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Ruth de Souza: uma estrela (também) da TV!

 Atriz brilhou no teatro, no cinema e deixou a sua marca na televisão brasileira

Ruth de Souza: talento e perseverança. Imagem: reprodução do site da Imprensa Oficial

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

É impossível comemorar os 70 anos da televisão brasileira sem citar pessoas que dedicaram toda a vida para essa fantasia acontecer. Nesse sentido, o nosso destaque vai para a atriz Ruth de Souza (1921-2019). Em 2007, foi publicada a biografia Ruth de Souza: estrela negra, de autoria de Maria Angela de Jesus. A obra integra a famosa e bem-sucedida Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que tem como objetivo “preservar a memória da cultura nacional e democratizar o acesso ao conhecimento”.
O livro parte de um depoimento de Ruth a Maria Angela e isso torna a narrativa bem intimista, como se o leitor estivesse na sala da homenageada, ouvindo aquela conversa interessante. Ao tomar parte do bate-papo, ele fica sabendo que a artista carioca não gostava de revelar a idade, de palavrões, nem de falar de sua vida íntima. Embora, se sentindo à vontade diante da autora, soltava uma coisa aqui outra ali. Como, por exemplo, o relacionamento que teve com Abdias do Nascimento, considerado um dos mais marcantes da sua vida. A propósito, com Abdias, fundou, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), importante referência nas artes cênicas do Brasil. No TEN, fez grandes papéis e foi, de acordo com o que é documentado na biografia, a primeira Desdêmona negra do Brasil. Tal personagem integra a peça Otelo, do inglês William Shakespeare. Ao longo da carreira no teatro, atuou em Vestido de Noiva (Nelson Rodrigues) e Quarto de Despejo (adaptação de Edy Lima com base no livro de Carolina Maria de Jesus). Em 1983, Ruth voltou a representar Carolina num episódio de Caso Verdade, programa exibido pela Rede Globo. “Foi um dos melhores trabalhos que fiz na televisão. Era um ótimo papel, interpretando uma pessoa viva, e com uma produção extremamente caprichada da Rede Globo”, p. 62.

Ruth de Souza e Abdias do Nascimento em Otelo, de Shakespeare. Imagem: reprodução do livro

Nascida no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, Ruth viveu um tempo em Minas Gerais e voltou para o Rio quando tinha nove anos, onde fixou residência em Copacabana. Filha de Alaíde Pinto de Souza e de Sebastião Joaquim Souza, a atriz sempre foi apaixonada por cinema. Apesar de o livro trazer a informação de que Ruth evitava fazer discursos sobre preconceito racial, a atriz tinha consciência da violência racista que estava presente nos estúdios e nos palcos pelos quais passou: “O fato é que realmente não existia espaço para o ator negro. Era uma realidade da época. Hollywood também massacrava seus atores negros. Isso é uma verdade”, afirma na página 29.
O sonho de trabalhar com cinema se concretizou na vida adulta e Ruth passou pela Atlântida e pela Vera Cruz, companhias cinematográficas que revolucionaram a sétima arte brasileira. Nelas, entre outros, fez os filmes Terra Violenta (Atlântida, 1948) e Sinhá Moça (Vera Cruz, 1953), que rendeu a sua indicação para o Prêmio Saci, do qual foi vencedora.

Ruth de Souza: linda pela própria natureza. Imagem: reprodução do livro

A biografia mostra a parceria de Ruth com alguns notáveis colegas de trabalho, como Grande OteloOscarito e Mazzaropi. Faz críticas duras em relação a esse último: “[…] Mazzaropi era uma pessoa muito difícil e era muito pão-duro. Era até um pouco racista. Ele não me dava muita atenção. Não era meu amigo. Nunca foi! Ele não era nem um pouco generoso”, p. 83. Durante um ano, estudou teatro nos Estados Unidos. Para ela, “o teatro é a base da arte de representar”, p. 74. Ainda na mesma página, complementa: “Acho que todo ator tem de fazer teatro para depois partir para o cinema ou televisão. Só assim o artista vai realmente entender o que está fazendo, o que é ser ator”.
Brilho na TV
Na televisão, Ruth fez novelas, especiais e participou de programas de humor, como Os Trapalhões. Passou pela ExcelsiorTupiRecordTV e Rede Globo. A primeira novela que fez foi A Deusa Vencida (Excelsior, 1965) e considerava o trabalho em A Cabana do Pai Tomás (Globo, 1969) com um dos mais importantes da sua carreira na TV: “Se fizer um balanço da minha carreira na televisão, o trabalho em A Cabana do Pai Tomás foi um dos mais importantes. Foi a única novela que estrelei mesmo, fazendo o papel principal da trama: a mulher do protagonista, Sérgio Cardoso”, p. 96. Na trama, Ruth fazia Cloé,  principal papel feminino da novela.

Ruth como Cloé em A Cabana do Pai Tomás (1969). Imagem: reprodução do livro

No livro, ela cita outros trabalhos marcantes que fez na caixinha setentona: Duas Vidas (1977), Sétimo Sentido (1982) e O Grito (1975), todos da Rede Globo; mas também critica outros, como Sinal de Alerta (Globo, 1978) e O Rebu (Globo, 1974). Sobre Sinal de Alerta, esbraveja “Que novela horrorosa! Era sobre poluição, com direção de Walter Avancini. Um papel chato, que não me traz grandes lembranças”, p.  101. Sobre O Rebu, é categórica: “Era um papel que não ia me acrescentar nada. Pedi para sair!”, p. 102. A atriz também não via com bons olhos a pressão imposta em produções de TV, julgava desnecessária: “A televisão tem uma capacidade muito maior do que o cinema para fazer uma cena bonita, mesmo com toda a correria. Aliás, uma correria que não tem tanta necessidade. Não vejo porque é preciso correr tanto, fazer tudo para ontem, o que é um horror! E o que é a televisão? É uma boa história, um bom texto. Quando você percebe cada ponto, cada vírgula, isso é um bom texto”, p. 70 e 71.
Ler a biografia de Ruth de Souza é estar diante de uma mulher determinada, segura, sem meias palavras, consciente do seu talento e que sempre estava disposta a trabalhar. Durante toda a vida, Ruth mostrou que ser perseverante era o caminho para conquistar os próprios sonhos. Num dos trechos da excelente obra, Maria Angela de Jesus destaca uma reflexão da atriz sobre essa característica: “A força de uma pessoa que tem talento, que persiste no sonho e tem um objetivo, acaba fazendo as coisas acontecerem. Só é preciso planejar. A gente tem de planejar no seguinte sentido: O que eu quero?! Como é que vou conseguir isso? Como é que vou chegar onde quero?“, p. 52. Ruth nunca se casou nem teve filhos, mas deixou para a cultura brasileira um legado que vai atravessar gerações.
Referência:
 
JESUS, Maria Angela de. Ruth de Souza: estrela negra. 2. ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. (Coleção Aplauso).
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A telona se rende à telinha: o olhar do cinema para a televisão

 Curtas mostram como a televisão provocou mudanças nos hábitos das famílias

Cenas de Túnel e 29 Polegadas: a TV no cinema. Imagens: reprodução do vídeo

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Durante esses 70 anos de presença no Brasil, a televisão foi tema de um monte de coisa. Nem o cinema nacional ficou alheio à revolução provocada pelo aparelho que chegou por aqui em 1950, numa aventura capitaneada por Assis Chateaubriand. Das produções feitas pelos amantes da Sétima Arte, vamos destacar dois curtas-metragens: Túnel (Bruno Kennedy e Mayra Jucá, 5 min, 1994, Rio de Janeiro) e 29 Polegadas (Bernard Attal, 21 min, 2004, Bahia).
Em Túnel, a televisão ganha uma relevância tão grande que nada é mais importante do que aquilo que está sendo exibido nela. Há um círculo vicioso que faz com que algumas famílias retratadas no filme não percebam (ou não façam nenhum esforço para isso) o que acontece ao seu redor. O curta apresenta um adolescente que assiste a um programa de TV no qual uma família aparece fazendo a maior algazarra na mesa, enquanto o pai assiste a outro programa, que, por sua vez, traz uma família preconceituosa que só para de despejar a sua violência verbal quando a vinheta do Jornal Olho de Vidro, da TV Olho de Vidro, entra no ar. O telejornal é daqueles que mostram “o mundo cão”, com repórter fugindo de tiroteios e protesto de moradores. No final, o adolescente do início volta a aparecer. Dessa vez, com partes do corpo gangrenadas. Inclusive, a orelha até cai. Ou seja: o ser humano se anulando por causa da programação da TV. Atualmente, isso acontece com o vício nos smartphones, não é?
29 Polegadas retrata um lugarejo em que o marido, funcionário público, sai para trabalhar e a sua mulher, que é dona de casa, sai para traí-lo com o vizinho. O curta, produzido na Bahia, é estrelado pelos atores Bertho Filho (um gênio da atuação), Claudia Di Moura e AC Costa. Quando o marido, interpretado por Bertho, compra uma TV de 29 polegadas, há uma mudança de comportamento no casal de amantes. Em vez de a mulher ir para a casa do vizinho, é ele quem passa a visitá-la, em busca de prazeres (sexuais e os proporcionados pela programação das emissoras). É o “televizinho”. O marido, por outro lado, se mostra como um cara apenas preocupado em prover o seu lar. Quando compra a televisão, isso fica ainda mais evidente: ele chega do trabalho, não interage com a companheira, mas tem todo o tempo do mundo para assistir aos programas veiculados na TV.
Ninguém duvida do poder de transformação que a caixinha de 70 anos provocou na sociedade. Os dois curtas abordam isso. Os filmes mostram, com leveza e com um tom crítico, como um aparelho é capaz de dominar o homem. As produções servem para suscitar debates em ambientes de produção de conhecimento, como escolas e universidades. A TV no cinema é uma TV para ser repensada. Isso é sempre bom.
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Weslei Machado Cazaes: de axé, da dança, das ciências e de mulheres

Criado por mãe, por vó, pela dança e pela UNILAB, Weslei Machado Cazaes celebra as suas raízes

Weslei Machado Cazaes: dança como afirmação de identidade. Foto: Marcela Barravento

