Cultura, Discriminação, Jornalismo Cultural, Negritude, Preconceito, Racismo, Texto de Quinta

O negro em movimento fora (ou dentro?) do Movimento

Meus inimigos estão no poder*
Por Raulino Júnior ||Texto de Quinta|| 
Você é negro? Consciente de como se dá a sua presença na sociedade em que vive? Se respondeu sim para essas duas perguntas, saiba que você é um militante da causa. Todo negro consciente é um militante em potencial. Isso significa que você não precisa nem é obrigado a participar de nenhum coletivo em que a luta contra o racismo seja o propósito maior. Ninguém “tem que” nada. Ainda mais nos dias de hoje! Se a gente briga tanto por liberdade, por que tolher a do outro? Isso precisa ser levado em consideração pelos movimentos, não é? Afinal, respeitar subjetividades é uma das nossas bandeiras. Por falta de respeito a esse aspecto, muitas atrocidades aconteceram e vitimaram o povo negro em todo o mundo. Quem está do lado de fora também está em movimento. Afinal, a Terra gira e não é plana.

Claro que, desde que o mundo é mundo, a gente é bombardeado pelo clichê dos clichês: a união faz a força. E faz mesmo! Isso é um fato. Contudo, temos que arregalar bem os olhos para saber quem da união está obstinado a fazer a força, porque tem muita gente que vai no bando, com outros interesses. Atualmente, o lema “Nós por nós” vem sendo usado e abusado por movimentos que lutam por justiça social, mas, quando você se aproxima de quem está na arena de luta, percebe que o “Nós por nós”, na prática, é mais “eu” do que qualquer outra coisa. Qual é a lógica disso? Militância de araque? Vale a pena usar um episódio real para ilustrar o que foi dito: em 2017, um reconhecido ator de teatro de Salvador estreou um espetáculo no qual mostrava como a sociedade vê e trata os negros, estabelecendo “lugares” e “limites” para eles. Um monólogo superinteressante, que não trazia respostas, mas que fazia um convite à reflexão. Nas suas redes sociais digitais, o ator pediu que amigos e colegas colocassem seus respectivos nomes no que chamou de “lista negra” (numa boa sacada, pois tirava a expressão do lugar negativo que sempre esteve. No entanto, a ação foi de um autoboicote descabido, principalmente considerando o que é viver de arte no Brasil), um instrumento que possibilitava o pagamento de meia-entrada. A inteira custava R$ 20. Muita gente, em sua maioria da etnia negra, correu e colocou os nomes nos comentários a fim de pagar R$ 10 para assistir ao espetáculo. Aí vem a pergunta: e o “Nós por nós”?! Será que não daria para fazer um esforço e valorizar, também financeiramente, todo o esforço do ator para produzir a peça? Quando os nossos vão valorizar a arte feita pelos nossos? “Nós por nós” é uma verdade ou é apenas uma lema bonitinho? Vamos pensar sobre isso ou continuaremos a fomentar mais essa encruzilhada?

Outro exemplo muito emblemático a esse respeito é quando alguns negros reconhecem todo o talento e contribuição de Margareth Menezes para a nossa música. As conversas nos grupos são sempre falando o quanto a cantora é injustiçada e não está num patamar que merece. No final, o papo sempre descamba para o recorte de etnia, que é uma realidade e, obviamente, tem suas implicações na carreira de Margareth, uma artista marcada por várias interseccionalidades. Contudo, se a gente cavucar, a seguinte pergunta surge: quem movimenta o caixa de Margareth? Eu? Você? A quantos shows dela você foi, pagando ingresso? Nos eventos do Mercado Iaô, projeto da artista, que, das 10h às 14h, tinha entrada franca, em qual horário você ia? Pagava a tarifa social de R$ 10 (meia) e R$ 20 (inteira)? Quem movimenta o caixa de Margareth para que a cantora possa investir ainda mais na própria carreira? E o “Nós por nós” fica onde? Preciso ressaltar que, com tal afirmação [de que o “Nós por nós” é mais “eu” do que qualquer outra coisa], não estou querendo minar, esvaziar nem descredibilizar as práticas e objetivos dos grupos. Estou, apenas, registrando uma constatação.

