Cultura, Desde Então: análise de produtos culturais de outrora, Jornalismo Cultural, Música

Sandy e o recado para a imprensa

Sandy Leah: música para quem pega no seu pé. Foto: reprodução do site oficial da artista (divulgação)

Por Raulino Júnior ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||
O ano era 2006. O CD não tinha nome, apenas Sandy & Júnior. Na capa, nada de foto: um símbolo representando uma mulher e um homem. Na faixa 5 do álbum, o recado: Discutível Perfeição.
A cantora Sandy Leah Lima, 32 anos, ficou famosa na infância, quando começou a cantar ao lado do irmão, Júnior Lima. Juntos, formaram uma dupla de sucesso, com mais de 17 milhões de discos vendidos (segundo informação presente no site oficial de Sandy), seriado de TV e vários produtos licenciados. Em 2007, a dupla chegou ao fim, depois de 17 anos de estrada.

Capa do CD Sandy & Júnior, de 2006. Foto: reprodução do blogue Encartes Pop. Acesso: 31 de março de 2015.

À medida que crescia , Sandy teve que aprender a lidar com todos os lados da fama. Inclusive, o ruim. Ao longo de sua fase de maior notoriedade na carreira, a artista sempre foi alvo de “jornalistas”, que insistiam em retratá-la como perfeitinha. Embora, muitas vezes, Sandy tivesse dado vazão para isso, a falta do que falar sobre elafazia os profissionais da imprensa reproduzirem tal conceito. Coisas do corporativismo da classe. Argh!
A menarca, o primeiro namorado, o primeiro beijo, a primeira vez. Esses eram alguns dos interesses dos jornalistas em relação a Sandy. Sobre o CD? As composições? O processo de produção do álbum? Nadica de nada! Poucos e raros profissionais queriam saber sobre isso. A razão da prática jornalística, quando o assunto era a filha de Xororó, se resumia em falar do seu comportamento de boa moça, da sua retidão e disciplina. Em 2006, Sandy gritou em forma de música:
Por favor, não me idealize/ Assim você tá fadado ao deslize/ Verdade seja dita/ Nada mais me irrita/ Do que essa estupidez/ É melhor você ter certeza/ Tô longe de ser a Madre Tereza/ Não pise no meu calo/ Ou viro bicho e falo/ O que não quer ouvir/ Admito, eu vivo maquiada/ Minha vida é mesmo tão sofisticada/ Saiba, esse glamour não dura o tempo inteiro/ Eu também preciso ir ao banheiro/ A princesa também sente, chora, sofre, sonha e ouve não (ouve não)/ Eu prefiro a verdade a essa discutível perfeição/ A princesa também briga, encrenca, berra e fala palavrão/ Me recuso a buscar essa discutível perfeição// Já tá mais do que comprovado/ Mentira, um dia, escorre pelo ralo/ Tachada de mimada, Rapunzel aprisionada/ Eu nem vou ligar/ Mas vê se pelo menos mude o texto/ Ou tá arriscando o seu emprego/ Pense grande, o seu destino é bem maior, tenha fé/ Do que ficar caçando alguém pra pegar no pé/ A princesa também sente, chora, sofre, sonha e ouve não (ouve não)/ Eu prefiro a verdade a essa discutível perfeição/ A princesa também briga, encrenca, berra e fala palavrão (mas só se eu quiser)/ Me recuso a buscar essa discutível perfeição// Preste atenção, tome cuidado/ Boca fechada não entra mosquito, diz o ditado/ Respeite meus longos anos de estrada/ De boba é que eu não tenho nada/ A princesa também sente, chora, sofre, sonha e ouve não/ Também mente, é inconsequente, tem preguiça, perde a direção/ Porque ninguém nesse mundo é cem por cento cheio de razão/ Me recuso a buscar essa discutível perfeição“.
A letra de Sandy e Tatiana Parra é direta e certeira. Todo mundo compreende a quem se destina. Principalmente, quando se depara com versos como estes: “Mas vê se pelo menos mude o texto/ Ou tá arriscando o seu emprego/ Pense grande, o seu destino é bem maior, tenha fé/ Do que ficar caçando alguém pra pegar no pé”. Simples, precisa e irônica (o uso de “princesa” foi uma boa sacada!). Uma pena não ter sido muito executada. A dupla trabalhou pouco a música. Alguns jornalistas pretensiosos vão falar: “Que bobagem! Uma letra boba dessa!”. A gente entende. No Brasil, jornalista é sinônimo de presunção.

