#Esquenta10AnosDoDesde, #NoveAnosDoDesde, Cultura, Gente é pra brilhar!, Jornalismo Cultural

Weslei Machado Cazaes: de axé, da dança, das ciências e de mulheres

Criado por mãe, por vó, pela dança e pela UNILAB, Weslei Machado Cazaes celebra as suas raízes

Weslei Machado Cazaes: dança como afirmação de identidade. Foto: Marcela Barravento

Por Raulino Júnior

Entre tantos significados que encontramos da palavra axé em dicionários de iorubá, energia e força são os que mais têm a ver com a vida de Weslei Machado Cazaes. O santo-amarense de 27 anos é daquelas pessoas que passam uma energia boa, mesmo para quem o conhece apenas pelas redes sociais digitais, e que usa a força que tem para começar, recomeçar e alcançar os seus objetivos. Filho único de Evandro e Nara, foi dentro de casa, tendo como referência duas das mulheres de sua vida [a mãe, Nadijanara; e a avó, Antonia (Toinha)], que ele aprendeu a percorrer bons caminhos. “Sou daqueles que dizem: ‘Filho criado por mãe e por avó’. Nesses 27 anos, percebo que sou grato demais a elas por ter sido criado tão somente por elas. Acho que a minha ida para a universidade, entrando em debates que antes não me interessavam ou meio que já tinha naturalizado em meu cotidiano, como a maioria dos meus, foi o ponto chave para eu refletir sobre minha vida, minhas relações com o mundo. Principalmente, na questão da mulher nessa sociedade defeituosa. Minha avó, como a realidade de uma maioria de mulheres, sobretudo negras, foi largada para criar sozinha de cinco crianças. Passou fome e se lançou ao mangue para amenizar. Lavou roupa dos outros, fez moqueca na folha pra vender, fez pamonha. Além de tudo, depois de ter vencido a fome total, ajudou a criar os filhos de meu avô com outra mulher. Minha mãe, mulher negra e quilombola, foi a filha que cuidou do caçula e teve que ficar para cuidar da mãe. Foi deixada sozinha para me criar! Interrompeu o ensino médio e só terminou quando eu já estava com uns dez anos, mais ou menos. Ela abdicou dos sonhos de jovem para se tornar uma adulta forçada! Enfim, essas coisas não são para eu dizer que são guerreiras, como se passar por isso fosse algo positivo. Não! Isso serve para eu lembrar que sou grato por elas não desistirem de viver e nem de me dar essa vida que hoje tenho. Por mais que eu esteja condenado a reproduzir atitudes machistas dessa sociedade patriarcal, tive uma criação capaz de me colocar em bons caminhos, que me levaram a analisar essas dinâmicas e me policiar em não cometer o mesmo erro com mulheres que aparecessem em minha vida. Melhor do que isso, é tentar criar um ser humano capaz de respeitar as pessoas sem distinção de raça, gênero, sexualidade, religião etc., mas sempre atento à perversidade humana”, desabafa.
Quem também contribuiu muito para a sua formação humana, cidadã e atuou como uma mãe na sua vida foi a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), instituição na qual se formou em Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades e Licenciatura em Ciências Sociais. “Ter a UNILAB nesta região, politicamente massacrada, é dar à nossa região oportunidade de levantar ainda mais a voz, utilizando outras ferramentas para combater as diversas violências que sofremos por sermos pretxs, baianxs, interioranxs etc. Se formos fazer uma pesquisa com xs brasileirxs da UNILAB, sobretudo daqui do Recôncavo, cada um vai dizer que é o primeiro da família a ir à universidade. Isso é resultado de um processo de exclusão que passamos. Além de termos uma educação básica precária, fomos educados [a pensar] que a nossa escolarização é apenas até o ensino médio. Depois disso: trabalho! A UNILAB vem para quebrar muitos paradigmas. O primeiro, é esse limite que nos deram; o segundo, é nos localizar na história, pois, até antes da UNILAB, eu sabia muita coisa da Grécia, Roma e nada dos povos que nos deram origem ou da comunidade que sou. A UNILAB vem me dizer que devemos desnaturalizar as coisas do mundo, deixar de achar que as coisas são porque são. Ela vai nos mostrar que existem diversas visões de mundo e essa que naturalizamos foi totalmente arquitetada por colonizadores, que tentaram apagar a história afro/indígena, e assim tivemos a chance de desconstruir muitas coisas que antes tínhamos como normal. Entender que África não é um país, mas um continente com 54 países dentro, é se libertar das correntes mentais que foram colocadas em nós”.
Dança, candomblé e intolerância religiosa
Weslei leva a energia dele também para a arte. Nesse caso, a dança, que entrou na sua vida desde que tinha seis anos de idade. Passou pela Companhia de Dança Afro do Vale do Iguape, pelo Balé Afro do Recôncavo e pelas quadrilhas Raízes do Iguape e Girassol do Iguape. Cada experiência deixou um ensinamento, principalmente porque aprendeu a conviver em grupo e a respeitar ainda mais as subjetividades. “O Balé Afro do Recôncavo me fez dar muito mais de mim em relação à expressão na dança dos orixás. Lá, pude aprender outros movimentos e tomei conhecimento das origens. Por exemplo, o movimento de Xangô, eu fazia no antigo grupo afro, só que nunca me disseram da relação ou não lembro se me disseram. No Girassol do Iguape, passei um curto tempo, fazendo abertura na dança. Daí, depois de um tempo parado, em 2011, volto ao Raízes. Na Companhia de Dança, eu era o mascote, único homem da minha idade e isso me fez passar por preconceito, pois nessa época, e talvez um pouco hoje, as pessoas imaginam que quem dança afro é mulher ou ‘viado’, usando o termo popular ofensivo que usam. Nessa Companhia, eu me inicio na dança afro. Por último, Raízes do Iguape. Sempre digo e ninguém discorda: o grupo Raízes do Iguape é uma escola de vida. No Raízes, eu aprendi a conviver em grupo, a trabalhar para não só dançar, mas levar um legado ancestral que a gente traz na forma de andar, falar, dançar, sorrir. Quando a gente sai para os concursos, fazemos questão de dizer que nunca vamos sozinhos/as, sempre levamos nossa comunidade, pois é através dela que temos condições de estar em quadra, ano após ano. O Raízes ensinou regras de convivências, de respeitar a religião, sexualidade, opinião política de todos e todas. Somos uma família, nos momentos difíceis e alegres. Falar do Raízes é falar de uma história de gerações. São mais de 40 anos de (r)existência!”.