Por Raulino Júnior

Entre tantos significados que encontramos da palavra axé em dicionários de iorubá, energia e força são os que mais têm a ver com a vida de Weslei Machado Cazaes. O santo-amarense de 27 anos é daquelas pessoas que passam uma energia boa, mesmo para quem o conhece apenas pelas redes sociais digitais, e que usa a força que tem para começar, recomeçar e alcançar os seus objetivos. Filho único de Evandro e Nara, foi dentro de casa, tendo como referência duas das mulheres de sua vida [a mãe, Nadijanara; e a avó, Antonia (Toinha)], que ele aprendeu a percorrer bons caminhos. “Sou daqueles que dizem: ‘Filho criado por mãe e por avó’. Nesses 27 anos, percebo que sou grato demais a elas por ter sido criado tão somente por elas. Acho que a minha ida para a universidade, entrando em debates que antes não me interessavam ou meio que já tinha naturalizado em meu cotidiano, como a maioria dos meus, foi o ponto chave para eu refletir sobre minha vida, minhas relações com o mundo. Principalmente, na questão da mulher nessa sociedade defeituosa. Minha avó, como a realidade de uma maioria de mulheres, sobretudo negras, foi largada para criar sozinha de cinco crianças. Passou fome e se lançou ao mangue para amenizar. Lavou roupa dos outros, fez moqueca na folha pra vender, fez pamonha. Além de tudo, depois de ter vencido a fome total, ajudou a criar os filhos de meu avô com outra mulher. Minha mãe, mulher negra e quilombola, foi a filha que cuidou do caçula e teve que ficar para cuidar da mãe. Foi deixada sozinha para me criar! Interrompeu o ensino médio e só terminou quando eu já estava com uns dez anos, mais ou menos. Ela abdicou dos sonhos de jovem para se tornar uma adulta forçada! Enfim, essas coisas não são para eu dizer que são guerreiras, como se passar por isso fosse algo positivo. Não! Isso serve para eu lembrar que sou grato por elas não desistirem de viver e nem de me dar essa vida que hoje tenho. Por mais que eu esteja condenado a reproduzir atitudes machistas dessa sociedade patriarcal, tive uma criação capaz de me colocar em bons caminhos, que me levaram a analisar essas dinâmicas e me policiar em não cometer o mesmo erro com mulheres que aparecessem em minha vida. Melhor do que isso, é tentar criar um ser humano capaz de respeitar as pessoas sem distinção de raça, gênero, sexualidade, religião etc., mas sempre atento à perversidade humana”, desabafa.
Quem também contribuiu muito para a sua formação humana, cidadã e atuou como uma mãe na sua vida foi a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), instituição na qual se formou em Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades e Licenciatura em Ciências Sociais. “Ter a UNILAB nesta região, politicamente massacrada, é dar à nossa região oportunidade de levantar ainda mais a voz, utilizando outras ferramentas para combater as diversas violências que sofremos por sermos pretxs, baianxs, interioranxs etc. Se formos fazer uma pesquisa com xs brasileirxs da UNILAB, sobretudo daqui do Recôncavo, cada um vai dizer que é o primeiro da família a ir à universidade. Isso é resultado de um processo de exclusão que passamos. Além de termos uma educação básica precária, fomos educados [a pensar] que a nossa escolarização é apenas até o ensino médio. Depois disso: trabalho! A UNILAB vem para quebrar muitos paradigmas. O primeiro, é esse limite que nos deram; o segundo, é nos localizar na história, pois, até antes da UNILAB, eu sabia muita coisa da Grécia, Roma e nada dos povos que nos deram origem ou da comunidade que sou. A UNILAB vem me dizer que devemos desnaturalizar as coisas do mundo, deixar de achar que as coisas são porque são. Ela vai nos mostrar que existem diversas visões de mundo e essa que naturalizamos foi totalmente arquitetada por colonizadores, que tentaram apagar a história afro/indígena, e assim tivemos a chance de desconstruir muitas coisas que antes tínhamos como normal. Entender que África não é um país, mas um continente com 54 países dentro, é se libertar das correntes mentais que foram colocadas em nós”.
Dança, candomblé e intolerância religiosa
Weslei leva a energia dele também para a arte. Nesse caso, a dança, que entrou na sua vida desde que tinha seis anos de idade. Passou pela Companhia de Dança Afro do Vale do Iguape, pelo Balé Afro do Recôncavo e pelas quadrilhas Raízes do Iguape e Girassol do Iguape. Cada experiência deixou um ensinamento, principalmente porque aprendeu a conviver em grupo e a respeitar ainda mais as subjetividades. “O Balé Afro do Recôncavo me fez dar muito mais de mim em relação à expressão na dança dos orixás. Lá, pude aprender outros movimentos e tomei conhecimento das origens. Por exemplo, o movimento de Xangô, eu fazia no antigo grupo afro, só que nunca me disseram da relação ou não lembro se me disseram. No Girassol do Iguape, passei um curto tempo, fazendo abertura na dança. Daí, depois de um tempo parado, em 2011, volto ao Raízes. Na Companhia de Dança, eu era o mascote, único homem da minha idade e isso me fez passar por preconceito, pois nessa época, e talvez um pouco hoje, as pessoas imaginam que quem dança afro é mulher ou ‘viado’, usando o termo popular ofensivo que usam. Nessa Companhia, eu me inicio na dança afro. Por último, Raízes do Iguape. Sempre digo e ninguém discorda: o grupo Raízes do Iguape é uma escola de vida. No Raízes, eu aprendi a conviver em grupo, a trabalhar para não só dançar, mas levar um legado ancestral que a gente traz na forma de andar, falar, dançar, sorrir. Quando a gente sai para os concursos, fazemos questão de dizer que nunca vamos sozinhos/as, sempre levamos nossa comunidade, pois é através dela que temos condições de estar em quadra, ano após ano. O Raízes ensinou regras de convivências, de respeitar a religião, sexualidade, opinião política de todos e todas. Somos uma família, nos momentos difíceis e alegres. Falar do Raízes é falar de uma história de gerações. São mais de 40 anos de (r)existência!”.

Weslei trocando energia com o mar. Foto: Uiny Lene

Da dança afro para o candomblé, foi um pulo. De alguns anos, é importante ressaltar. Como é muito comum na sociedade brasileira, Weslei teve toda a sua formação religiosa baseada no catolicismo. Ia à catequese, sem muita empolgação, só porque a mãe mandava. Mais tarde, para agradar uma namorada, visitava a Assembleia de Deus. Antes dessa experiência, fazia estudos bíblicos com Testemunhas de Jeová, mas não se sentia bem. “Faz pouco tempo que estou no candomblé. Sempre visitava um candomblé lá da comunidade, só que não entendia nada, só sei que não queria sair dali. Em 2015, quando entrei na UNILAB, fui com uns colegas em uma festa de Caboco aqui em Santo Amaro. O motivo que me levou entrar no candomblé, eu tenho certeza, foi a minha ancestralidade que me direcionou. Sempre dancei movimentos de orixá na Companhia de Dança Afro, mesmo não sabendo do que se tratava, gostava; visitava um candomblé, mesmo sem incentivo de amigo ou familiar, e eu gostava. Quando estou em função no axé, é como se eu estivesse no meu real cotidiano. Eu defendo muito que o candomblé é um mundo à parte desse que vivemos. O candomblé é uma escola, é uma casa, é uma comunidade. Temos uma língua, culinária, uma interpretação da realidade, natureza. Falamos de economia, política etc. Minha mãe pequena fala que o candomblé é um poço fundo que ninguém nunca consegue chegar. Ela fala isso para afirmar que o aprendizado que se tem é infinito e nem tem muito tempo para aprender tudo, até porque existem orientações dos nossos orientadores/as (babalorixás/ialorixás) e do nosso próprio Orixá”.
Contudo, apesar de toda a contribuição do candomblé para a cultura brasileira, independentemente da vinculação religiosa, a intolerância faz parte do cotidiano do povo de santo. Para Weslei, pequenas ações coletivas podem contribuir para derrubar essa estrutura. “Para combater a intolerância religiosa, tem que colocar o debate racial dentro, pois não se separa. É muito difícil falar de intolerância religiosa e não falar de racismo, pois a maioria dos casos de desrespeito à religião do outro está relacionada às religiões de matriz africana e essas são de origem africana, mesmo que tocadas pelo catolicismo e religiões indígenas. Um exemplo de que é difícil acabar com a intolerância, é quando encontramos, nos Tribunais de Justiça, um crucifixo; quando encontramos na Câmara de Vereadores, uma bíblia; ou quando temos “uma lá ela” de um presidente que retira obras dos orixás do Palácio do Planalto. Percebemos que a intolerância é difícil de acabar a nível macro, quando temos novelas hoje com timidez e pouca bagagem para incluir o candomblé no cotidiano das pessoas do Brasil todo. Mas a nível municipal, podemos, ao menos, promover um debate maior sobre o assunto, criar organizações das religiões, fazer parcerias com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi). Tudo depende da administração. Acredito, inclusive, que é a partir do micro que atingimos o macro, ao menos nesse contexto que estamos… Daqui de baixo que é fácil derrubar as estruturas”.

