Filho do advogado Shelmer José Queiroga e da
reikiana Marília Queiroga, o mineiro
Shelmer Gvarteve contato com a arte ainda na infância, através de seu avô. “Dentre muitas atividades, ele era bonequeiro. Tenho lembranças dele fazendo teatro de bonecos somente para mim, na sala da minha casa, até os meus 6 anos de idade, antes dele falecer”. De lá pra cá, o menino se tornou um homem totalmente envolto em experiências artísticas. Multifacetado, o belo-horizontino começou a carreira artística como dramaturgo e, logo depois, passou a atuar (no teatro, na TV e no cinema). Nessa época, era Shelmer de Queiroga. Hoje, Shelmer, que adotou o “Gvar” no nome artístico, acumula as funções de diretor de cinema, roteirista, produtor e gestor cultural. Em 2010, fundou a produtora
Operários da Alma, que tem o audiovisual como principal ramo de atuação. Nela, entre outras coisas, já produziu os documentários
Além dos Sentidos e
A Peleja da Essência (ambos de 2016).
Passageiro, filme de ficção que está em fase de pós-produção e cujo título não é definitivo, tem previsão de estreia para o segundo semestre deste ano. Nesta entrevista, feita por e-mail e que abre a série
Cinema Falado, em comemoração pelos nove anos do
Desde, o cineasta fala sobre o trabalho que desenvolve na produtora, reflete sobre a
Lei de Incentivo à Cultura e opina sobre o papel do cinema: “Retratar a realidade de uma sociedade”.
Desde que eu me entendo por gente: Quando nasceu a paixão pelo cinema?
Shelmer Gvar: Primeiramente, através dos filmes que eu assistia. Mas o fator determinante para eu entrar no setor audiovisual aconteceu quando o saudoso diretor
Geraldo Santos Pereira foi assistir a uma peça teatral que eu escrevi e eu também atuava, intitulada “Bordel de Véu”. Me lembro dele entrando no camarim, elogiando muito o espetáculo e dizendo que enxergou em mim um ator de cinema. Aí ele me convidou para participar do próximo filme dele,
“O Aleijadinho”. Achei que eu iria receber um papel secundário, mas já no meu primeiro filme eu tive a chance de fazer um personagem antagonista do Aleijadinho e muito interessante. O filme ainda dividiu o prêmio de melhor filme com o
Bicho de Sete Cabeças, no festival de Recife, esteve em cartaz na Europa e participou de outros festivais.
Desde: Onde se formou artisticamente?
SG: A minha formação aconteceu, de fato, na prática diária com a arte. Porém, mestres e os estudos foram fundamentais para minha arte. Eu posso, primeiramente, citar o saudoso e grande amigo
Jarbas Medeiros. Todos o conhecem como um dos grandes cientistas políticos, mestre de ciência política na
UFMG, colunista da revista
Carta Capital, porém ele tem vários quadros pintados, livros de poemas lançados e uma passagem muito importante como crítico de cinema na França. Ele apontou para mim vários filmes e dramaturgias que eu deveria consumir. Ele lia todos os meus textos e apontava vários caminhos para melhorar a minha arte. Também não posso deixar de citar o
Ronaldo Boschi com seu núcleo de estudo sobre o método
Stanislavsky. Através dos vários espetáculos de pesquisa sobre o dramaturgo russo
Anton Tchekhov, aprofundamos muito na arte da interpretação. Preciso citar
Marcos Vogel, que me convidou para participar do Núcleo de Estudos Shakespeariano. Esse período trouxe para mim um amplo significado da arte no sentido atemporal. Todas as montagens dos textos de Shakespeare surgiam após um grande período de estudos do teatro medieval, contemporâneo e reflexão sobre o dever da arte. Também preciso citar o professor
Valentin Teplyakov, da Academia Russa de Artes, de Moscou, e um dos mais reconhecidos estudiosos e seguidores de Stanislavski (The Fundamentals of Stanislavski’s Method); e
Jonas Bloch, que além de ser o grande ator que todos conhecem, é uma grande professor. Ambos tiveram uma passagem de extrema importância na minha formação. Falar de formação artística, para mim, não é citar um lugar em que se ganha um diploma e sim citar inúmeros locais e pessoas que passaram por minha vida.
Desde: Há dez anos, você fundou a produtora Operários da Alma. Quais mudanças percebeu no mercado cultural de lá pra cá?
SG: A prática melhorou muito o fazer cultural de todos. Os projetos são
melhor elaborados, vários gestores culturais trouxeram os conceitos da
economia criativa para gerir atividades mais lucrativas e que atendam demandas claras da cultura nas suas cidades. Hoje, é comprovado que a cultura no Brasil tem grande peso econômico. A economia criativa é responsável por injetar R$ 171 bilhões na economia brasileira.
Desde: A Operários da Alma busca sempre realizar projetos culturais voltados para a inclusão social. De onde vem essa preocupação?
