Quem quiser saber a resposta (ou as respostas) da pergunta do título desta matéria, basta ir à
Livraria Cultura do
Salvador Shopping, na próxima quinta-feira (5 de abril), às 18h30. É lá que
Enézio de Deus vai lançar o seu mais novo livro, intitulado
Falas de que família(s)?: análise dos discursos da Constituinte de 1987/88 sobre direitos e relações familiares (
Editora Appris, 2018, 353 páginas). Na obra, cujo embrião foi a sua
tese de doutorado, defendida em 2016, na
Universidade Católica do Salvador (UCSal), ele usa a Análise do Discurso (AD) francesa para investigar como o tema “família” foi discutido na Assembleia Constituinte supracitada. Em entrevista exclusiva para o
Desde, feita por e-mail, Enézio fala sobre a contribuição que o livro dará para a sociedade, explica o que entende por “família” e como as uniões homoafetivas aparecem no livro. Não deixe de ler!
Desde que eu me entendo por gente: O seu novo livro trata de famílias. Antes de mais nada, o que é família para você?
Enézio de Deus: Pessoas unidas por se amarem e desejarem prosseguir juntas. O que diferencia, portanto, uma família de todas as formas possíveis de agrupamento humano é o afeto especial que une seus membros na clara perspectiva de uma vida em comum, por meio da qual são partilhadas não somente responsabilidades, mas, especialmente, sentimentos, sonhos, projetos e desejos em prol da felicidade dos que a integram. Por isso, uma das mais graves injustiças é a negação do status de família a pessoas que, por se amarem, resolveram caminhar juntas. A realidade biológica, por si só, sempre será insuficiente para compreendermos a profundidade dos laços familiares e da própria dimensão do que seja uma família.
Desde: Em Falas de que família(s)?, você coloca em destaque os discursos da Constituinte de 1987/1988 a respeito do tema família. Como nasceu a vontade de documentar isso em forma de livro?
ED: Toda investigação científica de impacto social, isto é, que possa ser utilizada em prol de uma sociedade mais justa, respeitosa e solidária merece ser divulgada e circular das formas mais variadas, pelos mais diversos ambientes. Como minha
tese de doutorado apresenta essa relevância e engajamento, entendi que sua maior visibilidade significaria contribuir para uma sociedade melhor. Daí por que ela sair, agora, publicada como livro pela Editora Appris. Essa minha investigação, empreendida com a imprescindível responsabilidade científica, brotou do meu desejo de analisar cientificamente os discursos – dizeres e silêncios – da mais longa Constituinte da nossa história, a de 1987/88, para saber como e por que a família foi delineada, até chegar à sua redação final no texto da Constituição Federal aprovada em 1988 (art. 226 e outros dispositivos aplicáveis). Não identifiquei, desde antes da seleção para ingresso no doutorado, pesquisa científica ou obra com tal recorte e metodologia analisando a base discursiva sobre família emanada dessa Assembleia Nacional Constituinte. Foi o que empreendi, portanto, sob a competente orientação do querido Prof. Dr. Edilton Meireles.
Desde: Para estudar os discursos, você usou a Análise do Discurso de linha francesa. Por que optou por esse campo teórico-metodológico ?
ED: Para que eu pudesse (como, de fato, consegui) ir além da velha busca hermenêutica pelo “melhor sentido” ou “melhor interpretação”, algo tão repetido em minha área, de um “romantismo superficial” incabível nas minhas lentes sociais (de gênero, de diversidade, de entrecruzamento da história com a língua, as ideologias e o inconsciente). O campo da Análise de Discurso (AD) francesa é fantástico na condição de teoria e método a um só tempo, porque cuida de como os dizeres e silêncios significam ou geram sentidos, isto é, de como os processos discursivos se realizam, tensionados e significando pelos atravessamentos ideológicos. A AD, assim, viabilizou, pelo seu potencial crítico e abertura interdisciplinar, a concretude da minha investigação com aportes principais nas contribuições do seu fundador, o filósofo
Michel Pêcheux, e da sua maior expoente no Brasil, a professora Dr.ª
Eni Orlandi. Tais aportes tiveram o meu olhar (para os atravessamentos ideológicos nos discursos parlamentares) ampliado a partir de outras/os teóricas/os – feministas, juristas progressistas, etc. – que estão devidamente referenciadas/os no meu livro, a exemplo da Dr.ª Salete Maria da Silva, Dr. Rui Portanova e Dr.ª Sônia Jay Wright.
