinema acompanhando o trabalho de seu pai, Victor Pronzato, que foi músico, compositor, dramaturgo e roteirista de cinema e TV. Victor Proncet (nome artístico também utilizado pelo pai) foi um expoente da cultura da Argentina. Ele transformou um de seus contos num roteiro que deu origem a um dos filmes de ficção política mais importantes do continente: Los Traidores (dirigido por Raymundo Gleyzer). “Meu pai sempre foi e é uma inspiração fundamental no meu trabalho e na minha vida, principalmente na atitude e compromisso ético diante das questões do quotidiano”, declara. O pai faleceu em 2009 e a mãe, Irma Haydée, artista plástica e fotógrafa, em 1993. Ambos deixaram o legado artístico para Pronzato, que é escritor, dramaturgo e cineasta. Entre curtas e longas, alguns de ficção e experimentais, o documentarista tem cerca de 80 filmes, que estão catalogados no site La Mestiza Audiovisual. “La Mestiza surge no início dos anos 2000 e é apenas um nome de fantasia de algo muito concreto, que é essa penca de filmes produzidos ao longo dos anos, mas não existe como empresa ou algo que se assemelhe”, explica. Da penca de filmes citada por ele, estão na lista os documentários Maio Baiano (2001), A Revolta do Buzu (2003), A Rebelião dos Pinguins (2007), Che 80: aniversário de nascimento de Ernesto Che Guevara (2008), Carlos Marighella: quem samba fica, quem não samba via embora (2011), Copa do Mundo Fifa 2014: sem baianas de acarajé? (2013), Por uma vida sem catracas: Movimento Passe Livre – São Paulo (2014), A partir de agora: as jornadas de junho no Brasil (2014), Forrobodó: uma história de São João na Bahia(2015), Acabou a paz! Isto aqui vai virar o Chile! Escolas Ocupadas em São Paulo (2016), A Escola Toma Partido: uma resposta ao projeto de lei Escola Sem Partido (2016), Mestre Moa do Katendê: a primeira vítima (2018) e Lama: o crime vale no Brasil – A tragédia de Brumadinho (2019), só para citar alguns. Argentino por natureza e brasileiro de coração, Carlos Pronzato radicou-se no Brasil em 1989. Chegou por aqui, mais especificamente em Salvador, aos 29 anos. Hoje, com 60, circula no país e no exterior para divulgar e produzir conteúdos para contar as suas histórias, sempre com o olhar de cineasta militante. A empreitada mais recente tem como objetivo documentar a atual situação social e política do Chile. Por isso, já está em terras chilenas, fazendo a pré-produção de Piñera, a Guerra contra o Chile, provável nome do documentário. Nesta entrevista, feita por e-mail e que integra a série Cinema Falado, que comemora os nove anos do Desde, Pronzato fala sobre a formação em direção teatral, analisa o cinema brasileiro e argentino, opina sobre o movimento estudantil dos dias de hoje, faz críticas ao atual governo do Brasil, reflete sobre a própria prática profissional e sobre alguns de seus documentários e fala de militância: “Sou um cineasta militante pela perseverança nos temas e numa postura política firme desde o início, mantendo uma independência total no que diz respeito aos parcos recursos de produção, vindos exclusivamente do movimento social, sejam organizações ou pessoas físicas”.
Desde que eu me entendo por gente: O seu contato com a arte se deu dentro de casa, já que os seus pais são artistas. A paixão pelo cinema nasceu acompanhando o seu pai. Ele também trabalhava mais com documentários? E por que a sua predileção por esse gênero?
Carlos Pronzato: Acompanhava meu pai nos laboratórios da indústria cinematográfica argentina, na década de 70, quando ia colocar as trilhas nos filmes e nos ensaios de suas peças teatrais. Depois, ajudei nas adaptações de romances da literatura universal para programas televisivos que ele escrevia. Havia uma belíssima e nutrida biblioteca em casa que foi a fonte das minhas atividades futuras no cinema, na literatura e até na política, não institucional, é claro. Meu pai trabalhou em alguns documentários como roteirista, entre eles, um muito conhecido na área social, também com Raymundo Gleyzer como diretor, La Tierra Quema, gravado em Pernambuco, em 1963. Compôs a música de muitos filmes e outros tantos roteiros de cinema e TV. A minha predileção pelo gênero documentário vem das minhas viagens de carona por toda a América Latina durante quase toda a década de 80 e um gosto muito especial pela História, e especificamente pela História do nosso povo latino-americano, e a possibilidade de contribuir com um olhar subjetivo e com propostas de ação política dentro do gênero dito documental.
