Crônica, Cultura, Desde Já, DEZde, Jornalismo Cultural

Quem é você nos grupos do WhatsApp?

Imagem: reprodução do site TechTudo

Por Raulino Júnior ||Desde Já: as crônicas do Desde||

E aí! Quem é você? Já parou para pensar sobre isso? Tudo bem que essa não é uma questão importante nem que vai mudar o mundo, mas esse exercício de olhar para o nosso comportamento em alguns espaços é sempre interessante, porque revela muito de nós e ajuda a entender o que somos e o que queremos para o mundo. É isso mesmo! Pode não parecer, mas a coisa é séria! Quem é você nos grupos do WhatsApp?

É o centrado, que posta textos reflexivos, cheios de conceitos filosóficos ou é o descontraído que não aguenta ver uma “piada” (entre aspas, porque, muitas vezes, o conteúdo não tem nada de piada) e compartilha freneticamente? Você é aquele que, diante de uma discussão mais acalorada, fica na sua, na moita, ou é o que tem “uma opinião formada sobre tudo” e sempre dá um pitaco? Tem gente que é um mortuário, que adora postar sobre quem morreu, como e por que. Vixe! Por outro lado, tem gente que adora compartilhar aquelas mensagens prontas de “bom dia”, “boa semana”, “boa tarde”, “boa noite”. E há quem saia dando “bom dia” a torto e a direito por aí, enchendo os grupos de função fática da linguagem.

Nos grupos, você é o que só posta, o que só acompanha, o que só interage, o que não posta, o que não acompanha, o que não interage, o que acompanha, interage e posta esporadicamente, ou o que posta, acompanha e interage? É aquele que não liga muito para o propósito do grupo e posta qualquer conteúdo ou o que se policia só para postar o que atende aos interesses comuns? Tem gente que tem prazer em informar e posta notícias sobre cursos, congressos, prêmios e tudo mais que possa contribuir positivamente para a vida dos membros daquela comunidade. Já tem gente que fica sabendo de um bocado de coisa interessante e guarda para si, mesmo sabendo que tal informação seria de interesse daquele grupo em que está. Que coisa!

E os grupos de família?! Valeria uma crônica à parte. Tem hora que a gente se pergunta: para quê esse grupo existe? Deixa quieto!

O WhatsApp, como qualquer outro espaço social, exige algumas regras, que não estão explícitas, mas que fazem parte do bom senso de cada pessoa. É preciso até ter uma disciplina para acompanhar as mensagens e responder às pessoas. Quantas vezes a gente olha, lê e diz: “Depois, eu respondo”? Inúmeras, não é? E esse depois vai ficando para depois, para depois, para depois… Quando a gente vê, já deu um mês. Só cabe pedir perdão aos contatos. Independentemente do seu comportamento nesse aplicativo de mensagens, “o importante é ser você”, como diz a música.

Sigamos.

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É Desde! É Dez! É DEZde!

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Cultura, Desde Então: análise de produtos culturais de outrora, DEZde, Jornalismo Cultural

Em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, Lima Barreto critica jornalismo brasileiro de outrora (e de hoje)

Autor pré-modernista criou uma narrativa corajosa e pessimista sobre a prática jornalística

Livro de 1909 é o primeiro romance de Lima Barreto. Imagem: reprodução da internet

Por Raulino Júnior ||Desde Então: análise de produtos culturais de outrora||

A criticidade e ironia presentes nas produções literárias de Lima Barreto (1881-1922) não são novidades para quem se debruça nas suas obras. Contudo, em algumas delas, o autor carioca se mostra ainda mais afiado. Isso acontece em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, seu romance de estreia, publicado em 1909. Nele, Barreto traça um retrato da imprensa brasileira do início do século XX e, nesse sentido, “pesa a mão” nas críticas ao jornalismo e aos jornalistas. A narrativa deixa evidente a revolta do autor em relação às injustiças e conchavos da sociedade da época. É verdade que, infelizmente, muita coisa não mudou. Para quem vive do jornalismo e conhece as suas práticas, as memórias de Isaías soam como ofensas e, não se pode negar, como constatações. A vergonha e o constrangimento acompanham o leitor o tempo todo, independentemente de ele atuar ou não na imprensa.

