Se alguma cineasta resolvesse roteirizar a vida de Lilih Curi para produzir uma cinebiografia, teria muito “pano pra manga”, como se diz. Neta de libaneses (os avós maternos são de Zahlé) e mineira de Belo Horizonte (BH), ela teve o seu primeiro contato com a arte na infância. “Nasci num bairro católico, onde até hoje vivem meus pais. Minha casa ficava na frente da igreja e meu primeiro contato com a arte foi cantando, vestida de anjo, nas festas de coroação de Nossa Senhora, no mês de maio. Lá, descobri também o teatro, interpretando Lúcia, que vê Nossa Senhora de Fátima. Eu tinha nove anos nessa época. O canto, o teatro, as festas juninas, os figurinos, as maquiagens, a brincadeira de fazer cena… Tudo isso foi uma diversão na minha infância e na adolescência”, recorda. Pelo que o histórico familiar indica, ela não é a única artista da linhagem. “Há rumores na família de que o Ivon Curi era primo de minha avó Labibe Curi, mas não sei se isso é verdadeiro. Há poucos anos, descobri que Labibe tocava violino, mas não profissionalmente. E minha prima, Denise Curi, dançava ballet e tinha uma escola onde cheguei a fazer aulas na minha infância”. Ao enveredar no universo artístico, adotou o nome Lilih Curi. “Este ‘h’, no final de Lili, eu ganhei de uma numeróloga”, adianta-se. Na adolescência, começa a dar os primeiros passos para uma carreira mais sólida: “Aos 16 anos, no Teatro Universitário da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), fiz um curso profissionalizante de três anos, que era, na época, a ‘graduação pública’ em teatro, em BH. Mas iniciei, de fato, em 1991, como atriz, no espetáculo Il Festino – Opereta de Adriano Banchieri, com direção de Ivan Feijó, no Palácio das Artes, na capital mineira”. Filha dos comerciantes Marta Curi e Dezejar Oliveira, e tendo três irmãos, Lilih parece personificar muito bem aquilo que dizem sobre os libaneses (e sobre quem tem o sangue libanês correndo nas veias!): é cosmopolita e resiliente. Para a primeira característica, um bom exemplo foi a vinda definitiva para Salvador, em 2008: “Vim morar em Salvador, pela primeira vez, em 1993, a convite da diretora teatral Carmen Paternostro, para substituir Iami Rebouças em Merlin ou a Terra Deserta, um espetáculo de sucesso da época que esteve em cartaz no Goethe Institut Salvador. Fiquei aqui até final de 94 e fui para São Paulo. Anos depois, no final de 2008, voltei para fazer mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA). Aqui casei, fiquei e estou até hoje”. Para a segunda, o próprio ofício de fazer cinema independente no Brasil explica. Como ilustração, ela se apropria de um discurso de Hamlet, famoso personagem de Shakespeare: “Estar pronta é tudo”. Nesta entrevista, feita por e-mail e que fecha a série Cinema Falado, que comemorou os nove anos do Desde, a jornalista, diretora, roteirista, atriz e produtora mostra que está mais do que pronta para falar sobre carreira, cinema, políticas públicas, governo brasileiro, filmes prediletos e de como é ser mulher na sétima arte: “Somos silenciadas”, reclama.
Desde que eu me entendo por gente: Quando nasceu a sua paixão pelo cinema?
Lilih Curi: Desde pequena, tenho paixão pelo audiovisual. Vi muita TV na minha infância e adolescência, como a maioria dos brasileiros. Marcantes foram o
Sítio do Picapau Amarelo e os filmes da
Sessão da Tarde. Outra lembrança dessa época foi ter visto o meu tio num programa de TV local. Aquilo foi tão mágico que até hoje tenho a imagem daqueles instantes e sei que por muito tempo permaneci me indagando como aquilo acontecia. Acho que ali já era paixão! O cinema, especificamente, entrou na minha vida aos dez anos, quando assisti
ET, de
Spielberg. Aí sim, a telona, que experiência arrebatadora! Lembro como se fosse hoje: o cinema lotado e eu sentada na escadaria da sala, em êxtase. O filme tinha uma tecnologia avançadíssima para a época, o que me marcou profundamente. Como eles faziam para a bicicleta voar? Mas, aos 26 anos, já trabalhando como atriz em SP, que decidi ser cineasta, ao assistir
Central do Brasil, de
Walter Salles. Eu acho que assisti a esse filme umas sete vezes, e sempre sozinha. Sou da época que se alugava sete filmes, por R$ 7, durante sete dias. Quando você devolvia antes, que era o meu caso, conseguia bônus para um novo pacote e assim fui me formando, no
VHS. Assisti a tanto filme, que não me lembro nem mais o nome, mas tudo está guardado em algum lugar!