Desde: Entre 1989 e 1993, você estudou direção teatral na UFBA. Por que optou por esse curso?
CP: Optei pelo curso porque era o que já tinha iniciado de forma prática na Argentina, no início da década de 80, antes de viajar para me instalar no México, onde fiquei quase um ano. Foi a partir dessa experiência e aventura mexicana que iniciei uma longa viagem, trabalhando em diversos ofícios pelo continente, que finalizou no Brasil, em São Salvador da Bahia, no fim da década, onde cursei o bacharelado em Artes Cênicas, retomando minhas atividades e estudos teatrais, montando muitas peças em paralelo ao curso. Na adolescência, era um apaixonado pela leitura de peças teatrais, que depois comparava com as montagens, indo assistir às peças que tinha lido previamente. Aí comecei realmente a minha carreira na direção teatral, que pretendo retomar. O que não abandonei nunca é a dramaturgia, escrevendo algumas peças até hoje.
Desde: Além de cineasta, você é escritor e dramaturgo. Como cada atividade dessa contribui para o desenvolvimento de todas elas?
CP: Acho que cada uma dessas atividades artísticas tem sua dinâmica própria. Por exemplo, a literatura de ficção e a escrita teatral precisam de uma concentração extrema, no meu caso. Por isso, essas obras surgem em lapsos relativamente esparsos. Já a poesia acompanha a realização dos documentários, os temas candentes abordados neles vão influenciando a escrita, inclusive temas históricos encontram inspiração na escrita poética, como nos livros Poemas sem terraPoesias contra o ImpérioChe, um poema guerrilheiroPoesias sem licença para Carlos MarighellaBolívia Poema RebeldeAlguma poesia para Brumadinho etc. A maioria dos meus livros publicados são, justamente, de poesia; já de contos e crônicas são apenas três e alguns de teatro e infantis.
Desde: Você nasceu na Argentina e se radicou no Brasil a partir de 1989. Pensando no cinema, quais as diferenças e semelhanças dessa arte nesses dois países sul-americanos?
CP: Seria muito longo enumerar coincidências ou diferenças. Num sentido amplo, as duas cinematografias compõem o campo do antigamente denominado Cinema do Terceiro Mundo, que era uma acepção ou um rótulo estritamente político, que ao longo do tempo foi perdendo as suas caraterísticas essenciais, acompanhando o processo político mundial. Diretores como Glauber Rocha foram ícones de um tempo épico e influenciariam o cinema de vários cantos do mundo. Argentina não teve um vulcão glauberiano na sua historia da sétima arte, embora potente a nível do continente de fala hispana, o que lhe rendeu um público diversificado e massivo para poder construir uma indústria nos anos 40 e 50 do século XX, a época de ouro do cinema platino. Da mesma forma, esse auge industrial aconteceu também no Brasil, sendo que aqui o mercado era “apenas” interno, um mercado interno equivalente a vários países da região. Hoje, o Brasil, apesar de ainda não ter ganho nenhum Oscar da Academia — algo que não pode ser parâmetro para a nossa cultura , e que a Argentina já conseguiu em duas ocasiões, hoje, digo, o Brasil é um referente cinematográfico com obras criadas não só no eixo sulino, mas também em Pernambuco, fonte de criadores e obras marcantes nos últimos tempos. Argentina, por sua parte, produz também hoje um cinema de conteúdo bem particular e caraterístico, de muita personalidade, com roteiros, elenco e direções contundentes e também no âmbito do documentário politico, um verdadeiro núcleo fundante e ativo ainda hoje da escola latino-americana de documentaristas.
Desde: Você se considera como um cineasta militante. Quais são as vantagens e desvantagens de sê-lo?