O romance conta a história do jovem estudante Isaías Caminha, que, por falta de perspectiva de ter um bom futuro na cidade do interior em que morava, vai em busca de melhorias no Rio de Janeiro. Lá, se estabelece e passa por todos os perrengues naturais de quem sai da zona de conforto. Inclusive, fome. As coisas só começam a melhorar quando ingressa como contínuo na redação do jornal O Globo (totalmente fictício, sem nenhuma relação com o que existe hoje, fundado em 1925), de propriedade de Ricardo Loberant. Essa convivência de perto com os profissionais da imprensa faz Isaías entender o modus operandi do jornalismo: a produção das notícias, as estratégias para garantir a venda dos jornais, a relação com os poderes públicos e otras cositas más. Além disso, percebe a guerra de ego dos colegas de redação e vai, ao longo do romance, incorporando os mesmos comportamentos. Quando passa de contínuo a repórter, reproduz algumas práticas que condenava, como a “babação de ovo” do diretor Loberant. Claro que a temática racista não fica de fora do livro. Logo no início, Isaías é tratado com rispidez por um caixeiro de um café, que demora de lhe entregar o troco. ” […] um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente entregue”, p. 8.

Lima Barreto atuou como jornalista profissional, no Correio da Manhã. Sendo assim, narra com propriedade a dinâmica de uma redação jornalística. Inclusive, muitos pesquisadores de suas obras afirmam que Isaías Caminha é o próprio Barreto. Levando em consideração o que Caetano Veloso diz, que todas as suas obras são autobiográficas, até as que não são, são, não é difícil associar as recordações de Isaías à própria vida do seu criador. Num determinado trecho do romance, o escrivão afirma: “Cinco capítulos da minha Clara estão na gaveta; o livro há de sair…”. Seria Isaías falando do último romance escrito por seu pai literário, o Clara dos Anjos?! Criador e criatura se fundindo…

Em várias passagens do romance, a visão cáustica de Lima Barreto sobre a imprensa é cruel, de incomodar. Isso não significa que o que é narrado não seja verdade, não aconteça. O fato é que o autor mete o dedo na ferida sem dó nem piedade. Critica as crônicas (Quem lê uma, lê todas, p. 59), denuncia práticas, como  um autor que faz a crítica de sua própria obra e publica com o aval da empresa jornalística (Veiga Filho acabou de ler a notícia no meio da sala, cercado de redatores e repórteres. Enquanto ele lia cheio de paixão, esquecido de que fora ele mesmo o autor de tão lindos elogios…, p. 64), fala das mesmices nos jornais (A não ser o Jornal do Comércio, pode-se dizer que os diários do Rio nada têm o que se leia e todos eles se parecem, pois todos têm a preocupação de noticiar crimes, escândalos domésticos e públicos, curiosidades banais e, em geral, ilustrados com zincografias que nada têm com o caso, quando não são hediondas ou imorais, como aconteceu com O Globo que, certa vez, deu a de um cadáver exumado, inteiramente nu, p .66), faz autocríticas (Depois de acobardado, tornei-me superior e enervado e não tentei mais mudar de situação, julgando que não havia no Rio de Janeiro lugar mais digno para o genial aluno de Dona Ester que o de continuo numa redação sagrada, p. 66; Em menos de ano e tanto, tinha já construído uma pequena consciência jornalística para meu uso. Julguei-me superior ao resto da humanidade que não pisa familiarmente no interior das redações e cheio de inteligência e de talento, só porque levava tinta aos tinteiros dos repórteres e dos redatores e participava assim de um jornal, onde todos têm gênio, p. 66; No meio daquele fervilhar de ambições pequeninas, de intrigas, de hipocrisia, de ignorância e filáucia, todas as coisas majestosas, todas as grandes coisas que eu amara, vinham ficando diminuídas e desmoralizadas. Além do mecanismo jornalístico que tão de perto eu via funcionar, a política, as letras, as artes, o saber — tudo o que tinha suposto até aí grande e elevado, ficava apoucado e achincalhado, p. 108), relata como via a convivência dos colegas de redação ([…]e todos como que pareciam querer entredevorar-se até aos ossos, p. 67), bem como a de homens do governo (Foi sempre coisa que me surpreendeu ver que amigos, homens que se abraçavam efusivamente, com as maiores mostras de amizade, vinham ao jornal denunciar-se uns aos outros. Nisso é que se alicerçou o O Globo; foi nessa divisão infinitesimal de interesses, em uma forte diminuição de todos os laços morais, p.72). Ao narrar a reação de Loberant, diretor do jornal, ao saber que um casal fora encontrado morto, o autor coloca: “A sua fisionomia abriu-se risonha, sorridente, e feliz. Ia vender mais mil ou dois mil exemplares”, p. 80.