SG: A produtora tem duas vertentes: uma é essa que você citou e a outra é trabalhar com projetos com pesquisa artística e, nesse caso, não necessariamente vai trabalhar com inclusão social. A inclusão social surgiu através de uma série de acontecimentos na minha vida. Acredito que tudo começou quando atendi a um telefonema da Magdalena Rodrigues (presidente do Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado de Minas Gerais – SATED Minas), dizendo que gostaria que eu conhecesse um grupo de cegos que precisava de um professor para montar um espetáculo. Relatei o meu receio em trabalhar com pessoas com deficiência visual, mas, a princípio, eles falaram que precisavam de um professor/diretor paciente e que gostasse de pesquisar. Por isso, estavam me convidado para trabalhar com eles. Propus duas semanas de experiência para que pudéssemos sentir como seria trabalharmos juntos, mas, para minha surpresa, foi ótimo! Depois desse dia, eu passei a entender cada vez mais afundo sobre a importância da inclusão social na cultura desse país e tudo aconteceu naturalmente.
Desde: Embora trabalhe também com outros setores culturais, o principal campo de atuação de sua produtora é o audiovisual. Na sua opinião, o que falta ao audiovisual brasileiro?
SG: Já faz tempo que audiovisual brasileiro conquista os maiores festivais internacionais do mundo. Recentemente,
Bacurau e
Vida Invisível ganharam dois dos principais prêmios de
Cannes.
Pacarrete foi o grande vencedor do
Los Angeles Brazilian Film Festival – LABRFF. Antes, teve
Aquarius,
Gabriel e a Montanha,
Que Horas Ela Volta?,
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho,
Cinema, Aspirinas e Urubus. Isso para não citar vários outros filmes premiados em
Sundace,
Berlinale,
Torontoetc. Saindo do cinema e indo para a obra seriada, a
Netflix quer investir 350 milhões de reais em conteúdo brasileiro. A
Disney e a
Amazon estão vindo para o mercado brasileiro. Fica claro, mesmo sabendo que é importante melhorarmos sempre, que a falta do audiovisual brasileiro não está nos artistas, técnicos e a mão de obra. Então, sobra para o reconhecimento de uma boa parte do público e do governo atual. Acredito que é necessário divulgar melhor cada produto do audiovisual brasileiro para o próprio país. Sem essa divulgação, como as pessoas vão perceber a importância desses filmes? E essa falta de divulgação impacta diretamente no tempo que um filme brasileiro fica em cartaz no cinema e, consequentemente, afeta no planejamento de lançamento. Poucos filmes brasileiros reconhecidos lá fora conseguem ter cauda longa no mercado daqui. Isso precisa ser revisto.
Desde: E o audiovisual de Minas? Quais são as principais demandas?
SG: Recentemente, foi aprovada uma
lei de fomento do audiovisual no Estado de Minas Gerais. Temos pessoas trabalhando muito em Minas para mostrar a importância do audiovisual no Estado e o setor vem sendo apontado como um dos mais promissores da cultura em Minas Gerais. Acredito que essa ação vai melhorar muito algumas demandas, como a produção, a exibição, o público etc. Mas agora é ajustar algumas questões, trabalhar e aguardar para entender quais impactos teremos no setor.
Desde: 2019 não foi um ano fácil para o setor cultural, que sofreu com censura e desmantelamentos. Quais, na sua opinião, são as perspectivas para a área até 2022, quando encerra a gestão do presidente Jair Bolsonaro?
Desde: O cinema, inclusive, foi muito atacado pelo atual chefe do Executivo federal. Como o meio lidou com esses ataques?
SG: Também houve ataques na época do
Collor sobre a
Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME). A
ANCINE (Agência Nacional do Cinema) surgiu no governo do
Fernando Henrique Cardoso e hoje sofre ameaças parecidas. Mas, dessa vez, o setor teve tempo de mostrar sua importância, inclusive na economia brasileira. Então, está claro que a ANCINE deve permanecer e corrigir algumas ações no setor administrativo e nunca na seleção de filmes, pois nesse ponto a ANCINE sempre foi democrática e deve continuar assim. Enquanto isso, o setor vem criando novas parcerias, vem surgindo novas coproduções. A união de produtoras as fortaleceu e isso é um ponto muito positivo no setor.
Shelmer Gvar: “Aqui existe muita desinformação”, ao falar sobre as críticas à Lei de Incentivo à Cultura. Foto: Bruno Rezende.
Desde: Qual é a função do cinema na sociedade atual?
SG: A função do cinema atual é a mesma que sempre será: retratar a realidade de uma sociedade, questionar caminhos da humanidade, provocar reflexões de diversas naturezas, emocionar e entreter.
Desde: Se o Brasil atual fosse um filme, de qual gênero seria? Por quê?
SG: Dizer um único gênero para um país com a enorme pluralidade cultural que temos é uma tarefa impossível. Lembra das locadoras de vídeos? Lá, os filmes eram divididos por gêneros. Eu diria que o Brasil é uma locadora de filmes inteira.
Desde: O seu primeiro documentário, Além dos Sentidos, aborda a realidade de algumas pessoas surdas. Qual foi a motivação para produzi-lo?