CP: Bom, em grande medida se pode dizer que sou um cineasta militante pela perseverança nos temas e numa postura política firme desde o início, mantendo uma independência total no que diz respeito aos parcos recursos de produção, vindos exclusivamente do movimento social, sejam organizações ou pessoas físicas. Digo parcos porque as solicitações de apoio para os diversos projetos são parcas também, justamente para manter o perfil de um cinema político “do Terceiro Mundo”, que nunca se vendeu ao mercado capitalista e continua nas trincheiras. As vantagens são basicamente no plano ético, já que podemos escolher os assuntos e até decidir sobre os convites, desistindo sempre, por exemplo, de se envolver em campanhas políticas, apesar do monte de dinheiro que se pode ganhar nessas farsas burguesas eleitorais. Nosso campo é outro, é o terreno da luta popular. A desvantagem é justamente sobreviver sem entrar nesse submundo.
Desde: Você considera o documentário como um instrumento de luta. De onde vem essa predileção por documentar, especificamente, manifestações e personagens ligados a combates políticos?
CP: As viagens, sempre por terra e da maneira que eu as vivi, percorrendo diversos países, em situações políticas complexas nos anos 80, quando ainda havia os confrontos bélicos na América Central, por exemplo, e também em alguns países da América do Sul, entre as guerrilhas e o terrorismo de Estado, despertou em mim o interesse pelas conjunturas da época e pelos processos históricos prévios. Assim cheguei a figuras como Ernesto Che GuevaraSalvador AllendeMarighella etc. Posteriormente, passei a documentar as manifestações surgidas no seio popular, ditas “espontâneas”, principalmente manifestações não surgidas em gabinetes ou com convocatórias previamente organizadas. Primeiro, no Brasil, e depois retornei a outros países do continente, como Bolívia (A Guerra da ÁguaA Guerra do Gás etc.), Chile (A Rebelião dos Pinguins) ou na própria Argentina dos levantes populares de dezembro de 2001 e das lutas operárias das fábricas fechadas e recuperadas pelos trabalhadores, como a Brukman (Fábrica Brukman sob controle operário).
Desde: Na sua opinião, o que falta ao audiovisual brasileiro?
CP: Em grande medida, o audiovisual brasileiro (excetuando as comédias de apelo fácil e massivo produzidas regularmente por grandes cadeias televisivas) tem conquistado uma expressiva fatia do interesse de uma ampla gama da população, que poderia ter um grande apelo formativo político, se houvesse uma política de Estado constante, responsável e convidativa. Uma oportunidade perdida de construção popular durante os 13 anos do governo petista. O que falta ao audiovisual brasileiro, então, como a todo o cinema do continente ao sul do Rio Bravo (salvo algumas exceções, como Cuba, que tem conquistado um ethos próprio de reivindicar sua cultura), é uma estrutura política de confrontação com o mercado capitalista audiovisual invasivo norte-americano e europeu, seja nas telonas ou no mundo digital de exibição. Uma política de Estado. Se houvesse um Estado com voz coletiva e diariamente ativa, muito além das máquinas burocráticas dos gestores das Secretarias respectivas, onde cinemas de intervenção política como o nosso não tenham que disputar verbas com o cinema comercial através de editais de cartas marcadas. Falta isso. Se você me perguntar especificamente por um cinema de combate político, uma verba fixa para trabalhar a partir do interesse social com todos os coletivos de cineastas com preocupações políticas e sociais, sem a interferência de ONGs amigas dos governantes de turno ou encomendas de próprio governo a integrantes ou simpatizantes dos partidos eventualmente no poder.
Desde: 2019 não foi um ano fácil para o setor cultural, que sofreu com censura e desmantelamentos. Quais, na sua opinião, são as perspectivas para a área até 2022, quando encerra a gestão do presidente Jair Bolsonaro?