O que mais Barreto achava sobre o universo das redações e do jornalismo? Vejamos:

a) Sobre a própria imprensa

[…] A Imprensa! Que quadrilha! […] Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova… E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação… Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas… Só se é geômetra com o seu placet, só se é calista com a sua confirmação e se o sol nasce é porque eles afirmam tal coisa… E como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! Fazem de imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a seleção das mediocridades, de modo que… (fala do personagem Plínio de Andrade, p. 50).

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b) Subalternidade dos repórteres

Pelos longos anos em que estive na redação do O Globo, tive ocasião de verificar que o respeito, que a submissão dos subalternos ao diretor de um jornal só deve ter equivalente na administração turca. É de santo o que ele faz, é de sábio o que ele diz. Ninguém mais sábio e mais poderoso do que ele na Terra. Todos têm por ele um santo terror e medo de cair da sua graça, e isto dá-se desde o contínuo até o redator competente em literatura e coisas internacionais (Isaías, p. 54).

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c) Sobre a vaidade

A vaidade dos desconhecidos da imprensa é imensa! Todos eles se julgam com funções excepcionais, proprietários da arte de escrever, acima de todo o mundo. Não reconhecem que são como um empregado qualquer, funcionando automaticamente, burocraticamente, e que uma notícia é feita com chavões, chavões tão evidentes como os da redação oficial. Quase todos os repórteres e burocratas dos jornais desprezam a literatura e os literatos. Não os grandes nomes vitoriosos que eles veneram e cumulam de elogios; mas os pequenos, os que principiam. Estranha ignorância de quem, por intermédio dos artigos dos que sabem, copia os processos dos romancistas, as frases dos poetas e deturpa os conceitos dos historiadores, imitando-lhes o estilo com uma habilidade simiesca… (Isaías, p. 81).

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d) Comparação com o Feudalismo

No jornal, o diretor é uma espécie de senhor feudal a quem todos prestam vassalagem e juramento de inteira dependência: são seus homens. As suas festas são festas do feudo a que todos têm obrigação de se associar; os seus ódios são ódios de suserano, que devem ser compartilhados por todos os vassalos, vilões ou não (Isaías, p.90).

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e) Sobre crítica literária

Os livros nas redações têm a mais desgraçada sorte se não são recomendados e apadrinhados convenientemente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título e o nome do autor. Se é de autor consagrado e da facção do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas, muito bordadas, aqueles elogios em clichê que nada dizem da obra e dos seus intuitos; se é de outro consagrado mas com antipatias na redação, o clichê é outro, elogioso sempre mas não afetuoso nem entusiástico. Há casos em que absolutamente não se diz uma palavra do livro (Isaías, p. 97).

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f) Sobre a vida do jornalista

O público que nos lê, não sabe o quanto esta vida de jornalista é esgotante e ingrata; não sabe que soma de energia ela exige e como nos tira os melhores momentos de ócio e os melhores minutos de prazer. Vivemos por assim dizer para os outros; e quem vive para os outros, é claro que muito pouco pode viver para si (Isaías, p. 104).

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g) Relação de jornais com o governo

O diário de Loberant ficou sendo quase a sétima secretaria do Estado. As nomeações saíam de lá e as demissões também. Bastava um aceno seu para um chefe ser dispensado, e bastava qualquer dos seus empregados abrir a boca para obter os mais rendosos lugares (Isaías, p. 105).

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h) Boicote dos colegas

Nos primeiros dias lutei com alguma dificuldade. Os colegas receberam-me mal. Sonegavam-me as notas, procuravam desmoralizar-me, ridicularizar-me diante dos empregados. Há neles em geral essa hostilidade pelos novos. Sentem que o ofício é fácil e se eles ainda por cima o facilitarem, perderão em breve o prestígio (Isaías, p. 115).

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i) Sobre o tamanho dos textos

No jornal, a extensão é tudo e avalia-se a importância do escrito pelo tamanho; a questão não é comunicar pensamentos, é convencer o público com repetições inúteis e impressioná-lo com o desenvolvimento do artigo (Isaías, p. 117).

O romance mostra jornalistas supondo coisas, sendo incentivados a mentir, a inventar fatos. Afirma que muita coisa é preparada antes. Ou seja, um repórter que é designado para cobrir um concerto faz uma prévia do seu texto, supondo o que já é comum de acontecer em ocasiões como essa. Cita o jogo de interesses entre imprensa e governo, a falta de ética, a arrogância (Leporace era o secretário, arrogante como todo jornalista, apesar de ser uma pura criação de Loberant, p. 55)… Lima Barreto pega pesado, mas faz críticas coerentes, que motivam reflexões. No final, é isto: “Era a Imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição!”, p. 64.

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