Weslei trocando energia com o mar. Foto: Uiny Lene

Da dança afro para o candomblé, foi um pulo. De alguns anos, é importante ressaltar. Como é muito comum na sociedade brasileira, Weslei teve toda a sua formação religiosa baseada no catolicismo. Ia à catequese, sem muita empolgação, só porque a mãe mandava. Mais tarde, para agradar uma namorada, visitava a Assembleia de Deus. Antes dessa experiência, fazia estudos bíblicos com Testemunhas de Jeová, mas não se sentia bem. “Faz pouco tempo que estou no candomblé. Sempre visitava um candomblé lá da comunidade, só que não entendia nada, só sei que não queria sair dali. Em 2015, quando entrei na UNILAB, fui com uns colegas em uma festa de Caboco aqui em Santo Amaro. O motivo que me levou entrar no candomblé, eu tenho certeza, foi a minha ancestralidade que me direcionou. Sempre dancei movimentos de orixá na Companhia de Dança Afro, mesmo não sabendo do que se tratava, gostava; visitava um candomblé, mesmo sem incentivo de amigo ou familiar, e eu gostava. Quando estou em função no axé, é como se eu estivesse no meu real cotidiano. Eu defendo muito que o candomblé é um mundo à parte desse que vivemos. O candomblé é uma escola, é uma casa, é uma comunidade. Temos uma língua, culinária, uma interpretação da realidade, natureza. Falamos de economia, política etc. Minha mãe pequena fala que o candomblé é um poço fundo que ninguém nunca consegue chegar. Ela fala isso para afirmar que o aprendizado que se tem é infinito e nem tem muito tempo para aprender tudo, até porque existem orientações dos nossos orientadores/as (babalorixás/ialorixás) e do nosso próprio Orixá”.
Contudo, apesar de toda a contribuição do candomblé para a cultura brasileira, independentemente da vinculação religiosa, a intolerância faz parte do cotidiano do povo de santo. Para Weslei, pequenas ações coletivas podem contribuir para derrubar essa estrutura. “Para combater a intolerância religiosa, tem que colocar o debate racial dentro, pois não se separa. É muito difícil falar de intolerância religiosa e não falar de racismo, pois a maioria dos casos de desrespeito à religião do outro está relacionada às religiões de matriz africana e essas são de origem africana, mesmo que tocadas pelo catolicismo e religiões indígenas. Um exemplo de que é difícil acabar com a intolerância, é quando encontramos, nos Tribunais de Justiça, um crucifixo; quando encontramos na Câmara de Vereadores, uma bíblia; ou quando temos “uma lá ela” de um presidente que retira obras dos orixás do Palácio do Planalto. Percebemos que a intolerância é difícil de acabar a nível macro, quando temos novelas hoje com timidez e pouca bagagem para incluir o candomblé no cotidiano das pessoas do Brasil todo. Mas a nível municipal, podemos, ao menos, promover um debate maior sobre o assunto, criar organizações das religiões, fazer parcerias com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi). Tudo depende da administração. Acredito, inclusive, que é a partir do micro que atingimos o macro, ao menos nesse contexto que estamos… Daqui de baixo que é fácil derrubar as estruturas”.