CP: A perspectiva neste deserto cultural que foi imposto pelas milícias que ocupam atualmente o Planalto é a pior possível. Vivemos cercados de uma constelação de imbecis de toda espécie nos ministérios e repartições que se apossaram de um espaço público através de eleições fraudulentas, após colocar na cadeia o candidato opositor e ganhador natural do pleito. A perspectiva então, se não houver nalgum momento uma rebelião popular de uma contundência tal que os retire violentamente do Planalto, é de que os desmantelamentos continuarão até ficar uma paisagem tão inóspita quantos as terras onde se edificou Brasília nos anos 60. Portanto, independentemente dos processos coercitivos e desmotivadores vindos da Presidência, e as suas surrealistas Secretarias, o fundamental é produzir de qualquer maneira, sem importar esforços e sacrifícios, ignorando qualquer dependência ou tentativa de censura do poder central. Por exemplo, o filme sobre Marighella, de Wagner Moura, deveria ter promovido a sua estreia através de formas alternativas, driblando os obstáculos econômicos postos pela ANCINE. Assim, para Carlos Marighella, o homem que enfrentou a ditadura civil militar da época, esta realidade de hoje cheia de milicos em postos importantes de poder, seria até piada para ele e sua organização, a ALN (Ação Libertadora Nacional). Portanto, onde ele estiver, não deve ter gostado nada dessa claudicação, de um filme em seu nome, em tempos de “democracia”. Mas, no fundo, isso é cinema comercial, visa apenas o lucro e não a ativação de molas políticas, e não tem por que se expor como se expõe um cineasta ou uma equipe de intervenção política.
Desde: Qual é a função do cinema na sociedade atual?
CP: A sua função é a mesma de qualquer outra forma de expressão artística, submeter à opinião pública fatos, acontecimentos de todo tipo, através de elaborações estéticas de ficção ou documental, no intuito de obter um diálogo e a consequente mobilização da sociedade ou do indivíduo.
Desde: Se o Brasil atual fosse um filme, de qual gênero seria e por quê? 
CP: Brasil é um filme infinito, colorido, pulsante e de todos os gêneros possíveis, por causa da composição da sua população extremamente miscigenada, étnica, social e culturalmente. Um drama em muitos sentidos, porém sempre com pitadas de comédia libertadora, parte essencial de toda revolução dinâmica e quotidiana que se preze.
Desde: Você produziu inúmeros documentários, o que fica até impossível de falar de todos numa entrevista, mas a pergunta é: quando você sente que um episódio vale a pena ser documentado? Qual é o insight?
CP: Bem, essa é a pergunta inicial e principal que todo documentarista político se faz diante de algum acontecimento. A decisão de topar a parada, ou não, vai depender de diversos fatores. Antes, não havia opção, a decisão tinha que ser imediata, já que o documentário cumpria, além da sua função histórica posterior de resgate da memória, um papel imediato, pontual e noticioso, algo que hoje é preenchido pela informação instantânea das redes sociais. Portanto, a entrada em campo era imprescindível para documentar, e o mais rápido possível editar, fazer o recorte autoral em função do material coletado e lançar o documentário… em VHS! Era uma maneira, e ainda é em menor medida, pela existência da internet — e a metralhadora informativa das redes e dos meios virtuais profissionais também —, de interceder na realidade sociopolítica através dos cines debates posteriores, que ainda são o ponto alto das discussões provocadas por esse tipo de documentário. Às vezes, a gente acerta e a obra fica como uma referência obrigatória quando se abordam certos temas históricos, daí a nossa responsabilidade, principalmente quando é a única realização audiovisual sobre determinado tema.
Desde: Nunca pensou em fazer jornalismo? Por quê?
CP: O jornalismo é uma atividade intrínseca ao documentário. A gente se nutre constantemente de matérias, artigos e coberturas feitas no calor da hora, quando não nos é possível participar in situ. Isso em referência a materiais que envolvem luta de classes e uma realidade do momento. Até nos materiais sobre episódios do passado, o jornalismo é importante pelas matérias da época, escritas e audiovisuais. Nunca pensei em fazer Jornalismo como nunca pensei em fazer Cinema nem Letras, e nem Teatro na universidade, mas quando apareceu a oportunidade das Artes Cênicas na UFBA, entrei imediatamente para exercitar o que já fazia e ter maior tempo e possibilidades de acesso à bibliografia e à prática teatral. Todas essas disciplinas, como as artes em geral, são fundamentalmente práticas e, se não há um interesse vital e uma vocação inexplicável, o melhor é se dedicar a estudos acadêmicos mais seguros. Os estudos formais nessas áreas, para mim, são apêndices importantes, mas não decisivos para exercer a profissão.

Carlos Pronzato: militância através das lentes. Foto: Ícaro Juan.

Desde: O documentário A Revolta do Buzu, lançado em 2003, é usado como referência por movimentos sociais espalhados pelo Brasil. O filme foi um divisor de águas na sua carreira? Por quê?