Santiago do Iguape, Brasil e a Lua

Weslei Machado Cazaes. Foto: autorretrato

“Minha relação com Santiago do Iguape é ancestral, pois os que me antecederam viveram ali e isso já cria esse laço, esse cordão umbilical, entende?!”. É assim que Weslei se refere à vila que lhe deu régua e compasso. Embora tenha nascido em Santo Amaro, é em Iguape que ele é. “É justamente o meu lugar no mundo, no sentido de pertencimento. Esse sentimento de pertencer a um lugar, eu penso em uma raiz de árvore, que constrói uma ligação de energia com aquele solo, aquele território que ela não só nasceu, mas cresceu e se adaptou”, filosofa. Ao ser indagado se o Brasil tem jeito, analisando pela ótica das Ciências Sociais e das Humanidades, Cazaes é esperançoso: “Tem jeito, sim, só não sei para quem. Acredito que a raça humana tenha sede de poder sempre. Assistir a uma série, The 100, que mostra um pouco disso. Mudam de planeta, criticam o modo de outros governar, mas nunca deixam de estar sempre acima de um povo. Então, pensar que o Brasil é um país que tem jeito, no sentido de ser o tal paraíso, acho que ainda está no campo da fantasia. Mas quem sabe, sei lá, no século 30, isso comece a mudar… “A esperança é a última que morre”.
Para Weslei, os amigos é mais uma versão de família. “Digo, muitas vezes, que família não é necessariamente, para mim, de sangue. Eu acredito muito que é o orixá que coloca na minha vida pessoas que valem a pena. Outras passaram por mim e não ficaram, por não conseguirem alguma coisa… Eu já peguei pessoas falando mal de mim e mesmo assim agia na falsidade. Então, essas pessoas, naturalmente, sumiam de minha vida e isso é massa”. Amizade verdadeira ele tem com a Lua, que exerce um fascínio desde sempre: “Minha relação com a Lua sempre foi curiosa… Talvez, por ser algo que está distante desse planeta e que, talvez, se eu pudesse ir para lá, me livrava de muita coisa desnecessária. Só sei que ela me emociona. Em 21 de dezembro de 2018, se tornou ainda mais especial, pois minha namorada me pediu em namoro numa noite em que a Lua estava cheia. Então, ela foi a nossa plateia. Inclusive, em momentos em que estamos distantes e vemos a Lua, nos reconectamos e lembramos um do outro. Aí, mandamos fotos”. Weslei tem força, energia e romantismo.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

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Canais de Weslei Machado Cazaes nas redes sociais digitais:
 
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Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Weslei Machado Cazaes
Data da entrevista (feita por e-mail): 7/10/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
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Televisão na Música: a crítica de Chico Buarque e dos Titãs

Artistas usam canções para criticar a TV, enfatizando a alienação causada por ela

A MPB e a crítica a um dos canhões da indústria cultural: a televisão. Imagens: reprodução da internet

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

A televisão sempre esteve no centro dos debates, para o bem ou para o mal. E a arte, com a sua capacidade de expressar valores de uma época, e até de prenunciar o que não é percebido num momento presente, é um instrumento eficaz para manifestar opiniões acerca de comportamentos e da indústria cultural. Foi o que Chico Buarque fez, em 1967, ao refletir sobre a caixinha mágica que completou 70 anos há um mês. O artista carioca, que nasceu seis anos antes da chegada da TV no Brasil, fez uma crítica sobre ela através de um samba-canção lançado 17 anos após o feito de Assis Chateaubriand. A música A Televisão, de autoria do próprio Chico, que integra o disco Chico Buarque de Hollanda – Volume 2, o terceiro da carreira do artista, mostra o poder de alienação do objeto septuagenário.
Na obra, um narrador-onisciente conta a história de um “homem da rua” que, a princípio, resiste, mas, com o tempo, se rende à magia da televisão. O homem da rua, no contexto, é um boêmio, que é cooptado pela telinha. Na primeira estrofe do samba, a resistência do personagem em relação ao novo meio de comunicação fica bem evidente:
Na obra, um narrador-onisciente conta a história de um “homem da rua” que, a princípio, resiste, mas, com o tempo, se rende à magia da televisão. O homem da rua, no contexto, é um boêmio, que é cooptado pela telinha. Na primeira estrofe do samba, a resistência do personagem em relação ao novo meio de comunicação fica bem evidente:
O homem da rua
Fica só, por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa, não vai não
Ou seja: o homem prefere ficar só a acompanhar o entusiasmo da família diante da programação da TV. Para um boêmio, ficar sem companhia é um teste de fogo. Vale ressaltar que, por muito tempo, algumas famílias tinham o hábito de se reunir diante da televisão para acompanhar os seus programas. Nesse sentido, as reuniões serviam como uma prática de lazer. A segunda estrofe complementa a primeira e justifica o motivo pelo qual o homem não vai para casa:
Em casa, a roda
Já mudou, que a moda muda
A roda é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão
Em casa, todos estão hipnotizados e mudos. Ninguém se comunica. “A roda é triste/A roda é muda”. Quem reina é a televisão. Aqui, Chico consegue trazer uma imagem emblemática para o que é cantado. Fazendo uma associação com os dias de hoje, é possível substituir a palavra “televisão” por “smartphone”. Além disso, quando fala que “a roda já mudou, que a moda muda”, se refere aos diferentes públicos que acompanham a programação. Alguns atrações são mais voltadas para os adultos, outras para crianças e adolescentes. Dessa forma, a audiência  vai mudando. Toda hora é uma moda, um programa diferente, para um público diferente.
Até a lua, em vão, tenta chamar a atenção dos telespectadores:
No céu, a lua
Surge grande e muito prosa
Dá uma volta graciosa
Pra chamar as atenções
 
O homem da rua
Que da lua está distante
Por ser nego bem falante
Fala só com seus botões
Chico, de forma genial, traz o verso “Fala só com seus botões”, mostrando que o homem da rua está tão isolado quanto quem está em casa, falando com os botões da TV. E o verso é propositalmente ambíguo: o homem fala “sozinho com os seus botões” e fala “somente com os seus botões”. Nas estrofes seguintes, a crítica ao fato de a TV mudar os hábitos e substituir algumas práticas culturais:
O homem da rua
Com seu tamborim calado
Já pode esperar sentado
Sua escola não vem não
 
A sua gente
Está aprendendo humildemente
Um batuque diferente
Que vem lá da televisão
E a lua, como elemento da natureza, insiste em chamar a atenção: muda de fase, evolui, mas não é percebida nem pelo homem da rua, pois “não estava no programa” (outra ambiguidade!):
No céu, a lua
Que não estava no programa
Cheia e nua, chega e chama
Pra mostrar evoluções
 
O homem da rua
Não percebe o seu chamego
E por falta doutro nego
Samba só com seus botões
Nestas estrofes, Chico fala da alienação de forma mais contumaz. É a TV interferindo nas relações humanas e fazendo até com que a vida pare diante dela:
Os namorados
Já dispensam seu namoro
Quem quer riso, quem quer choro
Não faz mais esforço não
 
E a própria vida
Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida
Que vem lá da televisão
O homem da rua, enfim, é vencido e vai ligar os botões da TV. A máquina dominou o homem.
O homem da rua
Por ser nego conformado
Deixa a lua ali de lado
E vai ligar os seus botões
 
No céu, a lua
Encabulada e já minguando
Numa nuvem se ocultando
Vai de volta pros sertões
A seguir, ouça o samba de Chico.

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Em 1985, com três anos de vida, foi a vez da banda Titãs criticar a televisão. Contudo, a crítica do grupo paulistano foi muito mais ácida que a de Chico. Tanto que Lulu Santos, um dos produtores do disco Televisão (o segundo da carreira do grupo), que traz a canção homônima, ponderou a presença dela no álbum. “Dizia-se atingido pela canção de Arnaldo AntunesMarcelo Fromer e Tony Bellotto, cujos versos não poderiam ser mais diretos: ‘É que a televisão me deixou burro, muito burro demais/E agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais‘. Lulu alegava que também dependia da TV e que a música poderia abortar o sucesso do LP na mídia. Mas os Titãs estavam decididos a não abrir mão da faixa”, afirma Natan Barros Pereira, em seu Trabalho de Conclusão de Curso defendido em 2010, na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e intitulado “Ó, Cride! Fala pra mãe que o discurso anticonsumismo dos Titãs os capturam [sic]: Análise do álbum Televisão. O fato é que o receio de Lulu não se confirmou. A música fez bastante sucesso e a banda se apresentou em diversos programas de TV.

Contudo, quando a gente analisa a letra, a tendência é concordar com Lulu, que, em 2017, regravou a música com um arranjo totalmente diferente do original. Os dois primeiros versos da canção já prenunciavam o que estava por vir:
A televisão me deixou burro, muito burro demais
Agora, todas coisas que eu penso me parecem iguais
Aí está uma crítica à massificação e a uma padronização de comportamento estimulado pelos programas de TV. O eu lírico denuncia que já não reflete sobre nada que vê e se assume vítima da globalização. Os dois versos seguintes abordam a alienação do indivíduo, que, em primeira pessoa, fala de sua própria vida com o advento da televisão:
O sorvete me deixou gripado pelo resto da vida
E, agora, toda noite quando deito é: “Boa noite, querida”.
 
O “Boa noite, querida” pode ter duas interpretações: a primeira, como se o sujeito fosse tão manipulado pela TV que a considera como uma pessoa, membro da família. É aquela pessoa que responde ao “boa noite” dos apresentadores de jornal, tendo a falsa impressão de uma companhia; a segunda, é o eu lírico reproduzindo aquilo que vê na TV, o comportamento visto como ideal. Então, antes de dormir, tem que se cumprir esse ritual de dar boa noite. A citação do sorvete remete ao consumismo exagerado de algo que a TV anunciou e considerou como bom.
No refrão, os Titãs utilizam o bordão do personagem Pacífico, interpretado por Ronald Golias no humorístico A Praça da Alegria (embrião de A Praça é Nossa), que estreou em 1956,  na TV Paulista:
Ô, Cride, fala pra mãe!
Que eu nunca li num livro que um espirro fosse um vírus sem cura
Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!
Ô, Cride, fala pra mãe!
 
Cride é o apelido de Euclides Gomes dos Santos, amigo de infância de Golias. O verso “Que eu nunca li num livro que um espirro fosse um vírus sem cura” complementa o crédito dado à TV quando o eu lírico diz “O sorvete me deixou gripado pelo resto da vida”É o pensamento de que tudo que é veiculado na TV, é verdade. Os Titãs mostram um sujeito que vive prostrado diante do objeto e o associam a um burro. De fato!
A mãe diz pra eu fazer alguma coisa, mas eu não faço nada
A luz do sol me incomoda, então deixa a cortina fechada
É que a televisão me deixou burro, muito burro demais
E, agora, eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais
 
O personagem está tão hipnotizado pela televisão que não desgruda da tela, a ponto de não fazer nada. “Esse menino passa o dia todo assistindo. Vai procurar alguma coisa para fazer”, diria a mãe dele. O próprio eu lírico tem consciência do efeito nocivo desse comportamento. O agressivo verso “E, agora, eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais” confirma isso. De acordo com a música, a televisão aprisiona e não faz pensar, ter criticidade.
No final, o poder da televisão fica tão evidenciado, que o eu lírico afirma:
Ô, Cride, fala pra mãe
Que tudo que a antena captar, meu coração captura
Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!
Ô, Cride, fala pra mãe!
Tudo que passa na TV, passa a fazer parte da vida do personagem. Ele crê em tudo! Se deu na TV, é verdade. Há uma passividade diante do que se vê. O cara foi capturado. Abaixo, ouça Televisão.