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Assim era o Valente…

Biografia de Assis Valente: ele não encontrou a felicidade. Foto do livro: Raulino Júnior

Por Raulino Júnior  ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Um homem transtornado. É com esse retrato da personalidade do compositor Assis Valente que o leitor sai ao concluir a leitura da biografia Assis Valente: felicidade é brinquedo que não tem, escrita pelo radialista J. Pimentel e editada pela Assembleia Legislativa da Bahia, em 2013, integrando a Coleção Gente da Bahia. Se vivesse na contemporaneidade, Assis seria considerado um paciente acometido de transtorno bipolar, pois o humor e a depressão caminhavam lado a lado com ele.
J. Pimentel escreve 505 páginas para contar a vida do baiano José de Assis Valente. E, segundo o biógrafo, nada na história de Assis é. Não se sabe, ao certo, o ano de seu nascimento (1908, 1909 ou 1911?); o local (Salvador ou Santo Amaro?); o nome completo (José de Assis Valente ou José de Assis Valente Filho?). Assis não era um homem definido. A indefinição da sexualidade foi um dos motivos que o levaram a cometer suicídio, em 1958. A única certeza é a de que era baiano, compositor e protético. Aliás, foi bem-sucedido nessas duas atividades profissionais, embora tenha entrado para a história da cultura brasileira muito mais como compositor do que como protético.
Autor de mais de 150 músicas, Assis Valente foi gravado por Carmen MirandaMarleneCarlos Galhardo e por intérpretes contemporâneos, como Caetano VelosoAdriana Calcanhotto e Gal Costa. Entre os sucessos, Brasil PandeiroCamisa ListradaE o mundo não se acabou e Boas Festas. Viveu intensamente, integrou a boemia de sua época, foi gastador e não soube lidar com a fama. Tanto é que, ao perceber que já não era mais alvo dos holofotes nem solicitado pelos cantores, criou situações para aparecer. Em vão. Além disso, a rejeição de Carmen em gravar Brasil Pandeiro (ela não gostou da música!) e a ida dela para os Estados Unidos fizeram Assis cair numa depressão que o acompanhou até os últimos dias. A homossexualidade reprimida potencializou a sua tristeza.

Assis casou, teve uma filha (Nara Nadyle, que vive no Rio de Janeiro), mas não nasceu para exercer o papel de “chefe de família”. O compositor queria viver livre. E viveu.

A narrativa de J. Pimentel é boa e prende o leitor. Apenas a revisão não foi feita com a atenção que deveria. A obra é um bom começo para conhecer Assis Valente, que é tão pouco lembrado por essa “gente bronzeada”.

Referência:

PIMENTEL, J. Assis Valente: felicidade é brinquedo que não tem. Salvador: Assembleia Legislativa da Bahia, 2013. (Coleção Gente da Bahia).

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Crônica, Cultura, Desde Já, Jornalismo Cultural

Primeiro dia de aula

Imagem: reprodução do site Só Escola

Por Raulino Júnior ||Desde Já: as crônicas do Desde||

Sônio está no ônibus, a caminho da universidade. No trajeto, levanta hipóteses, imagina, faz projeções. Está feliz e a felicidade, para ele, é qualquer coisa que o comove. Estudar é comovente. Mexe com ele. Sônio é mais um dos milhares de estudantes que buscam, que querem e que vão conseguir. Chega, dá bom dia e senta.
O professor também chega, também dá bom dia e também senta. Na aula, há vários questionamentos, inclusive sobre o conceito de cultura. Dífícil reduzir. Difícil conceituar. Sônio pensa em cultura como cultivo, alimento, mas sabe que não é só isso. A aula prossegue, exemplos contemporâneos e tradicionais figuram na discussão. Tudo constrói. Tudo fortalece.
Sônio tem certeza de que fez a melhor opção: ser um eterno estudante. Isso não invalida outras possibilidades. Acrescenta. Num dado momento, voltando para casa, se certifica do quanto uma aula é importante. Por isso, acha que elas poderiam ser gravadas e disponibilizadas para mais pessoas. Hoje, isso é tão possível, tão comum. “Por que não acontece?”, se questiona. Vale ressaltar que ele se refere às aulas normais, com estudantes, professores, debates etc. Enfim, Sônio sonha.
O primeiro dia de aula correu bem. A expectativa ficou. Ele já espera pelo próximo.
Sigamos. 
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Axé Music, Cultura, Jornalismo Cultural, Música, Reportagem, Reportagem Especial

Em aula-show na UFBA, Luiz Caldas canta e conta histórias

Palestra do precursor da Axé Music fez parte da programação de abertura do ano letivo da Universidade Federal da Bahia

Luiz Caldas em aula-show na UFBA. Foto: Raulino Júnior

Por Raulino Júnior ||Reportagem Especial|| 

O cantor, compositor e multi-instrumentista Luiz Caldas, 52 anos, ministrou uma aula-show no campus da Universidade Federal da Bahia, em Ondina, ontem à tarde. Com temática sobre os 30 anos da Axé Music, completados neste ano, a palestra aconteceu na Praça das Artes e integrou a programação de abertura do ano letivo da instituição de ensino. Durante o evento, Caldas falou sobre a sua origem, como começou a gostar de música, sua estreia no trio elétrico e sobre início de sua carreira.