CP: Sim, foi e é usado largamente no Brasil afora pelos movimentos de Tarifa Zero, inclusive chegando a incidir na formação política do MPL (Movimento Passe Livre), a garotada que provocou o maior levante popular do Brasil neste século, em junho de 2013. Isso é dito por eles no documentário A partir de agora: as jornadas de junho no Brasil. Foi um episódio marcante, que da Bahia se espalhou para outras capitais, formando muitos militantes e provocando grandes manifestações pelo passe livre. No sentido da difusão e popularidade do meu trabalho, acho que foi, sim, um marco positivo nos âmbitos estudantil e universitário; mas, ao mesmo tempo que é uma carta de apresentação, inclusive em manifestações para ter livre trânsito entre a militância quando a desconheço, foi um rótulo que até hoje é difícil de descolar da minha câmera.
Desde: Além de terem o movimento estudantil como referência, o que mais você acha que tem em comum entre os documentários A Revolta do BuzuAcabou a paz! Isto aqui vai virar o ChilePor uma vida sem catracas e A partir de agora: as jornadas de junho no Brasil? Por quê?
CP: Todos estão intimamente ligados, nem só por terem todos o mesmo diretor e a mesma proposta editorial, senão pela linha condutora, inclusive cronológica, dos acontecimentos através do tempo. Mas o filme que mais influenciou as ocupações de escolas em São Paulo, em 2016, foi o documentário A Rebelião dos Pinguins, de 2007, e poderia ser incluído nessa lista da sua pergunta. O traço fundamental é a rebeldia dos jovens, sempre a vanguarda de todas as lutas, a organização política autônoma sem necessidade de partidos políticos, apesar de muitos militantes de partidos participarem como indivíduos, sem necessariamente a tutela do gabinete. Porém, essa dicotomia a gente não aborda de maneira contundente nesses documentários, o que seria um ótimo tema de discussão, além de ser um tema de eternas brigas. O importante nesses documentários é retratar as causas, os progressos, retrocessos e efeitos das revoltas, as estratégias utilizadas e as perspectivas políticas de emancipação que essas mobilizações podem provocar.
Desde: Para documentar, como você ganha a confiança dos manifestantes e das forças que o poder público usa para coibir as manifestações?
CP: A confiança das forças da repressão nunca as ganho e nem me interessa ganhar, porque as combato tanto quanto os manifestantes, mas sobre a confiança que é necessário ganhar destes últimos, tenho diversos exemplos. Para documentar os protestos de 2013  aos quais só cheguei quando o processo estava bem avançado, já que estava fora do país, num Festival naquele momento  numa das concentrações populares que se dirigiam a protestar na sede da TV Globo, em São Paulo, como não conseguia acesso para entrevistar os manifestantes durante a marcha, coloquei para alguns que eu era o diretor de A Revolta do Buzu (“Você é o Pronzato?”, “Sou!”), aí as comportas se abriram (risos). De outra feita, numa grande manifestação na Avenida Paulista, em novembro de 2015, durante as manifestações das Escolas Ocupadas, também usei o expediente diante da recusa a falar dos manifestantes, estudantes secundaristas. Dessa vez, o título enunciado e mostrado foi o DVD dos pinguins chilenos, que eles estavam utilizando nas escolas para mobilizar os alunos. Ali mesmo já marcamos minha ida às escolas… Claro que, além de tudo isso, também participo das revoltas como qualquer manifestante, quando as pausas na gravação o permitem.
Desde: Em 2001, você lançou o documentário Maio Baiano. Na época, embora já estivéssemos num regime democrático, vivíamos num contexto de coronelismo. Você não teve medo de retaliação dos governantes? Por quê?
CP: A última coisa que me vem à cabeça nessas situações é essa percepção do perigo. Deve ser algo inconsciente, que no momento da ação se apaga para poder agir em liberdade e com todo ímpeto. Já o momento posterior faz parte do quotidiano e não tenho como medir as consequências, porque, se em algum lugar uma porta se fecha, inclusive sutilmente, noutro se abre. Mas aprendi cedo a não colocar na balança situações a posteriori, para poder pensar no impossível e conseguir o máximo do possível, como dizia Bakunin. Além do que, se você assume um compromisso, não pode ser pela metade, tem que ir fundo. Não sou um político, com todo respeito a alguns que atuam do nosso lado e que exercem a arte da negociação para atingir o sucesso possível em certas pautas sociais.