As duas músicas são pontos de vistas que, obviamente, devem ser considerados. “Assim caminha a humanidade”: com percepções diferentes sobre as coisas. A crítica é sempre importante e faz crescer. Que a TV dos próximos setenta anos não repita os erros do passado e seja ainda mais interessante.

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Entre a Vitória e o Paraíso: os caminhos de Vagner de Alencar

Jornalista, escritor e mestre em educação que caminha entre a Bahia, São Paulo e o mundo

Vagner de Alencar: educação e comunicação para mudar o mundo. Foto: Ira Romão

Por Raulino Júnior

O filho mais velho de Osmilda e Valmir, irmão de WadilaUeslenDaniel e Daniele, nasceu em Vitória da Conquista, cresceu no povoado Cavada II, em Barra do Choça, e morou por mais de dez anos em Paraisópolis, considerado o maior bairro favelizado da cidade de São Paulo. Já foi para os Estados Unidos, Colômbia e Argentina. Contudo, questionado sobre qual é o seu lugar no mundo, não titubeia: “Meu lugar no mundo acho que é o mundo, ainda quero desbravá-lo mais e mais. Mas meu porto seguro sempre será o povoado na Bahia, onde cresci”. Vagner de Alencar Silva (“Embora eu raramente use o Silva”) é um ariano determinado e perseverante. Aos 33 anos, o baiano é escritor, jornalista (formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie), mestre e doutorando em Educação: História, Política, Sociedade (pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP), cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias (AMJP), projeto pioneiro que tem como missão “minimizar as lacunas de informação e contribuir para a desconstrução de estereótipos sobre as periferias da Grande São Paulo”, que completa uma década em novembro deste ano. Em 2011, com a pauta Educação para quê? Universos educativos desperdiçados em Paraisópolis, feita em parceria com Bruna Belazi, foi um dos vencedores do 3º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão. Em 2013, em outra parceria com Bruna, lançou o livro-reportagem Cidade do Paraíso – Há vida na maior favela de São Paulo, fruto do TCC do curso de Jornalismo. Ler e contar histórias sempre esteve presente na vida de Vagner. O ingresso no curso de Jornalismo potencializou ainda mais isso. “Eu sempre gostei de histórias, mas não imaginei que pudesse ser jornalistas, e sim professor. Como já fui e ainda quero. O Jornalismo meio que surgiu por acaso, quase como um devaneio. Eu já estava estudando Letras quando, com a mesma nota do Enem, tentei outros cursos por meio do Prouni. Jornalismo foi a primeira opção, fui aprovado no Mackenzie, então decidi migrar. A melhor decisão”, explica. O amor pelas letras pode ser lido nas crônicas que escreve no Medium. “Ainda vou escrever um livro de crônicas com histórias da Bahia chamado ‘O pé de angelim’, que é a árvore na qual minha mãe foi sepultada. O valor simbólico por si só já diz tudo”. No texto, Vagner narra parte da história da família e a morada de três vida no pé de angelim, que fica no quintal da casa de seu avô, em Barra do Choça. “É o texto mais bonito que já escrevi”

Jornalismo das Periferias

Vagner (também) de Paraisópolis. Registro feito por Anderson Meneses, em 2017

Ser agente de transformação social é uma premissa que acompanha Vagner em todos os projetos que atua. A Agência Mural é um deles e simboliza isso de forma contundente. Nela, junto com uma equipe, contribui para amplificar vozes de moradores das periferias. “Ter crescido sem ter espelhos para me inspirar foi difícil. Costumo dizer que hoje fico feliz em poder ser esse reflexo na vida de crianças e jovens da Bahia, da zona rural onde nasci, até mesmo das favelas de São Paulo. Se eu acreditava não ter uma missão na Terra, acho que ela já existe”. A AMJP nasceu de um curso de jornalismo cidadão ministrado pelo jornalista Bruno Garcez, que, na época, vivia em Londres e ganhou uma bolsa  de um instituto para trabalhar o tema em São Paulo. Após o curso, os jovens que participaram (cerca de 20 pessoas), com ajuda de um jornalista que trabalhava na Folha de S. Paulo, lançaram o blog Mural, hospedado no site do periódico, em novembro de 2010. Cinco anos mais tarde, lançaram, informalmente, a Agência Mural. Além de Vagner, Izabel MoiAnderson MenesesPaulo Talarico e Cíntia Gomes dirigem a organização.
De acordo com Vagner, a Mural mostra as periferias como elas são: “O noticiário sempre foi enviesado, com pautas estereotipadas, mostrando as periferias como algozes da cidade, violentas ou com o estigma de coitadinhas. Não nos sucumbimos ao terror. Ao contrário, mostramos as periferias como elas são: com seus problemas ligados à falta de infraestrutura e serviços, e as potencialidades que nelas existem, seja pelos moradores, por iniciativas locais etc.”. A Agência tem mais de 50 muralistas, como são identificados os correspondentes. Para atuar como tal, basta ser morador de periferia, ter interesse ou o mínimo de habilidade com comunicação. E de quem foi a ideia do nome? “O nome veio do Bruno, o cara que ministrou o curso em 2010: Mural Brasil. Daí, deixamos apenas Mural. Não há um sentido próprio, mas nós costumamos dizer que nos inspiramos na Revolução Muralista, uma revolução de artistas mexicanos, que pintaram muros no país como forma de protesto”.

O pesquisador e o cidadão do mundo

Vagner de Alencar. Foto: reprodução do Instagram

Vagner e a família deixaram a Bahia no fim dos anos 80. “A primeira favela na qual moramos foi Jardim Edite, perto da Rede Globo. Ela foi desapropriada e voltamos à Bahia. Alguns parentes migraram para Paraisópolis. Anos mais tarde, por conta do câncer de minha mãe, voltamos a São Paulo, dessa vez, para Paraisópolis, já que por lá tínhamos conhecidos. A minha história com Paraisópolis começa em 1995, onde vivi, em anos alternados, por mais de uma década”. E, de lá, partiu para o mundo: Colômbia (a passeio), Argentina (convidado para participar da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires) e Estados Unidos (representou o Brasil em um intercâmbio de jornalistas considerados líderes mundiais, numa conexão com outros 20 profissionais de todo o mundo). Na pesquisa de doutorado, faz uma investigação, na perspectiva histórica, comparando o fracasso escolar no Brasil, Argentina e Espanha. Para ele, a maior fragilidade da educação escolar brasileira vem da falta de visão dos governantes. “A maior fragilidade está ainda em os governantes não entenderem (talvez porque, infelizmente, este seja também um projeto de governo) que só a educação de qualidade transforma. Que ela é quem permite que jovens, de fato, entendam suas potencialidades para refletir, questionar, reivindicar. A falta de investimento (de recursos, formação etc.) é, para mim, o grande entrave para a transformação do país; pois, sem educação, não há como pensar para criticar, transformar, exigir”.
Vagner é o cidadão que está envolvido com várias causas e em muitos projetos. Requisitado, responde se tem facilidade de falar “não” para alguma proposta: “Para quem vem de uma vida de muitos ‘nãos’, até mesmo de coisas básicas (um brinquedo, um alimentado específico), você vai aceitando os ‘sins,’ justamente para cumprir essas faltas ou por conta delas. Hoje, felizmente, já posso (embora com muita dificuldade) dizer alguns ‘nãos’. É um exercício. Mas sou esse ser que (ainda) aceita muita coisa, porque todas são muito bacanas”. Vagner é o jornalista que admira Caco Barcellos e Maju Coutinho; o cronista que ama Nelson Rodrigues e Antonio Prata; o educador que faz reverência à Denise Paiero, professora, orientadora e “padrinha”, e a Paulo Freire. Vagner, como o pé de angelim e como diz a música popular, é “uma árvore bonita”.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

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Canais de Vagner de Alencar nas redes sociais digitais:
 
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Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Vagner de Alencar
Data da entrevista (feita por e-mail): 4/10/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
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Deu na TV: livro conta como jovens inexperientes revolucionaram a comunicação em 1950

Obra narra a história da TV Tupi, que estreou há 70 anos  

A história do primeiro canal de TV narrada por quem fez parte. Imagem: captura de tela

Por Raulino Júnior ||DESDEnhas: as resenhas do Desde||

Há exatos 70 anos, no Alto do Sumaré, em São Paulo, jovens inexperientes, na faixa dos 20 anos, e poucos com mais de 30, ergueram a TV Tupi, primeira emissora de televisão do Brasil e da América Latina. Toda a aventura é narrada num livro por uma testemunha e participante efetiva da história: a atriz Vida Alves(1928-2017). Em TV Tupi: uma linda história de amor (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, Coleção Aplauso), Vida conta o início, o auge e o declínio da TV criada pelo paraibano Assis Chateaubriand(1892-1968). Ela também fazia parte da turma que ajudou a emissora acontecer. Atuou como atriz, apresentadora, novelista, garota-propaganda e mais um monte de funções. Essa era a tônica. Todo mundo fazia tudo. “Ganhamos um brinquedo e começamos a brincar”, frase atribuída a Cassiano Gabus Mendes, então diretor artístico da Tupi, que Vida reproduz no livro. Cassiano, na época, tinha 23 anos de idade. O diretor geral da emissora, o baiano Dermival Costalima (o sobrenome está escrito assim, no livro), não tinha nem 40. A Tupi surgiu cheia de improviso, com programação ao vivo e vontade de marcar época. E marcou.