Santiago do Iguape, Brasil e a Lua

Weslei Machado Cazaes. Foto: autorretrato

“Minha relação com Santiago do Iguape é ancestral, pois os que me antecederam viveram ali e isso já cria esse laço, esse cordão umbilical, entende?!”. É assim que Weslei se refere à vila que lhe deu régua e compasso. Embora tenha nascido em Santo Amaro, é em Iguape que ele é. “É justamente o meu lugar no mundo, no sentido de pertencimento. Esse sentimento de pertencer a um lugar, eu penso em uma raiz de árvore, que constrói uma ligação de energia com aquele solo, aquele território que ela não só nasceu, mas cresceu e se adaptou”, filosofa. Ao ser indagado se o Brasil tem jeito, analisando pela ótica das Ciências Sociais e das Humanidades, Cazaes é esperançoso: “Tem jeito, sim, só não sei para quem. Acredito que a raça humana tenha sede de poder sempre. Assistir a uma série, The 100, que mostra um pouco disso. Mudam de planeta, criticam o modo de outros governar, mas nunca deixam de estar sempre acima de um povo. Então, pensar que o Brasil é um país que tem jeito, no sentido de ser o tal paraíso, acho que ainda está no campo da fantasia. Mas quem sabe, sei lá, no século 30, isso comece a mudar… “A esperança é a última que morre”.
Para Weslei, os amigos é mais uma versão de família. “Digo, muitas vezes, que família não é necessariamente, para mim, de sangue. Eu acredito muito que é o orixá que coloca na minha vida pessoas que valem a pena. Outras passaram por mim e não ficaram, por não conseguirem alguma coisa… Eu já peguei pessoas falando mal de mim e mesmo assim agia na falsidade. Então, essas pessoas, naturalmente, sumiam de minha vida e isso é massa”. Amizade verdadeira ele tem com a Lua, que exerce um fascínio desde sempre: “Minha relação com a Lua sempre foi curiosa… Talvez, por ser algo que está distante desse planeta e que, talvez, se eu pudesse ir para lá, me livrava de muita coisa desnecessária. Só sei que ela me emociona. Em 21 de dezembro de 2018, se tornou ainda mais especial, pois minha namorada me pediu em namoro numa noite em que a Lua estava cheia. Então, ela foi a nossa plateia. Inclusive, em momentos em que estamos distantes e vemos a Lua, nos reconectamos e lembramos um do outro. Aí, mandamos fotos”. Weslei tem força, energia e romantismo.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