Desde: Politicamente, o que acha do movimento estudantil da atualidade?
CP: Há um retrocesso atroz em nível nacional, se levarmos em conta as vitórias históricas conseguidas pelos movimentos estudantis (são vários e diversos) nas ruas e nas ocupações de Escolas, como no Paraná, por exemplo, um recorde mundial de ocupações que registarmos no documentário Ocupa Tudo: Escolas Ocupadas no Paraná. Com esse volume de ações e exigências, parece que, no fim, há sempre uma acomodação posterior influenciada pelo dispositivo partidário e as diversas tensões entre grupos políticos, não necessariamente institucionais, que ultrapassam até a capacidade da mobilização efetuada para reivindicar os direitos e as diversas pautas. Há um foco excessivo das organizações estudantis na política eleitoral e até isso não ser devidamente quebrado e enterrado, o movimento estudantil será apenas mais um tijolo da institucionalidade cada dia mais vilipendiada pelas populações do mundo todo, vide Chile como exemplo definitivo disso.
Desde: Lei de Incentivo à Cultura (antiga “Lei Rouanet”) passou por mudanças no primeiro ano da gestão de Bolsonaro. Antes disso, o instrumento de fomento à cultura já recebia críticas de artistas e produtores culturais. Claro que os criadores faziam críticas de outra natureza. Qual análise você faz disso tudo?
CP: Lamentavelmente, deixei de acompanhar essas discussões há muito tempo, para poder me entregar de cheio a ações práticas. O jogo burocrático instalado nesse enjambre legislativo me excede completamente, não é um campo onde me sinta à vontade. É fundamental para arrancar do Estado certas questões favoráveis a classe, mas, se já era ruim antes, um labirinto imobilizador de reuniões e mais reuniões para quem tem compulsão de trabalho, imagina agora, quando dificilmente se possa arrancar algo de positivo. Por outro lado, o meu cinema é muito modesto para estar discutindo e me digladiando por quantias de milhões de reais. Outros profissionais, que tem que cobrir estruturas super profissionais de produção, estão mais aptos a essas discussões e embates com os burocratas do Estado. Mas hoje, com o protofascismo instalado nos espaços de Poder, é preciso voltarmos a um Estado com as condições mínimas de sanidade mental para que tudo isso possa ser discutido. Neste momento, não adianta propor nada, já que não há ninguém minimamente normal e decente com quem sentar e discutir. O primeiro passo é destituir essa turma.
Desde: Você soube que o Governo do Estado da Bahia fechou o Colégio Estadual Odorico Tavares, não foi? Cerca de 30 estudantes chegaram a ocupar o colégio, mas o movimento não foi adiante. Se se alongasse, você se interessaria em fazer um documentário? Por quê?
CP: Infelizmente, não estava no Brasil quando isso aconteceu. Um outro absurdo para a coleção de equívocos da social-democracia, para um governo estadual que alguma vez neste Estado teve na sua cartilha o culto ao bem-estar social. É inadmissível, pelas razões das quais tive conhecimento, deslocar essa Escola, que, paradoxalmente, foi inaugurada por um governo da direita explícita naquele bairro nobre de Salvador e, hoje, um governo que deveria prestar atenção à majoritária massa pobre da cidade e à sua educação, muito além das políticas sociais que todo governo promove em maior ou menos medida  segundo os interesses do Banco Mundial  promove um absurdo desses para beneficiar projetos do mercado imobiliário. Soube, sim, da ocupação, foi bastante divulgado e seria um episódio digno de ser documentado, além das matérias jornalísticas que fizeram a cobertura. Na Itália, precisamente no bairro mais famoso de Roma, o Trastevere, tive a oportunidade, em 2014, de presenciar o trabalho de ocupação feito por estudantes universitários num cinema, o histórico Cinema América, que foi fechado e seria entregue à voracidade imobiliária. Até hoje os estudantes, com atividades políticas e culturais, mantém a ocupação, detendo os empresários, que, com certeza, não são de esquerda. Aqui no Brasil, inversamente, do que se trata é de deter um governo de centro esquerda! Inadmissível. Foi tema de um conto do meu livro O Milagre da luz e outros contos em Trastevere. Disto, sim, eu gostaria de fazer um documentário.