Dermival Costalima e Cassiano Gabus Mendes: pioneiros da televisão. Imagem: reprodução do livro

No livro de memórias, Vida narra os perrengues do dia da inauguração (18 de setembro de 1950), que foi tenso, com uma câmera que não funcionou, mas que Jorge Edo conseguiu reverter. O leitor fica sabendo qual foi o primeiro programa artístico (TV na Taba), a primeira telenovela (Sua vida me pertence, que teve menos de 30 capítulos e beijo no final, entre Vida e Walter Forster, um escândalo para a época), o primeiro programa interativo (Tribunal do Coração, no qual os telespectadores participavam através de carta), o primeiro seriado para jovens (O Falcão Negro, protagonizado por José Parisi), e o primeiro programa voltado para as donas de casa (Revista Feminina, apresentado por Maria Thereza Gregori e onde Ofélia Anunciato começou).

No início, a programação era noturna. Só seis anos mais tarde, em 1956, a Tupi abriu a faixa diurna. Para se ter ideia, o horário infanto-juvenil começava às 18h. A influência do rádio é sempre pontuada na narrativa de Vida Alves. Inclusive, a atriz fala do preconceito que alguns artistas tinham com a TV, pois consideravam algo menor. Isso mudou em 1951, quando estreou o Grande Teatro Tupi, que foi bem-sucedido de imediato. A primeira atriz a se apresentar na TV foi Madalena Nicol, em 10 de janeiro daquele ano. Também em 1951, foi fundada a segunda emissora, a TV Tupi do Rio de Janeiro, inaugurada no dia do aniversário da cidade, 20 de janeiro.

O livro de Vida é assim: cheio de detalhes. Ela fala de cada profissional envolvido no “fazer televisão”: as garotas-propaganda, os diretores, os sonoplastas, os novelistas. Fica evidente o esforço da artista para documentar bem a história, sem esquecer de ninguém. Ao abordar o jornalismo, cita o primeiro telejornal, Imagens do Dia, lançado na noite da inauguração; o icônico Repórter Esso, que ficou no ar por 17 anos, e o primeiro jornal da tarde, Edição Extra, que estreou em 1960 e durou quatro anos.

Vida Alves: uma vida dedicada à TV. Imagem: reprodução do livro

Ao longo de 67 capítulos, Vida expõe para o leitor o que viu, fez e viveu. Mostra a expansão da Tupi e a revolução tecnológica da época, como a chegada do videoteipe no Brasil, em 21 de abril de 1960. Os programas que ficaram marcados, como Clube dos ArtistasAlmoço com as Estrelas e o TV de Comédia. Quem lê, percebe que Vida é uma testemunha ocular apaixonada pelo seu objeto de estudo, mas ela não disfarça: “Este é um livro de memórias, que contém dados históricos. Não sou historiadora. Sou, ou quero ser, uma cronista da vida vivida”, reitera, no capítulo 61. Depois de 22 anos de casa, Vida saiu da Tupi, no mesmo ano da morte de Assis Chateaubriand, em 1968. Parece que a ida do capitão degringolou tudo. A crise se instalou e a Tupi saiu do ar 12 anos depois, em 1980. Em 1995, a atriz fundou a Pró-TV (Associação dos Pioneiros, Profissionais e Incentivadores da Televisão no Brasil) e, em 2017, saiu de cena definitivamente, vítima de falência múltipla dos órgãos. Para quem gosta de televisão, apesar de alguns trechos bem enfadonhos, o livro é um ótimo programa.
Referência:
 
ALVES, Vida. TV Tupi: uma linda história de amor. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. (Coleção Aplauso).
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Marco Antonio é Fera!

Ator, comunicador, criador de conteúdo e produtor cultural sorocabano não teme desbravar o mundo

Marco Antonio Fera: de Sorocaba, do Brasil e do mundo . Foto: Kayan Viana

Por Raulino Júnior

Para começo de conversa, ele é de leão. Estreou, como gosta de dizer, no dia 2 de agosto de 1987. Marco Antonio Fera é cuidadoso ao falar que, da sua casa, é o mais à frente do seu tempo. O cuidado, pelo que parece, é pura modéstia. Ele mesmo justifica: “Eu fui o primeiro filho a acessar a universidade [fez Teatro – Arte Educação, na Universidade de Sorocaba (UNISO)] , o único a estudar fora do Brasil [no Chile], através de um intercâmbio, o que mais viaja, o que mais fica fora de casa, o que já morou em São Paulo. Enfim, tenho muita andança pelo mundo”. E essa é uma característica muito forte na personalidade dele. Marco Antonio é uma pessoa que se movimenta e se considera extremamente agitado. “Sou urbano, sou dos grandes centros. Eu gosto de lugares agitados. A pandemia me machuca muito, porque ela me faz estar parado, me faz estar em casa. Eu moro numa cidade [Sorocaba], trabalho em outra [Boituva] e estudo em outra [São Paulo]. Eu vivo em três cidades ao mesmo tempo, nos meus últimos dois anos. E eu gosto de estar no mundo. Eu gosto de andar, eu gosto de transitar”, explica. Por isso, ao ser questionado sobre qual é o seu lugar no mundo, não titubeia: “O meu lugar no mundo é no mundo”.

Agora, por causa da pandemia, o seu lugar no mundo é Sorocaba, perto da mãe (dona Maria Helena) e dos irmãos (Luiz Fernando e João Paulo). O pai, seu José Cassiano, faleceu ano passado. Os genitores influenciaram o pensamento crítico de Marco e sempre foram abertos ao debate de quaisquer questões trazidas pelo artista para dentro de casa. “Eles são de uma outra geração, onde não se discutia racismo, mas se vivia o racismo, de uma forma muito mais pesada e muito mais ferrenha. Os meus pais estão em mim e estarão eternamente. Na educação, na forma de ser e de estar, na forma de me comportar, nos ensinamentos, na ancestralidade. Eles nunca falaram sobre racismo, mas, desde pequenininho, a gente já tinha RG. Em 1994, 1995, não era natural crianças terem RG. Minha mãe falava: ‘Não pode sair sem isso daqui. Em nenhum momento, pode esquecer. Não pode perder de jeito nenhum. Vai no centro da cidade? Não chega perto de nenhum objeto. Olhe tudo de longe, não toque em nada. Não corre na rua! Não empreste nada do amiguinho. O que você quiser, pede pra mim’. Minha mãe e meu pai reviravam as nossas mochilas. Minha mãe olhava todos os cadernos. Nosso caderno sempre tinha que estar limpo, nossa roupa também. A gente sempre tinha que estar cheiroso”.

Causas, questões e posições

Marco Antonio Fera: “A comunidade LGBTQIA+ ainda é regida pelos padrões heteronormativos”. Foto: Kayan Viana

Em junho de 2018, Marco publicou o artigo Ser homem, ser negro, ser gay, ser só, no site da agência de jornalismo Alma Preta. Na ocasião, afirmou: “Sempre acreditei que não merecia amor. Corpo negro em um mundo branco”. A virada nesse pensamento veio com a terapia, que faz há dois anos. “Sem terapia, não teria entendido isso, porque a gente vai para a escola e a escola é um dos piores lugares para as pessoas pretas, não é? Ali, a gente forma identidade, a gente forma a visão de mundo, a gente tem noção de comunidade. E ali é fundado muitos dos nossos traumas, não é? Depois, vai se perpetuar para a nossa vida e a gente acha muito natural tudo que acontece na escola: as piadas, as rejeições por parte do corpo docente e por parte do corpo discente. A gente acaba acreditando que tudo isso é muito normal, muito natural. Então, a gente chega aos 20, aos 30, se acostumando a ser só, se acostumando a não receber afeto, a não receber todas essas coisas que fazem parte desse campo da subjetividade, não é? Depois, a gente começa a pesquisar sobre as questões negras e existe um novo nascimento. Existe o dia que a gente nasceu e existe o dia que a gente teve uma consciência do que é esse universo, do que é esse planeta. Então, eu comecei a entender, através dos livros, a partir dos 22 e 23 anos de idade, o que representava a negritude, o que representava ser um homem negro na sociedade. A partir disso eu começo a entender o que é ser negro, mas essa questão da subjetividade, essa questão do afeto, ela vem mais com a terapia mesmo”, desabafa.

É com essa mesma consciência que, no artigo já citado, ele questiona a comunidade LGBTQIA+“Como projetar o amor em uma comunidade que vive o cárcere da heteronormatividade?”. Na entrevista para este perfil, é convidado a responder a própria pergunta: “É uma comunidade muito preconceituosa, muito fechada nas caixinhas. E, por mais que seja uma comunidade LGBTQIA+, ainda é uma comunidade regida pelos padrões heteronormativos, pela heteronormatividade. A heteronormatividade é um malefício para todas as pessoas, inclusive para os héteros. Se você é um hétero mais fora da caixinha, mais desconstruído, você vai passar por uma opressão, você também vai passar por um olhar de desconfiança. Pode ser um lugar de desconforto também. Então, quando a gente vê um homem gay e que, entre muitas aspas, não parece ser gay, vê isso como um benefício. Como se não parecer fosse um benefício, quando, na realidade, é trágico, porque mostra que as nossas identidades, as nossas formas de ser e de estar no mundo, não são validadas, não são legitimadas. Se você não corresponder ao padrão heteronormativo, se você não performar o homem viril, não performar a masculinidade, você vai acabar sobrando, você vai acabar não tendo amor. E quando você é homem, negro, gay, afeminado, você vai ficando mais fora dessa bolha, você vai ficando mais fora dessa comunidade. Então, de fato, é um cárcere e eu não tenho uma resposta para essa pergunta; mas, para viver uma experiência de amor, você precisa do outro. Então, precisaria de uma desconstrução coletiva e sobre isso não tenho segurança de que está existindo. Então, posso falar de mim: um homem negro, de 33 anos, que não viveu a experiência de amor ainda. Eu nunca namorei. Então, esse cárcere ainda predomina na minha vida”.