******
Canais de Weslei Machado Cazaes nas redes sociais digitais:
 
******
Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Weslei Machado Cazaes
Data da entrevista (feita por e-mail): 7/10/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
Padrão
#Esquenta10AnosDoDesde, #NoveAnosDoDesde, Cultura, Gente é pra brilhar!, Jornalismo Cultural

Entre a Vitória e o Paraíso: os caminhos de Vagner de Alencar

Jornalista, escritor e mestre em educação que caminha entre a Bahia, São Paulo e o mundo

Vagner de Alencar: educação e comunicação para mudar o mundo. Foto: Ira Romão

Por Raulino Júnior

O filho mais velho de Osmilda e Valmir, irmão de WadilaUeslenDaniel e Daniele, nasceu em Vitória da Conquista, cresceu no povoado Cavada II, em Barra do Choça, e morou por mais de dez anos em Paraisópolis, considerado o maior bairro favelizado da cidade de São Paulo. Já foi para os Estados Unidos, Colômbia e Argentina. Contudo, questionado sobre qual é o seu lugar no mundo, não titubeia: “Meu lugar no mundo acho que é o mundo, ainda quero desbravá-lo mais e mais. Mas meu porto seguro sempre será o povoado na Bahia, onde cresci”. Vagner de Alencar Silva (“Embora eu raramente use o Silva”) é um ariano determinado e perseverante. Aos 33 anos, o baiano é escritor, jornalista (formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie), mestre e doutorando em Educação: História, Política, Sociedade (pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP), cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias (AMJP), projeto pioneiro que tem como missão “minimizar as lacunas de informação e contribuir para a desconstrução de estereótipos sobre as periferias da Grande São Paulo”, que completa uma década em novembro deste ano. Em 2011, com a pauta Educação para quê? Universos educativos desperdiçados em Paraisópolis, feita em parceria com Bruna Belazi, foi um dos vencedores do 3º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão. Em 2013, em outra parceria com Bruna, lançou o livro-reportagem Cidade do Paraíso – Há vida na maior favela de São Paulo, fruto do TCC do curso de Jornalismo. Ler e contar histórias sempre esteve presente na vida de Vagner. O ingresso no curso de Jornalismo potencializou ainda mais isso. “Eu sempre gostei de histórias, mas não imaginei que pudesse ser jornalistas, e sim professor. Como já fui e ainda quero. O Jornalismo meio que surgiu por acaso, quase como um devaneio. Eu já estava estudando Letras quando, com a mesma nota do Enem, tentei outros cursos por meio do Prouni. Jornalismo foi a primeira opção, fui aprovado no Mackenzie, então decidi migrar. A melhor decisão”, explica. O amor pelas letras pode ser lido nas crônicas que escreve no Medium. “Ainda vou escrever um livro de crônicas com histórias da Bahia chamado ‘O pé de angelim’, que é a árvore na qual minha mãe foi sepultada. O valor simbólico por si só já diz tudo”. No texto, Vagner narra parte da história da família e a morada de três vida no pé de angelim, que fica no quintal da casa de seu avô, em Barra do Choça. “É o texto mais bonito que já escrevi”