LC: A Mostra surgiu numa sinergia entre nós três à época do levante feminista que acontecia em 2016 no Brasil. Foi uma proposta da gente se juntar e conhecer as mulheres do audiovisual baiano para “fazer alguma coisa juntas”. Tínhamos a ideia de exibir nossos filmes e conhecer os das outras mulheres. Na época, eu tinha uma pequena coleção de filmes sobre o universo feminino, uns 18 curtas sobre aborto, violência contra as mulheres etc., que queria exibir para as mulheres também. Eu já era conectada às questões de gênero. Então, depois de algumas tentativas frustradas de juntar filmes e mulheres numa criação e gestão compartilhada de um evento, resolvemos encabeçar a Mostra meio que no ímpeto de, de fato, “fazer alguma coisa” para saciar a sede que tínhamos (e ainda temos!) de sermos escutadas, visibilizadas, contra qualquer tipo de apagamento criativo e artístico, que a gente vivencia aqui na Bahia ou em qualquer lugar do mundo! O sistema patriarcal nos impõe essa situação e a Mostra chegava como um respiro, uma ação concreta, o nosso antídoto para tanta invisibilidade. A partir das três edições, realizadas em 2017, 2018 e 2019, percebemos que todas as 54 mulheres diretoras e gestoras como nós, profissionais do audiovisual da cidade de Salvador e do Estado da Bahia, que sustentam o evento diretamente com a gente, são hoje uma rede viva de atuação na área, com muito mais visibilidade, reconhecimento e autonomia criativa do que antes. Hoje, sabemos quem são as caras! Nós hoje nos reconhecemos! Sabemos quem somos! Estamos em vários projetos, em múltiplas funções, em várias produtoras, saindo do Estado, do País. Sabemos também que é apenas o começo, que cada vez mais estaremos ocupando os espaços de poder, porque não tem mais volta. Sabemos do nosso valor. Se nós mulheres não colocarmos a coroa na cabeça, ninguém o fará! No total, chegamos à casa de cerca de 90 pessoas envolvidas direta e indiretamente no projeto na última edição. Para nos firmarmos, e isso significa ter um público assíduo nos sete dias do evento, precisamos de patrocínio. A 4ª edição está programada para o final de 2020, mas só realizaremos se tivermos patrocínio. Temos valor e sabemos do valor do evento para a cidade de Salvador e, além, para o Brasil, minimamente. Exibimos 156 curtas do Brasil inteiro na 3ª edição. Nossa ideia é crescer mais ainda, internacionalizando o evento, mas pra que isso aconteça, precisamos, e merecemos, o investimento do setor público e privado. Desde a terceira edição, temos
Dayane Sena como sócia também do projeto e responsável pela produção executiva. Então, cada vez mais, estamos nos profissionalizando e agregando profissionais de valor e experiência como Day, que, com a gente, tem se mobilizado para que a 4ª edição aconteça.
Desde: E o que é ser mulher no cinema?
LC: É como ser mulher na vida. Somos silenciadas ou nossas opiniões não são levadas em consideração como gostaríamos. Salvo a conduta de alguns poucos homens conscientes, que praticam a igualdade de ser, estar e viver com mulheres. Para permanecermos num ambiente saudável de trabalho, temos que ter jogo de cintura e ensinar o respeito. Por outro lado, sinto que tenho atraído cada vez mais trabalhos diferenciados, em que as mulheres estão na linha de frente, o que faz toda a diferença. E também cheguei numa etapa profissional em que tenho firmado parcerias com amigos, artistas e profissionais que jogam junto com fidelidade, leveza e alegria.
Desde: Você é roteirista, diretora, atriz e produtora na Segredo Filmes, que está em atividade desde 2013. Fazendo um trocadilho, qual é o segredo para fazer cinema independente no Brasil? E na Bahia?