Antes de a aula-show começar, a expectativa sobre quais seriam os assuntos abordados por Luiz Caldas era grande. Jessé Oliveira, 25 anos, que cursa o 7º semestre de Letras Vernáculas, elogiou a iniciativa da universidade: “Durante esse tempo todo que estou aqui, nunca vi uma iniciativa como essa na universidade. Já teve a Calourosa, mas não nesse perfil. Esse perfil é diferente, porque reúne palestras, aulas, com evento musical. Acho interessante. É perceber que a universidade está se movendo, ainda mais porque nós completamos agora 30 anos de Axé Music. Eu quero ver o que Luiz Caldas vai apresentar pra gente, ele que é considerado o precursor”, afirmou.

Jessé Oliveira: “A aula show foi uma iniciativa interessante da UFBA”. Foto: Raulino Júnior

E Luiz contou curiosidades sobre a sua caminhada na música. Falou que, quando criança, escutava de tudo, porque não existia músicas voltadas apenas para crianças. “Ouvia PinducaElizeth CardosoLuiz Gonzaga, muita gente”. Em vários momentos da aula, fez questão de enfatizar que todas as suas decisões, ao longo de 45 anos de carreira, não foram motivadas por dinheiro. “Uma coisa que eu agradeço muito a Deus é não ter ganância financeira. Nunca fui ganancioso quanto a dinheiro. Eu gosto é de música. Minha ganância é de música”.

A aula serviu para Luiz fazer um resgate histórico de sua carreira. Nesse sentido, não deixou de falar sobre a passagem pela WR e pela Banda Acordes Verdes. Lembrou dos tempos que cantava em bandas de bailes e dos vários nãos que recebeu. “Eu chegava nas gravadoras com o meu material e o diretor dizia: ‘Mais um baiano aqui?! Não!’. Diante disso, eu coloquei um propósito na minha cabeça: ‘Eu vou fazer sucesso aqui [na Bahia] e esses caras vão vir me buscar'”. Foi dito e certo: “Vendi 100 mil cópias do meu disco, só na Bahia. A Bahia me deu um disco de ouro sem precisar dos outros estados. O disco Magia me catapultou”, contou com orgulho.

Luiz Caldas confidenciou ao público o que Chacrinha lhe disse após uma de suas inúmeras apresentações no programa do comunicador. “Ele foi ao camarim e disse: ‘Você está reinventando a alegria do carnaval da Bahia. Se prepare para ser o representante de muita gente que vem atrás de você’. Além de comunicador, ele era profeta”, brinca o artista. Sobre a Axé Music, Luiz foi enfático: “A gente tem que ter orgulho da nossa música. Agora, ela está em declínio comercial. Alguns artistas não souberam gerir as suas carreiras. Eu não gravo uma canção que eu não gosto, porque ela vai me perseguir a vida toda. O que falta, hoje, na nossa música, é ser menos manipulada”, pontuou.

O cantor falou sobre o seu atual projeto, que disponibiliza, todo mês, músicas gratuitas no seu site. “É um projeto que tem como intuito devolver o que a música me deu”. Os discos disponibilizados mostram a diversidade musical do artista e transitam pelo rock, MPB, samba e forró. Inclusive, para diversificar ainda mais, ele firmou parcerias com outros colegas da música, como Sandra de SáZeca BaleiroChico CésarSeu JorgeSaulo FernandesJosé Carlos Capinam e Gilberto Gil. De acordo com Luiz, o projeto já tem oito milhões de downloads na internet.

Como não podia faltar música no evento, Luiz Caldas intercalou suas histórias com sucessos como MagiaAjayôO Beijo e, claro, Fricote. No final, exclamou: “Viva a boa música sempre!”.

Música e educação

João Carlos Salles, 52 anos, reitor da UFBA, esteve presente na aula-show de Luiz Caldas e ressaltou o papel da instituição no debate sobre os 30 anos de Axé Music. “A UFBA está ligada à cidade de Salvador, à sociedade, à cultura. É natural que a gente queira começar o ano com essa alegria, com essa energia, mas com essa reflexão também. Talvez seja uma maneira de lembrar que a universidade tem essa capacidade de ser vanguarda”.