Jornalismo das Periferias

Vagner (também) de Paraisópolis. Registro feito por Anderson Meneses, em 2017

Ser agente de transformação social é uma premissa que acompanha Vagner em todos os projetos que atua. A Agência Mural é um deles e simboliza isso de forma contundente. Nela, junto com uma equipe, contribui para amplificar vozes de moradores das periferias. “Ter crescido sem ter espelhos para me inspirar foi difícil. Costumo dizer que hoje fico feliz em poder ser esse reflexo na vida de crianças e jovens da Bahia, da zona rural onde nasci, até mesmo das favelas de São Paulo. Se eu acreditava não ter uma missão na Terra, acho que ela já existe”. A AMJP nasceu de um curso de jornalismo cidadão ministrado pelo jornalista Bruno Garcez, que, na época, vivia em Londres e ganhou uma bolsa  de um instituto para trabalhar o tema em São Paulo. Após o curso, os jovens que participaram (cerca de 20 pessoas), com ajuda de um jornalista que trabalhava na Folha de S. Paulo, lançaram o blog Mural, hospedado no site do periódico, em novembro de 2010. Cinco anos mais tarde, lançaram, informalmente, a Agência Mural. Além de Vagner, Izabel MoiAnderson MenesesPaulo Talarico e Cíntia Gomes dirigem a organização.
De acordo com Vagner, a Mural mostra as periferias como elas são: “O noticiário sempre foi enviesado, com pautas estereotipadas, mostrando as periferias como algozes da cidade, violentas ou com o estigma de coitadinhas. Não nos sucumbimos ao terror. Ao contrário, mostramos as periferias como elas são: com seus problemas ligados à falta de infraestrutura e serviços, e as potencialidades que nelas existem, seja pelos moradores, por iniciativas locais etc.”. A Agência tem mais de 50 muralistas, como são identificados os correspondentes. Para atuar como tal, basta ser morador de periferia, ter interesse ou o mínimo de habilidade com comunicação. E de quem foi a ideia do nome? “O nome veio do Bruno, o cara que ministrou o curso em 2010: Mural Brasil. Daí, deixamos apenas Mural. Não há um sentido próprio, mas nós costumamos dizer que nos inspiramos na Revolução Muralista, uma revolução de artistas mexicanos, que pintaram muros no país como forma de protesto”.

O pesquisador e o cidadão do mundo

Vagner de Alencar. Foto: reprodução do Instagram

Vagner e a família deixaram a Bahia no fim dos anos 80. “A primeira favela na qual moramos foi Jardim Edite, perto da Rede Globo. Ela foi desapropriada e voltamos à Bahia. Alguns parentes migraram para Paraisópolis. Anos mais tarde, por conta do câncer de minha mãe, voltamos a São Paulo, dessa vez, para Paraisópolis, já que por lá tínhamos conhecidos. A minha história com Paraisópolis começa em 1995, onde vivi, em anos alternados, por mais de uma década”. E, de lá, partiu para o mundo: Colômbia (a passeio), Argentina (convidado para participar da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires) e Estados Unidos (representou o Brasil em um intercâmbio de jornalistas considerados líderes mundiais, numa conexão com outros 20 profissionais de todo o mundo). Na pesquisa de doutorado, faz uma investigação, na perspectiva histórica, comparando o fracasso escolar no Brasil, Argentina e Espanha. Para ele, a maior fragilidade da educação escolar brasileira vem da falta de visão dos governantes. “A maior fragilidade está ainda em os governantes não entenderem (talvez porque, infelizmente, este seja também um projeto de governo) que só a educação de qualidade transforma. Que ela é quem permite que jovens, de fato, entendam suas potencialidades para refletir, questionar, reivindicar. A falta de investimento (de recursos, formação etc.) é, para mim, o grande entrave para a transformação do país; pois, sem educação, não há como pensar para criticar, transformar, exigir”.
Vagner é o cidadão que está envolvido com várias causas e em muitos projetos. Requisitado, responde se tem facilidade de falar “não” para alguma proposta: “Para quem vem de uma vida de muitos ‘nãos’, até mesmo de coisas básicas (um brinquedo, um alimentado específico), você vai aceitando os ‘sins,’ justamente para cumprir essas faltas ou por conta delas. Hoje, felizmente, já posso (embora com muita dificuldade) dizer alguns ‘nãos’. É um exercício. Mas sou esse ser que (ainda) aceita muita coisa, porque todas são muito bacanas”. Vagner é o jornalista que admira Caco Barcellos e Maju Coutinho; o cronista que ama Nelson Rodrigues e Antonio Prata; o educador que faz reverência à Denise Paiero, professora, orientadora e “padrinha”, e a Paulo Freire. Vagner, como o pé de angelim e como diz a música popular, é “uma árvore bonita”.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

******
Canais de Vagner de Alencar nas redes sociais digitais:
 
******
Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Vagner de Alencar
Data da entrevista (feita por e-mail): 4/10/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
Padrão
#Esquenta10AnosDoDesde, #NoveAnosDoDesde, Cultura, Gente é pra brilhar!, Jornalismo Cultural

Marco Antonio é Fera!