Imagem: divulgação
Desde: Qual é o lugar da família homoafetiva na sua obra?
ED: Como ela foi abortada deliberadamente da Constituinte “Cidadã” (sem qualquer mínimo lugar reservado em tal processo discursivo), o seu lugar, na minha obra, é o de demonstrar como se deu essa sua exclusão consciente, por meio de uma política do silêncio proposital, inviabilizadora de que qualquer direito familiar de tal natureza fosse escrito ou reconhecido no texto constitucional. Se a expressão “orientação sexual” (algo tão mais básico para cidadãs e cidadãos
LGBTs naquele momento histórico ansioso por liberdade e maior respeito) foi conscientemente excluída da redação final da Constituição como critério geral de não discriminação nos primeiros artigos, imagine a resistência (imensurável), que bem explicito na obra, para se reconhecer qualquer caráter familiar a uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Gays e lésbicas, ao contrário de tratados/as como cidadãos/ãs na Constituinte “Cidadã”, apareciam nos debates, no geral, quando a maioria os associava a prostituição,
AIDS e depravações de toda sorte. Por isso, na Comissão de Sistematização, quando impossível reversão posterior, a união estável como nova entidade familiar parida a fórceps ficou bem demarcada pela heteronormatividade reinante no “acordo masculino” com direito a risos: “entre o homem e a mulher”. Tudo que a sociedade brasileira conseguiu de avanço ou quebra de paradigma naquele espaço historicamente relevante foi à custa de muita luta e articulação social; e, nesse particular, credito às 25 deputadas constituintes, entre mais de 500 homens deputados e senadores constituintes, boa parte dos conteúdos constitucionais com sentido efetivamente igualitário, transformador e cidadão para além de 1988 (apesar, lógico, de muitos parlamentares também terem assumido idêntico compromisso, unindo-se às pautas defendidas pelo “lobby do batom”). Três décadas depois de promulgada, nossa Constituição continua repetindo que união estável é entre o homem e a mulher; LGBTs só têm precariamente reconhecidos direitos familiares porque o Supremo a interpretou de forma inclusiva em 2011, mas o texto constitucional segue intocável. Pessoas trans ainda estão fora de cogitação nas “casas da democracia”, onde alguns legislam como se estivessem em púlpitos de igrejas. Se um parlamentar não tivesse passado por situação delicada quanto à esposa após o nascimento da filha em 1987, a licença paternidade poderia não ter sido aprovada na Constituinte, mesmo as deputadas também a defendendo. Prometeu-se demais em 1987/88 e ainda não se consegue igualdade nas relações familiares violentas quanto ao gênero. Óbvio que houve avanços importantes e dignos de comemoração na seara familiar (como eu repito sempre, após muita luta social e articulações intra/extra parlamento), mas a missão dada àqueles/as parlamentares poderia ter feito a sociedade avançar mais em matéria de famílias. Quando uma minoria pugnava, por exemplo, pela ampliação do conceito constitucional de família, a baixa qualidade dos debates da maioria conservadora me deixou surpreso.
Desde: Qual contribuição Falas de que família(s)? dará à sociedade?
ED: A de que consolidar direitos diversos aos que me tocam, não me afetam nem me diminuem: somam para uma sociedade democraticamente mais fortalecida e harmoniosa. Daqui, surge outra fundamental contribuição: a de que, ainda em tempos de pontuais ódios recrudescidos, nossas esperanças e forças de luta precisam prosseguir renovadas por um país, de fato, solidário, justo e respeitoso para com todas as diferenças. Nossas diversidades nos enriquecem mais. Jamais devem ser motivo para a vergonhosa manutenção de preconceitos e discriminações infundadas. Quanto mais amor e respeito à dignidade de todas as pessoas sem distinção, mais avançaremos. É muito simples. Só assim, quem sabe, um dia, a aplaudida promessa da Constituinte (de que “a Nação vai mudar”) torne-se realidade para todas e todos as/os brasileiras/os, sem qualquer distinção.