SG: Eu fiz alguns trabalhos como professor de interpretação cênica para pessoas com deficiência visual junto com a fonoaudióloga
Camila Rezende. A Camila tem uma linha de pesquisa na saúde auditiva. A motivação foi realizar um projeto que desse a continuidade da inclusão social em uma área que a produtora ainda não tinha atuado, que é a deficiência auditiva. Também ter a Camila na pesquisa do documentário me motivou muito. Ela que trouxe para o documentário vários contatos de grande relevância, como, por exemplo,
Neto Oliveira, que tem forte representação na saúde auditiva de Minas Gerais e o
CEMEAR, que é referência na reabilitação auditiva. Buscamos também as comunidades de pessoas surdas. Deu muito certo, tanto que o filme (que contém
Libras) foi lançado no
Cine Humberto Mauro com uma quantidade tão elevada de público que o
Palácio das Artes foi obrigado a abrir uma segunda sessão lotada. Desse público, uma grande parte era de pessoas com deficiência auditiva, que nunca tinha pisado no cinema.
Desde: O seu olhar para os artistas de rua mudou após produzir o documentário A Peleja da Essência ou você já tinha um olhar atencioso para eles?
SG: Eu já tinha um olhar muito atencioso para eles. A arte de rua existe desde o princípio da arte no mundo. Particularmente, no Centro de Pesquisa Shakespeariano, estudei muito sobre a
Commedia dell’Arte e foi inevitável a comparação daqueles artistas medievais com a arte de rua de hoje. Eu sempre me acostumei a enxergar a arte de rua como uma pequena performance que carrega a essência desse teatro popular. Engraçado que muitas vezes eu até identificava em alguns artistas de rua atuais os arquétipos medievais, como o
Brighella,
Pantalone,
Arlecchino etc. Quando escolhi os artistas que participariam do documentário, o principal critério era que eles tivessem uma linha de pesquisa artística e foi o que eu mais encontrei. O artista de rua de verdade é aquele que se aprofunda numa pesquisa popular, aprimora sua técnica e está sempre se reinventando.
Desde: O seu mais novo filme, Passageiro, que, de acordo com o site da Operários da Alma, está em fase de finalização, trata das passagens (mudanças) na vida de nove personagens. Qual foi a passagem mais significativa da sua vida? Por quê?
SG: Eu poderia citar tantas. Já que você citou o filme, que, por sinal, o título ainda não é definitivo, vou eleger a passagem desses alunos/atores/amigos que encontrei na minha vida. Sobretudo, a Bárbara Lemos, Geovane Carvalho, Gracielle Prado, Fabiano Mesquita, Kelly Kooly, Marcella Freittas, Luiza Uckermann e o Robson Wallace (Mutante). Nossa pesquisa foi justamente a passagem. Tivemos alguns exercícios cênicos muito afetivos e todas as passagens deles foram as minhas. Hoje, cada um seguirá seu caminho e a sua passagem. O tempo de três anos que convivemos será marcado para sempre. O filme é o fruto disso tudo e vai eternizar esse momento. Está aí uma bonita passagem da minha vida.
Desde: A Lei de Incentivo à Cultura (antiga “Lei Rouanet”) passou por mudanças no primeiro ano da gestão de Bolsonaro. Antes disso, o instrumento de fomento à cultura já recebia críticas de artistas e produtores culturais. Qual análise você faz disso tudo?
SG: Primeiramente, é necessário dizer que em vários países existem as leis culturais, inclusive nos Estados Unidos e Europa. Aqui existe muita desinformação. Para começar, as críticas que você cita dos artistas e produtores não são as mesmas do governo. Pelo contrário. É o oposto. O setor da cultura pede melhoria na distribuição do incentivo e o governo questionava a existência da Lei. Um estudo da
Fundação Getúlio Vargas apontou a Lei Rouanet com um retorno financeiro 59% maior que o valor financiado pelo governo. Isso mostra um impacto econômico altamente positivo para o país. Acredito que foram esses dados e outras informações que fizeram o governo recuar sobre a ideia de acabar com a Lei. Tanto que eles decidiram mudar o nome da Lei, buscar estudar melhor a distribuição e manter o incentivo. Outra desinformação muito grande está no público que acha que o governo sai dando dinheiro para artista. Não é assim. Após a aprovação do projeto no governo, são os empresários que decidem sobre o incentivo através de um repasse do dinheiro que vem de uma pequena porcentagem do
Imposto de Renda, que a empresa já teria que pagar ao governo. O montante do incentivo do governo é irrisório comparado com outros setores do Brasil. A Cultura custa 0,66% dos 100% dos gastos do governo.
Desde: Você é multifacetado, tem experiência em teatro, cinema e TV. Contudo, e é uma pergunta filosófica, o que você mais gosta de ser?
SG: Filosoficamente falando, eu gosto de ser eu na arte dos encontros que a vida me proporciona. Esse caminho me inspira e me transforma no dia a dia.
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