Ator, comunicador, criador de conteúdo e produtor cultural sorocabano não teme desbravar o mundo

Marco Antonio Fera: de Sorocaba, do Brasil e do mundo . Foto: Kayan Viana

Por Raulino Júnior

Para começo de conversa, ele é de leão. Estreou, como gosta de dizer, no dia 2 de agosto de 1987. Marco Antonio Fera é cuidadoso ao falar que, da sua casa, é o mais à frente do seu tempo. O cuidado, pelo que parece, é pura modéstia. Ele mesmo justifica: “Eu fui o primeiro filho a acessar a universidade [fez Teatro – Arte Educação, na Universidade de Sorocaba (UNISO)] , o único a estudar fora do Brasil [no Chile], através de um intercâmbio, o que mais viaja, o que mais fica fora de casa, o que já morou em São Paulo. Enfim, tenho muita andança pelo mundo”. E essa é uma característica muito forte na personalidade dele. Marco Antonio é uma pessoa que se movimenta e se considera extremamente agitado. “Sou urbano, sou dos grandes centros. Eu gosto de lugares agitados. A pandemia me machuca muito, porque ela me faz estar parado, me faz estar em casa. Eu moro numa cidade [Sorocaba], trabalho em outra [Boituva] e estudo em outra [São Paulo]. Eu vivo em três cidades ao mesmo tempo, nos meus últimos dois anos. E eu gosto de estar no mundo. Eu gosto de andar, eu gosto de transitar”, explica. Por isso, ao ser questionado sobre qual é o seu lugar no mundo, não titubeia: “O meu lugar no mundo é no mundo”.

Agora, por causa da pandemia, o seu lugar no mundo é Sorocaba, perto da mãe (dona Maria Helena) e dos irmãos (Luiz Fernando e João Paulo). O pai, seu José Cassiano, faleceu ano passado. Os genitores influenciaram o pensamento crítico de Marco e sempre foram abertos ao debate de quaisquer questões trazidas pelo artista para dentro de casa. “Eles são de uma outra geração, onde não se discutia racismo, mas se vivia o racismo, de uma forma muito mais pesada e muito mais ferrenha. Os meus pais estão em mim e estarão eternamente. Na educação, na forma de ser e de estar, na forma de me comportar, nos ensinamentos, na ancestralidade. Eles nunca falaram sobre racismo, mas, desde pequenininho, a gente já tinha RG. Em 1994, 1995, não era natural crianças terem RG. Minha mãe falava: ‘Não pode sair sem isso daqui. Em nenhum momento, pode esquecer. Não pode perder de jeito nenhum. Vai no centro da cidade? Não chega perto de nenhum objeto. Olhe tudo de longe, não toque em nada. Não corre na rua! Não empreste nada do amiguinho. O que você quiser, pede pra mim’. Minha mãe e meu pai reviravam as nossas mochilas. Minha mãe olhava todos os cadernos. Nosso caderno sempre tinha que estar limpo, nossa roupa também. A gente sempre tinha que estar cheiroso”.

Causas, questões e posições

Marco Antonio Fera: “A comunidade LGBTQIA+ ainda é regida pelos padrões heteronormativos”. Foto: Kayan Viana

Em junho de 2018, Marco publicou o artigo Ser homem, ser negro, ser gay, ser só, no site da agência de jornalismo Alma Preta. Na ocasião, afirmou: “Sempre acreditei que não merecia amor. Corpo negro em um mundo branco”. A virada nesse pensamento veio com a terapia, que faz há dois anos. “Sem terapia, não teria entendido isso, porque a gente vai para a escola e a escola é um dos piores lugares para as pessoas pretas, não é? Ali, a gente forma identidade, a gente forma a visão de mundo, a gente tem noção de comunidade. E ali é fundado muitos dos nossos traumas, não é? Depois, vai se perpetuar para a nossa vida e a gente acha muito natural tudo que acontece na escola: as piadas, as rejeições por parte do corpo docente e por parte do corpo discente. A gente acaba acreditando que tudo isso é muito normal, muito natural. Então, a gente chega aos 20, aos 30, se acostumando a ser só, se acostumando a não receber afeto, a não receber todas essas coisas que fazem parte desse campo da subjetividade, não é? Depois, a gente começa a pesquisar sobre as questões negras e existe um novo nascimento. Existe o dia que a gente nasceu e existe o dia que a gente teve uma consciência do que é esse universo, do que é esse planeta. Então, eu comecei a entender, através dos livros, a partir dos 22 e 23 anos de idade, o que representava a negritude, o que representava ser um homem negro na sociedade. A partir disso eu começo a entender o que é ser negro, mas essa questão da subjetividade, essa questão do afeto, ela vem mais com a terapia mesmo”, desabafa.