Pretinho mais que básico

Marco Antonio Fera: “Ser ativista é um lugar que machuca e adoece”. Foto: Kayan Viana

Marco sempre quis trabalhar na TV e ser apresentador. Além disso, gosta de falar, de conversar com as pessoas e é muito curioso. Por isso, em 2016, criou o canal Pretinho mais que básico, no YouTube, cujo lema é: “A nossa cara preta em todo espaço e em todo lugar”. Para ele, o canal cumpre algo que o Estado deveria cumprir: “Um espaço para as pessoas pretas existirem na sua natureza”. Contudo, revela que, muitas vezes, se sente cansado por ter que militar sempre. Reclama que não tem tempo de falar bobagens no canal. “Eu já passei por várias crises, porque, às vezes, eu quero falar de comprar pão, sei lá. Quero falar de uma bobagem, de gente bonita, de que tenho crushes e não dá, porque na mesma semana que eu quero falar sobre isso, eu tenho que falar do cara que teve um discurso racista. E esses discursos matam, esses discursos nos encarceram, esses discursos nos limitam. Esses discursos fazem com que eu, um ator, formado no Brasil, formado fora do Brasil, com curso em televisão, curso em cinema, com experiência, não tenha um trabalho. Não realizei meu sonho ainda de fazer uma novela, não realizei meu sonho ainda de fazer uma série, não realizei meu sonho de fazer um filme, simplesmente porque eu sou negro, porque eu tenho a minha pele preta e as pessoas acham que o meu biótipo não vende, o meu biótipo não forma opinião, o meu biótipo não é popular, mesmo as pessoas que se parecem comigo sendo 56% da população. Então, eu acho que o meu canal vem nessa toada, de naturalizar as experiências, de naturalizar as existências”.

Pretinho mais que básico: “A nossa cara preta em todo espaço e em todo lugar”. Clique na imagem para assistir aos vídeos. Captura de tela feita em 11 de setembro de 2020.

O que o youtuber naturaliza também são as suas formas de ser e mostra por que é mais que básico. “Tudo o que eu faço, eu faço cem por cento, eu me debruço para fazer o melhor possível. Eu acho que tudo que eu faço, eu faço com muito carinho, faço com muita atenção, faço com muito cuidado e com muito profissionalismo. O que eu mais gosto de fazer, e o que eu gostaria de fazer durante toda minha vida, era ser só ator, e youtuber com outras condições. Eu gosto muito de dar aula, mas foi o caminho que eu encontrei para sobreviver. Não foi uma coisa assim: ‘Meu sonho de princesa era ser professor’. Sou professor há 12 anos. O produtor cultural veio porque ninguém me chamava para trabalhar. Ninguém me chamava para fazer teatro. Eu não conseguia fazer filmes, eu não conseguia fazer nada, porque as pessoas não me chamavam e eu cansei de esperar as pessoas. O produtor de conteúdo e o apresentador vieram com essa questão de querer estar na mídia. Eu precisava criar uma mídia. O ativista é porque eu sou uma pessoa preta e preciso estar sempre nesse modo, mas é um modo muito difícil para mim também, porque adoece, machuca, violenta, cansa. Não é uma coisa fácil. É claro que eu queria estar num lugar muito mais confortável e onde eu pudesse produzir as minhas coisas de um outro lugar, um lugar que causasse menos dor, porque ser ativista é um lugar que machuca também e adoece. Se a gente não tiver um suporte, se a gente não tiver ferramentas, é difícil”.

Marco é um crítico do sistema educacional do Brasil. Tanto da educação básica quanto da superior. Para ele, os professores das escolas são caretas e a universidade é castradora. “Os professores são caretas porque muitos deles são professores muito antigos, velhos, que estão lá, têm um pensamento retrógrado e não querem mudar. A educação é o lugar mais deseducado do planeta. É louco imaginar isso. A educação é o lugar onde menos se tem educação, onde menos se tem pensamento, onde menos se tem desconstrução. É uma fôrma mesmo. E é muito triste porque os adolescentes, as crianças entram ali totalmente buchinhas, prontos para ser uma esponja, que absorve, e, infelizmente, a educação, o sistema, tem o pior para oferecer e aí forma adultos preconceituosos, homofóbicos, racistas, machistas, intolerantes. Isso é uma responsabilidade da própria sociedade e, principalmente, do processo educacional. A educação, a escola, é o lugar mais violento, mais perverso e mais nocivo para um ser humano e não sei se os pais se dão conta disso. Transborda caretice. Se fosse só careta, talvez seria um pouco melhor, mas não, é careta e muito violenta”, opina. E a universidade? “A universidade continua castradora. Uma universidade que tem como base o eurocentrismo e desconsidera as contribuições negras para o processo educacional, para a formação de uma nação, é castradora, porque a população não é 100% branca, 100% europeia. Um país que teve como matriz o indígena, a língua tupi, e para você entrar no mestrado, exige o inglês. Isso é castrador porque retira o direito de um conhecimento que é nosso. Então, só por isso é castradora, porque retira o nosso direito de criar as nossas humanidades. O sistema é perverso e a universidade é castradora por causa disso”.

Fera nas artes

Marco Antonio Fera: determinação e força para fazer acontecer. Foto: Kayan Viana

Marco é bastante determinado e tem uma força de fazer as coisas acontecerem que nem ele mesmo sabe de onde vem. “Eu não sei de onde vem essa força. Eu não sei de onde vem essa determinação. Eu só sei que eu sou uma pessoa assim. Eu quero aquilo, vou e acontece. É muito louco. É da minha natureza. Gosto de falar que é coisa de leonino, mas não sei também. Estou jogando na roda”. Foi assim quando decidiu morar fora do Brasil [“O cara do Departamento de Relacionamentos Internacionais da universidade foi divulgar a oportunidade na minha sala. Olhei para aquilo e falei: ‘Gente, eu vou morar fora do Brasil’. Eu não sabia nem para onde eu iria. Eu não sabia falar nenhum idioma, não tinha dinheiro. Em seis meses, eu ajeitei tudo e fui estudar fora do Brasil”], quando encasquetou que ia ao programa de Silvio Santos, para ganhar 50 mil reais [“Em 2010, eu estava assistindo ao programa e aí um cara ganhou 500 mil reais. Eu falei: ‘Vou nesse programa e eu vou ganhar esse dinheiro’. Isso foi num domingo. Eu me inscrevi no programa, mandei minha foto, minhas coisas todas. Na terça-feira, eu estava no SBT fazendo teste para o programa. No domingo seguinte, eu já estava gravando com Silvio Santos e ganhei 50 mil reais”] e quando começou no teatro [“Eu queria muito fazer TV. Na época, estava com 12 anos e tinha aquela novela Chiquititas. A produção fazia uma excursão pelo interior da cidade para descobrir novos e novas Chiquititas, o que era uma grande mentira. Era só pra fazer aquele boom. Fui fazer um teste na minha cidade e não passei. O cara falou assim: ‘Olha, quem não passou, faz teatro, porque na próxima vez, estará pronto para fazer o teste e passar. E aí eu saí dali já pensando que tinha que fazer teatro e fui me inscrever na Oficina Cultural Grande Otelo, que era uma oficina aqui da cidade. Lá, eu me formei. Depois dessa primeira oficina, eu nunca mais parei”].

Não parou e ampliou a atuação nas artes cênicas. Em 2011, com a companheira de trabalho Clarice Santos, fundou o Grupo Trança de Teatro, que tem três espetáculos no repertório: No Voo do Instante (2013), Corpo-Notícia: Relatos sobre o Amor e a Violência (2016) e Ilu Okan: O que Minha Vó Contou (2018). No cinema, só fez curtas, e ajudou num roteiro. “Fiz também um curta meu, Estrela Solitária (2018), que produzi, idealizei e atuei”. Os planos para a carreira artística tiveram que ser modificados, devido à pandemia. “Tinha muitos projetos para fazer, mas eu tenho vontade de fazer um solo no teatro e continuar com meu aprendizado de sanfona, utilizar a sanfona nos meus trabalhos. Mas eu sou uma pessoa sem limites. Para o que me chamarem, eu estou dentro e a fim de de fazer. Acho também que temos que entender esse momento, viver esse processo, produzir durante esse processo. A gente não sabe o que vai ser o normal. Então, é experimentar esse lugar, essa experiência da pandemia”. Para a carreira acadêmica, pretende ingressar no mestrado. “Por uma questão da pesquisa mesmo e por uma questão de ocupar aquele espaço”.

Questionado se acredita que, após a pandemia, os artistas vão usar as redes sociais digitais para difundir mais conteúdo artístico e menos futilidade, Marco é categórico: “Nunca. As pessoas não vão mudar. Infelizmente. Tem uma pandemia aí, mas as pessoas não vão mudar. E o artista é uma pessoa. Ele é um ser humano, ele não está alheio à sociedade. Ele não está isento. O artista possui todas as questões que a humanidade possui. As pessoas costumam endeusar o artista, colocar num pedestal, ver como um santo de porcelana. Na verdade, não. Tem muitos artistas que eu fico com a obra, o indivíduo eu anulo para não deixar de amar a obra e de consumir aquilo que me faz bem. Infelizmente, acho que as pessoas não vão mudar. A futilidade sempre estará por aí”, conclui. Marco se mostra e não teme ser quem é.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

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Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Marco Antonio Fera
Data da entrevista (feita por e-mail): 13/8/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
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#Esquenta10AnosDoDesde, #NoveAnosDoDesde, Cultura, Desde 1950: 70 anos da TV no Brasil, Jornalismo Cultural

“Desde 1950: 70 anos da TV no Brasil”: série de resenhas de produtos culturais que falam sobre televisão encerra ações que pré-comemoram os dez anos do Desde

Série é a segunda e última ação do projeto #Esquenta10AnosDoDesde

Por Raulino Júnior

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no quarto trimestre de 2018, e que investigou o acesso à Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), a TV está presente em 96,4% dos domicílios brasileiros. No dia 18 de setembro de 2020, faz exatos 70 anos da primeira transmissão no Brasil, quando a TV Tupide São Paulo entrou no ar. E é também nessa data que se inicia a nossa nova série pré-comemorativa pelos dez anos do DesdeDesde 1950: 70 anos da TV no Brasil. Ela é a segunda e última ação do projeto #Esquenta10AnosDoDesde. A primeira foi a série Gente é pra brilhar!, que começou no domingo passado, 30 de agosto, e se estenderá até o final do ano. O aniversário de dez anos do blog será no dia 1º de janeiro de 2021.
Como vai ser