LC: Ufa! O maior segredo é ser positiva, porque se eu for aqui reclamar que a
Prefeitura de Salvador, o
Governo do Estado e o
Governo Federal não apoiam, não investem o suficiente em editais e projetos, é clamar de novo, é clamar pela escassez, pela falta de investimento, pela falta de respeito com a arte e a cultura nesse país. Uma cidade, um Estado que fabrica gênios como
Glauber,
Caetano,
Gil,
Bethânia,
Riachão,
Caymmi,
Jorge Amado,
Bel Borba e muitos, muitos, muitos outros… deveria tem um mínimo de amor-próprio. Mas mudou alguma coisa? Adiantou a gente reclamar? A gente consegue se unir enquanto classe? Não! Quem sabe com o
COVID isso muda. Tenho esperanças! Mas, o que sabemos é que não temos formação política no Brasil, não sabemos exigir os nossos direitos. E quando conseguimos um mínimo de organização, como foi na “Era
Lula–
Dilma”, não soubemos manter as políticas e valorizá-las. Honestamente, não acredito mais nesse sistema. Ele é caduco, com teorias e práticas velhas, viciadas, é uma “Matrix” da exploração do trabalho e do capital, é um sistema de compadres brancos que se acham europeus e que repetem a violação e o roubo do nosso tempo, da nossa vida, como sofreram os antepassados desses mesmos homens. Está tudo errado. Então… o que me mantém positiva, criativa? São as parcerias, escambos, trocas com as pessoas. Os artistas salvam os artistas! Efetivamente, se cada um de nós não nos sintonizarmos com essa outra frequência para realizar os nossos sonhos, nada muda, continuaremos no limbo do limbo. O segredo é estarmos conscientes da frequência que a gente atua e agirmos na frequência que nos eleve! A Bahia me ensinou que, ou você tem uma atitude proativa, confiante, com parceiros, amigos, na fé, ou você não realiza nada aqui. Ficar esperando editais e empresas apoiarem é uma falácia. Na
Segredo Filmes acreditamos e praticamos esta outra frequência: de um sistema de trabalho e economia solidária, onde um colabora com o outro, ganha em um lugar, repassa o cachê e vai realizando os sonhos, os projetos. E claro, não somos
Polianas! Quando abre um edital, uma oportunidade, buscamos estar prontos! Como diz Hamlet, estar pronta é tudo!
Desde: Na Segredo Filmes, você já realizou os curtas CARMEN (2013), TERESA (2014) e CAROLINA (2017), que, com ANASTÁCIA (em fase de captação de recursos), integram a Tetralogia da Indignação. DISTOPIA ainda é inédito. Contudo, a mulher é, quase sempre, tema central de suas produções. Por quê?
LC: Aconteceu de maneira espontânea. Na hora que vi, já estava enredada no gênero. Já tinha o background com a pesquisa em torno da vida e obra de
Frida Kahlo, mas não pensava que no cinema iria escrever personagens femininas. Fui então sistematizando as criações na “Tetralogia” e tive influências no entendimento disso, uma delas foi com
Minom Pinho, no
Kinoforum Labs – Mulheres no Cinema. Ela me despertou para a compreensão de que todas as personagens fazem parte de mim. Por muitas vezes, não fui escutada como
Carmen ou fui esquecida como
Teresa e como
Carolina. Para não permanecer na invisibilidade, aprendi a tomar partido de mim.
Anastácia fecha a “Tetralogia”. É um roteiro de curta de ficção selecionado para o
Laboratório de Roteiros do PanLab – 2019, que escrevi para
Johsi Varjão atuar. A personagem é uma mulher negra que não mais se silencia, ela vai além, denuncia a violência vivenciada. Me vejo também nessa personagem. São várias as violências que sofremos e não é mais possível nos calarmos. Aprendemos a falar, a denunciar. Não tem mais volta.
Distopia está sendo lançado neste ano de 2020. É o único “filho”! E toca na minha relação com o masculino e a família. Ainda estou processando… Dois outros projetos estão em andamento, o curta-documentário
A Residência e o longa-documentário
Mátria, neles as mulheres também são protagonistas e falo de maternidade e família.