É com essa mesma consciência que, no artigo já citado, ele questiona a comunidade LGBTQIA+“Como projetar o amor em uma comunidade que vive o cárcere da heteronormatividade?”. Na entrevista para este perfil, é convidado a responder a própria pergunta: “É uma comunidade muito preconceituosa, muito fechada nas caixinhas. E, por mais que seja uma comunidade LGBTQIA+, ainda é uma comunidade regida pelos padrões heteronormativos, pela heteronormatividade. A heteronormatividade é um malefício para todas as pessoas, inclusive para os héteros. Se você é um hétero mais fora da caixinha, mais desconstruído, você vai passar por uma opressão, você também vai passar por um olhar de desconfiança. Pode ser um lugar de desconforto também. Então, quando a gente vê um homem gay e que, entre muitas aspas, não parece ser gay, vê isso como um benefício. Como se não parecer fosse um benefício, quando, na realidade, é trágico, porque mostra que as nossas identidades, as nossas formas de ser e de estar no mundo, não são validadas, não são legitimadas. Se você não corresponder ao padrão heteronormativo, se você não performar o homem viril, não performar a masculinidade, você vai acabar sobrando, você vai acabar não tendo amor. E quando você é homem, negro, gay, afeminado, você vai ficando mais fora dessa bolha, você vai ficando mais fora dessa comunidade. Então, de fato, é um cárcere e eu não tenho uma resposta para essa pergunta; mas, para viver uma experiência de amor, você precisa do outro. Então, precisaria de uma desconstrução coletiva e sobre isso não tenho segurança de que está existindo. Então, posso falar de mim: um homem negro, de 33 anos, que não viveu a experiência de amor ainda. Eu nunca namorei. Então, esse cárcere ainda predomina na minha vida”.

Pretinho mais que básico

Marco Antonio Fera: “Ser ativista é um lugar que machuca e adoece”. Foto: Kayan Viana

Marco sempre quis trabalhar na TV e ser apresentador. Além disso, gosta de falar, de conversar com as pessoas e é muito curioso. Por isso, em 2016, criou o canal Pretinho mais que básico, no YouTube, cujo lema é: “A nossa cara preta em todo espaço e em todo lugar”. Para ele, o canal cumpre algo que o Estado deveria cumprir: “Um espaço para as pessoas pretas existirem na sua natureza”. Contudo, revela que, muitas vezes, se sente cansado por ter que militar sempre. Reclama que não tem tempo de falar bobagens no canal. “Eu já passei por várias crises, porque, às vezes, eu quero falar de comprar pão, sei lá. Quero falar de uma bobagem, de gente bonita, de que tenho crushes e não dá, porque na mesma semana que eu quero falar sobre isso, eu tenho que falar do cara que teve um discurso racista. E esses discursos matam, esses discursos nos encarceram, esses discursos nos limitam. Esses discursos fazem com que eu, um ator, formado no Brasil, formado fora do Brasil, com curso em televisão, curso em cinema, com experiência, não tenha um trabalho. Não realizei meu sonho ainda de fazer uma novela, não realizei meu sonho ainda de fazer uma série, não realizei meu sonho de fazer um filme, simplesmente porque eu sou negro, porque eu tenho a minha pele preta e as pessoas acham que o meu biótipo não vende, o meu biótipo não forma opinião, o meu biótipo não é popular, mesmo as pessoas que se parecem comigo sendo 56% da população. Então, eu acho que o meu canal vem nessa toada, de naturalizar as experiências, de naturalizar as existências”.