Engraçado, para não dizer o contrário, é que, às vezes, tem gente que quer cobrar determinadas posturas de quem tem consciência do problema do racismo, mas que milita com outras ações, que não são menos importantes, é preciso pontuar. O mau mesmo é se achar mais militante que os outros. É como se houvesse uma gradação da militância, numa disputa interna que é ignorante e descabida. Mais um clichê: fala sério! Ninguém é obrigado a opinar sobre tudo sempre, porque, muitas vezes, isso só reflete a nossa superficialidade diante de temáticas tidas como polêmicas e mostra a nossa cultura de ir com o bando. Ninguém “tem que” nada!

Cada negro é um negro. Embora tenhamos narrativas comuns, cada um sabe a dor e a delícia de ser como é. O racismo que atravessa cada negro é repleto de subjetividades, oriundas de situações pelas quais a pessoa passou. Isso explica a forma como cada um reage a essa violência histórica de que, infelizmente, ainda é vítima. Uns comem a pressão “de com força”, outros não deixam essa pressão paralisar os seus anseios nem interferir na autoestima. É tudo muito subjetivo e a inteligência emocional é uma aliada e tanto! Entender isso contribui para, quando a pessoa quiser, se posicionar sobre a questão com mais equilíbrio, de acordo com a própria régua. Ninguém precisa, por exemplo, usar a rede social digital para falar o que todo mundo fala, só porque sofre uma pressão implícita para falar. A fala pela fala é vazia e carece de personalidade. Cada um milita da sua forma. Eu exerço a militância nas minhas atitudes, nas coisas que escrevo, nos posicionamentos que tomo. Não sou obrigado a nada e ninguém vai me fazer recuar disso. Quando eu quiser e achar pertinente, mudo.
Em abril de 2017, as redes sociais digitais foram tomadas com a campanha #MeuProfessorRacista, cujo objetivo era denunciar professores que praticaram o crime de racismo em alguma época da vida do denunciante. Vi tantos relatos, me identifiquei com muitos, mas vi muita hipocrisia também. Imediatamente, me lembrei de um episódio que aconteceu comigo durante a Bienal do Livro Bahia, em 2013. Até pensei em entrar na campanha e postar o meu relato, mas analisei, analisei e vi que aquele não era o momento. Não fui no bando, porque ninguém “tem que” nada. Hoje, com outra motivação, julgo importante divulgar o fato. #MeuProfessorRacista nunca foi meu professor, mas foi racista comigo. Na época, eu trabalhava num instituto considerado de prestígio na sociedade salvadorense e estava na Bienal para fazer alguma ação educativa. O #MeuProfessorRacista perguntou onde eu trabalhava e eu falei o nome do instituto. Mas, não satisfeito e mostrando explicitamente uma falta de crédito na informação que eu acabava de lhe dar, #MeuProfessorRacista fez um esforço para ler o crachá que eu carregava, a fim de verificar as informações e constatar se, de fato, eu trabalhava naquele lugar que havia dito. O choque maior, para mim, é que o #MeuProfessorRacista, além de ser um dos fundadores de um conglomerado de “mídia negra” de Salvador, é negro e militante. Logo, consciente. Ou não, né? Como disse, muitas vezes, quem vai de bando só defende a sua banda. Quando um de nós insiste em nos negar, nega todo o nosso povo.
O branco fica todo baratinado quando se depara com um negro que sofreu as violências oriundas do racismo, mas que não tem a autoestima abalada por causa disso. Ele não consegue lidar com esse fato. Estranha, porque é incomum. Por isso, persegue muito mais, tenta descredibilizar o adversário (sim! O campo é de luta!), usa a indiferença o tempo todo para anular a presença do outro. Isso é um fato e só quem sente na pele essa emoção sabe identificar. Por outro lado, e isso deve ser culpa do racismo estrutural que acomete o Brasil desde 1500, quem é negro também estranha quando encontra alguém assim entre os seus pares. Nesse caso, a postura é outra. É de achar que a militância é menor, frágil, sem sustentação. O negro que cria outras narrativas para si, que se coloca de igual para igual mesmo no jogo da vida, que não deixa o discurso do opressor lhe paralisar, é visto como exibido. O racismo é tão forte que tirou a nossa capacidade de nos admirar, de exibir as nossas qualidades. Por isso, o autocuidado hoje está tão em voga. Descobriram a pólvora! Claro que não é sair por aí sendo um outdoor ambulante, é fazer das suas ações o retrato de quem você é, sem se esconder. Parte da comunidade rechaça o “negro exibido” porque isso não é colocado como algo que a gente pode ser. Isso nos foi negado e o racismo faz a gente pensar que não é para nós. Quem destoa é visto como um à toa.