Card publicado nas redes sociais digitais, em 17 de agosto, dando pistas da série pré-comemorativa

Ao longo desses 70 anos, muitos produtos culturais tiveram a televisão como assunto: livros, músicas, documentários, trabalhos acadêmicos… A lista é infinita. Nós vamos escolher alguns deles e resenhar por aqui. Não há nada melhor do que comemorar os 70 anos da TV brasileira refletindo sobre ela, não é? Então, é isso que vamos fazer. Ler, analisar e entender o que é fazer televisão no Brasil. Esperamos, assim, contribuir para que ela seja ainda melhor nos próximos 70 anos. A nossa atração começa a temporada em 18 de setembro e termina em 18 de dezembro. Uma vez por mês, vamos falar sobre TV, sempre trazendo um produto cultural diferente. A gente quer contar com a sua audiência!
Breve histórico da TV no Brasil
O Brasil foi o primeiro país da América Latina a ter uma emissora de televisão. A proeza aconteceu em 18 de setembro de 1950 e o responsável foi o jornalista e empresário paraibano Assis Chateaubriand, dono do conglomerado de mídia Emissoras e Diários Associados. A TV Tupi-Difusora de São Paulo entrou no ar contando com a ajuda de profissionais oriundo do rádio, que teve a sua primeira transmissão no país em 1922. O legado do rádio influenciou bastante todo o processo de implantação da TV em solo brasileiro. Não é à toa que, nos seus primeiros anos, ela recebeu a alcunha de “rádio com imagens” ou “rádio televisionado”. No artigo A TV Pública, publicado em 2000, no livro A TV aos 50: criticando a televisão brasileira no seu cinquentenárioLaurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e doutor em Ciências da Comunicação, discorre sobre tal questão com mais propriedade:
A televisão brasileira é herdeira do rádio em todos os sentidos. Dele vieram
a mão-de-obra pioneira, as fórmulas dos programas e o modelo institucional
adotado. Diferentemente dos Estados Unidos, onde a inspiração estava no
cinema, ou da Europa, onde o teatro era referência importante, aqui o rádio
foi a matriz da televisão.
Seus primeiros programas nada mais eram do que o rádio televisionado. O
show de inauguração da TV Tupi de São Paulo, em 18 de setembro de 1950,
é o melhor exemplo. Foi um espetáculo de rádio realizado diante das
câmeras […].
Contudo, essa associação do rádio com a TV não durou muito tempo. Dez anos após a primeira transmissão, ela já tinha adotado um modelo próprio de gestão e produção. A fundação da TV Excelsior, em 1960, marcou essa independência. Em seu livro A TV no Brasil do século XX, publicado em 2002, Othon Jambeiro, que é jornalista e doutor em Comunicação, afirma:
Os anos 60 marcam […] a definitiva separação do rádio e da televisão como
indústrias autônomas: o rádio começa a se regionalizar e a procurar
específicas e segmentadas audiências; a televisão torna-se um veículo de
massa, atingindo todo o mercado nacional, e ocupando assim o papel que o
rádio tinha desempenhado nos anos 40 e 50.
A TV brasileira, obviamente, continuou passando por mudanças que caracterizariam a sua identidade. A chegada do videoteipe foi uma delas, cujo maior benefício gerado foi a implantação da estratégia de programação horizontal, fazendo com que as pessoas criassem o hábito de assistir à televisão, num mesmo horário, a fim de ver as mesmas coisas.
O desenvolvimento histórico da TV no Brasil atravessou fases de inovação, transição e de popularidade. A telenovela mostrou a sua força desde os primeiros anos e, enveredando para a sua tendência comercial, a publicidade se tornou a mandatária dos programas de TV. Muitas atrações traziam os nomes de seus patrocinadores na marca, a exemplo do famoso telejornal Repórter Esso. O também jornalista e doutor em Comunicação Sérgio Mattos, no livro História da Televisão Brasileira: uma visão econômica, social e política, publicado em 2010, demarca sete fases desse desenvolvimento: a) a fase elitista, que vai de 1950 a 1964. Nesse período, o aparelho custava caro, possibilitando apenas que pessoas da elite pudessem comprá-lo; b) a fase populista, que dura de 1964 a 1975, é marcada por um padrão mais profissional de administração, inspirado no modelo norte-americano, e a TV se consolida como meio de comunicação de massa, principalmente pelo sucesso das telenovelas; c) a fase do desenvolvimento tecnológico, de 1975 a 1985, em que a TV brasileira contou com o apoio do governo para se “nacionalizar”, evitando, assim, o excesso de programas importados na sua grade. As atrações eram produzidas com aparatos mais sofisticados; d) a fase da transição e da expansão internacional, de 1985 a 1990, que teve mudanças importantes na legislação, maior competitividade entre as redes e intensificação nas exportações de programas; e) a fase da globalização e da TV paga, no período de 1990 a 2000, em que há esforços do país para acompanhar a modernidade e a TV se adapta a isso, com o oferecimento de canais por assinatura; f) a fase da convergência e da qualidade digital, que vai de 2000 a 2010, e cuja palavra de ordem é interatividade. A TV usa a internet como uma extensão de sua grade e começa o processo de implantação da TV digital no país e g) a fase da portabilidade, mobilidade e interatividade digital, que, segundo o pesquisador, começa em 2010 e segue até os dias atuais. Nela, a convergência entre a TV e as novas tecnologias se consolida, principalmente com o uso de dispositivos móveis, como o celular digital.
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Ele é tudo. Ele faz tudo. Rosberg Adonay é um mundo!

Multiartista radicado em Caruaru “pula, canta, dança e faz acontecer”*

Rosberg Adonay: artista pernambucano inquieto e multifacetado. Foto: Jorge Farias

Por Raulino Júnior

“Eu mesmo assumo as funções, pois não tenho orçamento para contratar os profissionais”. É assim que Rosberg Adonay Rodrigues Galvão, 25 anos, há 11 no ativismo artístico, responde à pergunta sobre o que falta ser. Porque, quem acompanha as suas redes sociais digitais, vê que ele é ator, poeta, dramaturgo, diretor, cantor, compositor, produtor cultural, bailarino, figurinista, iluminador… A justificativa: “Eu sempre tive curiosidade em aprender todas as linguagens que têm relação com a arte. Eu me identifico completamente e tenho muita facilidade de aprender. Tenho que aprender de tudo um pouco, para poder realizar o trabalho”.
E o trabalho que Rosberg realiza não é pouco. Além de ser arte-educador na Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos da Prefeitura de Caruaru, ele atua, cria, compõe e produz na Trupe Veja Bem Meu Bem, grupo de teatro que tem como objetivo aproximar o artista do público. “Isso é implementado atingindo as minorias, comunidades, escolas, universidades, grupos parceiros. Atingindo o público de várias formas, adequando espaços e linguagens. Levar a arte até onde existe a ausência da arte”, explica. É também integrante da Trupe Gargalhada (onde é o palhaço Biliro) e da Cia Pernas Pra Circulá. Protagoniza o monólogo Poeta Preto, cujo objetivo é chamar a atenção para o preconceito que os negros sofrem na sociedade, e, nesse momento de distanciamento social devido à pandemia do novo coronavírus, utiliza as redes sociais digitais para compartilhar experimentos cênicos. “Eles partem de um processo de pesquisa sobre a criação individual, independente e orgânica. As plataformas digitais têm suas importâncias, agregam no crescimento artístico do trabalho e é a única opção no distanciamento social para continuar trabalhando e produzindo”. Contudo, apesar de toda essa versatilidade, ao ser indagado como se define artisticamente, Adonay não titubeia: “Ator criador e produtor cultural. Consigo agregar outras definições à palavra criador. O ator que cria sua obra com poucos recursos financeiros, mas com muito profissionalismo e amor”.
Família, Caruaru, formação artística

Rosberg Adonay no seu quarto: espaço de criação artística. Foto: Jorge Farias

Embora tenha nascido em Belo Jardim, Rosberg considera São Bento do Una sua cidade natal e Caruaru a de coração. “Me considero 50% caruaruense. Amo de coração essa cidade, sua história, sua riqueza. Acredito que meus ancestrais eram os cariris, que habitavam antes dos primeiros fazendeiros invadirem suas terras, em Caruaru e nas cidades vizinhas, como PesqueiraArcoverde, Belo Jardim, São Bento do Una… Tenho certeza que minhas raízes estão nesta região”. Ele chegou a Caruru quando criança. Os genitores, Márcia Rodrigues de Moura e Sérgio Rogério Galvão, se separaram e a mãe decidiu fixar residência na cidade, também conhecida como a “Capital do Forró”. Rosberg e as irmãs, Marian e Indiara, foram criados por Márcia e pela avó materna, dona Darcy.
“Foi onde conheci o teatro e a arte”, complementa, ao falar de Caruaru. Conheceu e se formou. Na verdade, a formação de multiartista começou na infância. “Eu tinha um comportamento superartístico, através do rádio, da TV, da Igreja Católica e da escola. Eu ia sempre à missa com minha mãe e minha vó, e decorei as músicas, o texto do padre, as marcações. Chegou um tempo que eu sabia a missa inteira. Decorava comercias de TV e gostava de cantar todos os dias, à tarde, no quintal de casa, as músicas das novelas e as que ouvia pelo rádio. Sempre quis dançar nos eventos da escola, apresentar trabalho na frente da sala; mas eu sempre fui um pouco tímido, reservado. Hoje, ainda sou um pouco, mas não mais no profissional. Hoje, eu me defino como ator criador pelo ato de compor uma obra independente, desde a função de diretor, autor e produtor até as de contrarregra, figurinista, iluminador, cantor, compositor e o que for preciso para fazer o que amo e dar vida à minha obra”. 
 