Desde: Para você, um governo que fecha escolas deixa o pior legado para a sociedade? Por quê?
CP: Nem só para a sociedade, esse legado, esse peso é principalmente para aqueles ainda entusiastas, ainda esperançosos, estoicos membros do partido do governo. A maior vergonha é para eles.
Desde: Em 2018, você fez um documentário sobre a morte de Moa do Katendê; e em 2019, sobre a tragédia de Brumadinho. Como foi registrar essas duas tristes páginas da história recente do Brasil? Por quê?
CP: Recebi um convite de grupos de capoeira da Bahia, no dia seguinte do assassinato de Mestre Moa, para realizar um documentário sobre esse triste episódio e, em seguida, emprestei a minha solidariedade e convidei um sindicato que aportou toda a ajuda desinteressadamente, colocando à disposição suas estruturas, o SINDAE (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente no Estado da Bahia). Casualmente, estava em Salvador, digo casualmente porque ultimamente passo pouco tempo durante o ano na Bahia. Valeu muito pela aproximação de um universo especifico, o da capoeira, e o dos valores do mundo afro-baiano, do qual andava bastante distante desde os meus primeiros tempos na Bahia, quando treinei capoeira no forte de Santo Antônio com o mestre João Pequeno e as adaptações teatrais que fiz do Mestre Didi, naquelas minhas primeiras incursões no labirinto baiano. Conhecer a família e os afetos do Mestre Moa, a quem nunca conheci pessoalmente, foi um imenso prazer e um aprendizado imenso. O documentário se espalhou rapidamente pelo Brasil através da web e até ganhou legendagem em espanhol. Pouco mais de um ano depois, aconteceu o crime da empresa Vale, em Brumadinho. O documentário Lama, o crime Vale no Brasil, a tragédia de Brumadinho está numa plataforma virtual chamada Libreflix. Eu estava em Sergipe, em janeiro de 2019, realizando um outro trabalho, sobre o educador Manoel Bomfim, e fui para as Minas Gerais, estado onde já tinha realizado outros trabalhos, pelo qual não foi difícil estruturar a produção do documentário. Montei uma equipe pequena e colocamos mãos à obra até a sua estreia, no início de abril do ano passado. Foi outro assassinato, este coletivo, com quase 300 mortos e desaparecidos, e pelos motivos mais capitalistas possíveis, o pouco interesse pela vida humana.
Desde: Che e Marighella, pelo visto, são ídolos para você. O que chama tanto a sua atenção na história dos dois? Por quê?
CP: Não são ídolos, são muito mais do que isso, são companheiros de viagem, assim como alguns outros personagens da História, guerrilheiros, comandantes, subcomandantes, exploradores, escritores, pintores, cineastas, poetas ….Ambos, Ernesto e Carlos, são personagens da nossa História popular continental que respeito como poucos, pela lucidez a prova de qualquer acomodação política, pela coragem, pelo desprendimento, pela entrega das suas vidas como exemplo, pela ética, por não se apegarem a nenhum poder, por seguirem o curso certo que o destino, sempre variável, lhes ofereceu. Do primeiro, Che, conheci seus percursos nas minhas viagens iniciais latino-americanas; do segundo, Mariga, tive as primeiras informações a respeito no Brasil. Quando se aproximava o centenário de nascimento de Carlos Marighella, em 2011, houve um caudal imenso de informações a respeito e fiz a minha contribuição com o documentário Carlos Marighella, quem samba fica, quem não samba vai embora (se encontra numa plataforma virtual chamada Bombozila), cuja produção me colocou em contato com pessoas fantásticas, ligadas a ele e à Historia desse pais. E, talvez por isso, a possibilidade de conhecer todos esses universos ligados à construção de cada filme, seja o melhor desta profissão.
Desde: Você é multifacetado, tem experiência em teatro, cinema e literatura. Contudo, e é uma pergunta filosófica, o que você mais gosta de ser?

CP: Nem sei se gosto de mim, mas tento ser apenas eu, o que, posso afirmar, não é nada fácil sendo, como você diz, tão multifacetado.

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