João Carlos Salles, reitor da UFBA: “Universidade de vanguarda”. Foto: Raulino Júnior

Para o vice-reitor da universidade, Paulo Miguez, 60 anos, que é estudioso do carnaval da Bahia desde 1995, a importância de a UFBA trazer essa discussão para a comunidade acadêmica tem a ver com a relevância do Axé para a cultura baiana. “A Axé Music é um divisor de águas importante a partir de dois pontos de vista: do ponto de vista da criação estético-musical e no que diz respeito à criação de um mercado da cultura na Bahia. São dois fatos que estão associados à Axé Music, que neste ano faz 30 anos, e obrigam à universidade um olhar cuidadoso”, avalia. Questionado se o evento foi uma forma também de a UFBA mostrar para a sociedade que o gênero precisa ser repensado, Paulo ponderou: “Sim. Todo gênero que ganha a dimensão de massa e passa  a ser algo que interessa à indústria cultural, vai experimentar aquilo que a gente pode chamar de fadiga de material e vai exigir renovação, o que tem acontecido. Às vezes, o olhar menos atento, sugere sempre a ideia de que é tudo igual, e não é. Os artistas da Axé são muito diferentes entre si, produzem uma obra muito diferente entre si. O que é igual é o mercado. Acho que há uma certa confusão entre a Axé Music e o mercado da Axé Music. Às vezes, as pessoas querem criticar o mercado e acabam caindo na armadilha de criticar a Axé Music. Eu prefiro fazer essa diferença, porque penso que são duas coisas importantes, mas que têm que ser tratadas com perspectivas distintas”.

Vice-reitor da UFBA, Paulo Miguez. “A UFBA tem a obrigação de reverenciar a Axé Music”. Foto: Raulino Júnior

Sobre a aula-show de Luiz Caldas, o vice-reitor espera que os universitários levem como mensagem o reconhecimento do gênero musical. “O reconhecimento da vitalidade da cultura baiana que, de tempos em tempos, produz novidades que alcançam a cena brasileira e, em muitos casos, alcançam além das fronteiras brasileiras. A Universidade Federal da Bahia tem a obrigação de reverenciar expressões dessa vitalidade e a Axé Music é uma dessas expressões”.

A estudante do 2º semestre de Letras com Inglês, Simone Oliveira, 20 anos, parece concordar com a reflexão proposta por Paulo. “Eu achei muito bom, por parte da universidade, trazer esse conhecimento para a gente sobre o Axé Music, que representa a identidade cultural da Bahia. Eu adorei a aula-show. De verdade! A gente acha que tudo é flores, mas os artistas passam por muitas dificuldades. Eu vou levar, para a minha vida, essa história que acabei de conhecer melhor sobre o Axé Music. Eu tinha um pouco de preconceito com o gênero, mas passei a conhecer a história e isso mudou”, reconheceu.

Simone Oliveira: “Adorei a aula-show. Passei a conhecer melhor a Axé Music”. Foto: Raulino Júnior

Com a palavra, Luiz Caldas

Foto: Catarina Reimão

Logo após o término da aula-show, na UFBA, Luiz Caldas deu uma entrevista exclusiva para o Desde. A própria aula, a relação de música com a educação e o futuro da Axé Music foram os assuntos abordados. Leia!

Desde que eu me entendo por gente: Como foi receber esse convite da UFBA para falar para a comunidade acadêmica?

Luiz Caldas: Maravilhoso. Para mim, é como uma coroação de tudo que fiz e venho fazendo pela música. Afinal de contas, são 45 anos ininterruptos de música, me dedicando aos instrumentos, aos estudos, à boa música. Então, estar hoje, falando para tantas pessoas, que representam o futuro de melhoras para nosso estado, para o mundo, é maravilhoso isso.

Desde: Na sua opinião, como a educação pode contribuir para a música?

LC: Educação é fundamental. Sem ela, não tem música. A gente tem que aprender que, com a educação, você se veste melhor, come melhor, vive melhor, rende mais, você é melhor para as outras pessoas. Tudo isso passa pela educação.

Desde: Qual é a perspectiva futura para o Axé que você vê?

LC: Agora, melhor, porque é só um gênero; não é mais aquele gênero que dava milhões e que qualquer um se apoderava dele e pagava rádio e virava artista. Agora, a coisa ficou mais séria.

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Esta reportagem foi produzida entre os dias 05 e 06 de março de 2015.

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