E para essa obra ganhar vida, Rosberg foi atrás do aprendizado. Passou pelo tradicional Teatro Experimental de Arte (TEA), o Cena Aberta e o Grupo Andanças (de dança contemporânea). Foi fisgado pelo teatro, arte que o possibilita experimentar de tudo, uma arte-mundo. “Eu me encontrei no teatro. Encontrei pessoas com semelhanças parecidas com as minhas, personalidade, forma de pensar. No teatro, eu encontrei respeito, coletividade, companheirismo, disciplina, trabalho, amor…”.

Rosberg e seu mundo artístico

Rosberg em cena do espetáculo Poeta Preto: morte por branqueamento ideológico. Foto: Jorge Farias

Em 2009, quando começou a fazer teatro, Rosberg era Rosberg Alexsander. “Era uma desconstrução social e também pelo fato de escolher um nome artístico para se compor enquanto obra/artista”. Depois, passou a ser Dom Alexsander Preto. “Eu vejo como um processo de descoberta”. Hoje, assina Rosberg Adonay. “Me apeguei ao meu próprio nome, acho que fala mais. O Adonay é muito forte e o Rosberg é marcante”. Marcante também foi o ano de 2014, mais precisamente o 1º de março, quando começaram as vivências artísticas da Trupe Veja Bem Meu Bem [assista ao vídeo em que Rosberg fala sobre o início da Trupe], da qual é um dos fundadores. Já no primeiro ano do coletivo artístico, independente e alternativo de teatro, como Adonay descreve a Trupe, encenou e atuou no espetáculo Cadê o meu amor que não veio? e, com ele, foi premiado Melhor Ator do XVI Festival  de Esquetes de Caruaru (Festec). Contudo, ele não fica envaidecido com premiações e considera o processo artístico mais importante que a obra. “O prêmio é apenas um reconhecimento artístico de uma determinada apresentação. O teatro é como a vida, se renova a cada dia. No meu ponto de vista, o processo é mais importante que a obra, no aspecto de valor artístico e aprendizagem. A descoberta da criação, das possibilidades, da troca com o outro. A obra tem o seu valor, as apresentações que ficam marcadas, a troca com o público. O reconhecimento é mais um passo. O sentido é manter a obra em pé, viva e forte. Tem que fazer sentido dentro, tem que ter amor e humildade”.

Fazer sentido é uma premissa que acompanha o artista desde sempre. Por isso, faz questão de dizer que faz militância na arte. O monólogo Poeta Preto, que estreou em outubro de 2017,  é um grito que reverbera toda essa luta por justiça social. Com texto de Vanderson Santos e direção de Pedro Henrique, o espetáculo aborda racismo e desigualdade, problemas ainda tão comuns na sociedade brasileira. “Sempre levo comigo a questão da militância na arte. Discussão sobre desigualdade, violência, racismo, feminicídio, LGBTfobia, genocídio, intolerância religiosa. O Poeta surge como porta voz da classe oprimida. Não tem arrodeio, é a verdade e a realidade nua e crua na cara da plateia. Ele é a própria consciência humana e desafia a plateia o tempo inteiro a ouvir, pensar e refletir sobre a nossa existência e o que estamos fazendo aqui enquanto seres humanos. O Poeta morre no final do espetáculo, pintando seu rosto de branco e vomita na cara de todos. Ele morre de branqueamento ideológico, frustração, porque ainda existe racismo, ódio, negação nos olhos de algumas pessoas que assistem. Ele morre porque eu, o ator que o interpreta, ainda saio na rua e sou discriminado por ter um black power enorme. Piadas. O olho fala mais em alguns momentos. Ele morre porque a plateia fica em choque emocional, porque alguns não entenderam, não refletiram, nem se quer ouviram. Ele não morre, ele sempre renasce, ele é nós, ele é também nossa voz”, desabafa.Em 2016, fez uma participação no show A mulher do fim do mundo, de Elza Soares. Descreve a experiência como “maravilhosa e encantadora”. “Agradeço demais a Gabriel Sá e a Chico Marinho, grandes artistas da terra, que me indicaram para fazer a participação no show de Elza, no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG). Eu e mais três amigos da arte e militância. A performance era entrar, sentar perto de Elza e criar relação com ela, os músicos, a musicalidade e o público. Acho que a minha entrega nessa cena foi incomparável a qualquer outra que já fiz. Eu estava ao lado da Rainha, da Mulher do Fim do Mundo, aquela que sempre escutei desde pequeno no rádio e na internet”.

Rosberg Adonay durante a videoperformance Por Perto, poema de Pierre Tenório: artista multimídia. Foto: Jorge Farias

Rosberg é multimídia. Participou de curtas (João Heleno dos Brito, de Neco Tabosa; e Ela é artista, de Vander Santos), da série AFROntar (TV Jornal Interior) e do longa Palavras de Rua (Pablo), dirigido por Léo Batista e Paula Monteiro. Está preparando o curso on-line O lugar onde se vê, no qual vai abordar o processo de criação artística e improviso. No final, pretende montar uma adaptação do texto A parte que falta, do estadunidense Shel Silverstein. O projeto é uma parceria da Right Hemisphere Creative Productions (mais uma ação de Rosberg) com a Trupe Veja Bem Meu Bem.

O belo-jardinense carrega traços de seriedade e meninice, na mesma intensidade. Isso, obviamente, se reflete em suas produções. Na Trupe Gargalhada, onde assume a persona do palhaço Biliro, mostra a criança viva que habita o seu corpo. “Com o Biliro, eu volto a ser criança. É meu exagero irônico, meu eu poético. Ainda estou descobrindo esse clown, em processo de criação. O Biliro é mais um filho que crio, mais um grande artista, como o Poeta, a Nega Rhos, Patativa do Assaré, Chicó, Gregório Sampsa, Biriba e mais alguns que não lembro”, enumera os personagens que viveu/vive. Nas composições musicais e poéticas, fala do homem que é, de liberdade. Usa todas as formas de  expressão artística para se sentir nu, livre. “Nada é forçado. Tudo é desejo e arte. Meus poemas são meus pensamentos encharcados de palavras, são explosões de sentimentos presos. Escrever é limpar, é reiniciar seu corpo, sua mente, seu estado de espírito, é conversar com você mesmo, relatando no papel. Um mar de palavras da mente, escritas no papel, organizadas em forma de reflexão e história. Eu lembrei que quando era criança, fiz uma promessa: prometi a mim mesmo que iria aprender a ler e escrever, pois adorava a escola. Escrevo desde que aprendi, na escola pública, lendo livros na biblioteca”. E assim Rosberg segue escrevendo a própria história, caminhando num mundo que não tem limite, porque é dele. 
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*: referência à música Eclético, de Edu Tedeschi.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

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Canais de Rosberg Adonay nas redes sociais digitais:
 
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Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Rosberg Adonay
Data da entrevista (feita por e-mail): 19/8/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
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“Gente é pra brilhar!”: série de perfis abre pré-comemoração pelos dez anos do Desde

Série integra projeto #Esquenta10AnosDoDesde

Por Raulino Júnior

O aniversário de dez anos do Desde é só em janeiro de 2021, no dia 1º, mas a nossa sede de produzir conteúdos jornalísticos é tão grande que vamos fazer uma pré-comemoração para antecipar o grande feito de estarmos há uma década, ininterruptamente, no ar. Tudo foi pensado no primeiro semestre deste ano e faz parte do projeto #Esquenta10AnosDoDesde. Depois de muitas leituras, pesquisas e imersão no universo do jornalismo cultural, chegou a hora de implementar.
A primeira das ações da nossa pré-comemoração é a série de perfis intitulada Gente é pra brilhar!. Pegamos emprestado um dos versos mais famosos de Caetano Veloso para contar histórias de pessoas que brilham pelo Brasil afora. Queremos investigar se “cada estrela se espanta à própria explosão”.

Card publicado nas redes sociais digitais, em 15 de julho, dando pistas da série pré-comemorativa

Em 2014, para comemorar os nossos três anos, fizemos a série Perfis do Desde. Naquela ocasião, contamos histórias de pessoas próximas, que conhecíamos ou que tínhamos algum contato. Dessa vez, o desafio vai ser ainda maior: vamos contar histórias de pessoas que conhecemos pela internet, nas interações através das redes sociais digitais. Como criar o perfil de alguém que você não conhece tanto nem tem ideia de como a pessoa é? Esse vai ser o grande e saboroso desafio. Jornalismo é percepção, é observação, é atenção. A nossa jornada vai começar no próximo domingo, 30 de agosto. O convite está feito e a “gente quer luzir”!
 
Desde que eu me entendo por GENTE
Bicho (album) - Wikipedia

Capa do disco Bicho, lançado em 1977.

A canção Gente, da qual tiramos o verso que dá nome à nossa série pré-comemorativa, é a terceira faixa do disco Bicho, que foi lançado pelo “bruxo de Santo Amaro” em 1977. O álbum tem outras músicas marcantes da carreira de Caê, como OdaraUm ÍndioTigresa e O Leãozinho. Na página 41 do livro Sobre as Letras (Companhia das Letras, 2003), organizado por Eucanaã Ferraz, Caetano fala sobre Gente:
É uma letra ingênua. Quando eu estava fazendo, achava uma loucura aquela música, que parecia coisa da Broadway, de musical de segunda. No show Transversal do tempo, Elis Regina cantava “Gente” como se estivesse debochando da canção, com o arranjo servindo ao deboche, e aparecia “Beba Gente” escrito atrás, como se fosse Coca-Cola. E ela fazia tudo como se fosse um show de travesti, como se fosse uma bicha. Depois, inclusive, ela pegou aquele hábito de fazer show feito bicha. Em Trem azul, o último show dela, ela apresentava os músicos assim: “Os meus bofes, esse aqui…”. Parecia um espetáculo da Rogéria, era muito bom. A Elis ficou muito melhor no final. Foi melhorando, melhorando, melhorando. Ela era boa musicalmente.
Um pouco antes de morrer, ela me escreveu uma carta dizendo que aquilo que ela tinha feito com a minha música em Transversal do tempo tinha sido ideia dos diretores do show, que ela não queria, que, por ela, não faria aquilo, e me pediu desculpas.
“Gente: espelho da vida, doce mistério”, não é mesmo? A seguir, ouça Gente.

No vídeo abaixo, veja a declamação do poema Gente.

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