Lembra que disse que ninguém “tem que” nada? A única coisa que a gente tem que ser é livre para fazer as nossas escolhas. Seja seu próprio bando até o dia em que você quiser. Vão te acusar de egoísmo, mas o tempo é a melhor resposta para essa acusação. Outro clichê: o mundo dá voltas e a expectativa do outro em relação a você é problema do outro. Eu só não posso o que eu não quero e minha militância é por justiça, não por vingança. Ah! Não esqueça deste mantra: com poder, todo anarquista silencia e deixa a luta só para você, bebê.
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Frejat e Cazuza, em Ideologia.
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#Desde8, Cultura, Eu sou Foca!, Jornalismo Cultural

Para comemorar nove anos em atividade, Desde vai contar histórias de focas que fazem o jornalismo acontecer Brasil afora

Eu sou Foca!: Desde parte do próprio próprio exemplo para comemorar nove anos

Por Raulino Júnior

Em 1º de janeiro de 2020, o Desde completa nove anos de idade! Como é de praxe por aqui, há sempre uma comemoração na qual o exercício do jornalismo fica evidente. Como a tônica da prática jornalística é a de contar e compartilhar histórias, a comemoração pelos nossos nove anos terá isso como base. Vamos colocar na praça a série de reportagens Eu sou Foca!, cujo objetivo é contar histórias de focas que fazem o jornalismo acontecer Brasil afora. A essa altura, você deve estar se perguntando: o que é foca? A gente explica: “foca” é um termo utilizado entre os jornalistas para se referir a estudantes de Jornalismo ou a quem está no início da carreira. No livro Manual do Foca: guia de sobrevivência para jornalistas, a jornalista e professora da Universidade de Brasília (UnB)Thaïs de Mendonça Jorge, afirma: “Foca é o jornalista novato, bisonho – ou seja, não experimentado -, aquele que ainda pensa em fazer um curso de Jornalismo ou o jovem quem está caminhando para essa profissão”, p.13. Citando Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, a autora diz ainda que “foca nos Estados Unidos é cub, que em inglês significa filhote. A palavra cub também designa os escoteiros novatos, os lobinhos“, p. 13.
Eu sou Foca!
O nosso intuito é encontrar pessoas que têm iniciativas interessantes na área do jornalismo. Queremos mostrar como o trabalho do foca contribui para transformar a realidade na qual ele está inserido, e a sociedade como um todo. No fundo, queremos apoiar e divulgar projetos bem-sucedidos, que fazem o jornalismo acontecer com muita inspiração e força de vontade. Formar redes de apoio é sempre importante. Você já desenvolve algum trabalho de jornalismo por conta própria? Qual é a natureza dele? Quer participar da nossa série? Então, preencha o formulário e venha contar a sua história no Desde! Mostre por que você é foca!
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