Pretinho mais que básico: “A nossa cara preta em todo espaço e em todo lugar”. Clique na imagem para assistir aos vídeos. Captura de tela feita em 11 de setembro de 2020.

O que o youtuber naturaliza também são as suas formas de ser e mostra por que é mais que básico. “Tudo o que eu faço, eu faço cem por cento, eu me debruço para fazer o melhor possível. Eu acho que tudo que eu faço, eu faço com muito carinho, faço com muita atenção, faço com muito cuidado e com muito profissionalismo. O que eu mais gosto de fazer, e o que eu gostaria de fazer durante toda minha vida, era ser só ator, e youtuber com outras condições. Eu gosto muito de dar aula, mas foi o caminho que eu encontrei para sobreviver. Não foi uma coisa assim: ‘Meu sonho de princesa era ser professor’. Sou professor há 12 anos. O produtor cultural veio porque ninguém me chamava para trabalhar. Ninguém me chamava para fazer teatro. Eu não conseguia fazer filmes, eu não conseguia fazer nada, porque as pessoas não me chamavam e eu cansei de esperar as pessoas. O produtor de conteúdo e o apresentador vieram com essa questão de querer estar na mídia. Eu precisava criar uma mídia. O ativista é porque eu sou uma pessoa preta e preciso estar sempre nesse modo, mas é um modo muito difícil para mim também, porque adoece, machuca, violenta, cansa. Não é uma coisa fácil. É claro que eu queria estar num lugar muito mais confortável e onde eu pudesse produzir as minhas coisas de um outro lugar, um lugar que causasse menos dor, porque ser ativista é um lugar que machuca também e adoece. Se a gente não tiver um suporte, se a gente não tiver ferramentas, é difícil”.

Marco é um crítico do sistema educacional do Brasil. Tanto da educação básica quanto da superior. Para ele, os professores das escolas são caretas e a universidade é castradora. “Os professores são caretas porque muitos deles são professores muito antigos, velhos, que estão lá, têm um pensamento retrógrado e não querem mudar. A educação é o lugar mais deseducado do planeta. É louco imaginar isso. A educação é o lugar onde menos se tem educação, onde menos se tem pensamento, onde menos se tem desconstrução. É uma fôrma mesmo. E é muito triste porque os adolescentes, as crianças entram ali totalmente buchinhas, prontos para ser uma esponja, que absorve, e, infelizmente, a educação, o sistema, tem o pior para oferecer e aí forma adultos preconceituosos, homofóbicos, racistas, machistas, intolerantes. Isso é uma responsabilidade da própria sociedade e, principalmente, do processo educacional. A educação, a escola, é o lugar mais violento, mais perverso e mais nocivo para um ser humano e não sei se os pais se dão conta disso. Transborda caretice. Se fosse só careta, talvez seria um pouco melhor, mas não, é careta e muito violenta”, opina. E a universidade? “A universidade continua castradora. Uma universidade que tem como base o eurocentrismo e desconsidera as contribuições negras para o processo educacional, para a formação de uma nação, é castradora, porque a população não é 100% branca, 100% europeia. Um país que teve como matriz o indígena, a língua tupi, e para você entrar no mestrado, exige o inglês. Isso é castrador porque retira o direito de um conhecimento que é nosso. Então, só por isso é castradora, porque retira o nosso direito de criar as nossas humanidades. O sistema é perverso e a universidade é castradora por causa disso”.

Fera nas artes

Marco Antonio Fera: determinação e força para fazer acontecer. Foto: Kayan Viana

Marco é bastante determinado e tem uma força de fazer as coisas acontecerem que nem ele mesmo sabe de onde vem. “Eu não sei de onde vem essa força. Eu não sei de onde vem essa determinação. Eu só sei que eu sou uma pessoa assim. Eu quero aquilo, vou e acontece. É muito louco. É da minha natureza. Gosto de falar que é coisa de leonino, mas não sei também. Estou jogando na roda”. Foi assim quando decidiu morar fora do Brasil [“O cara do Departamento de Relacionamentos Internacionais da universidade foi divulgar a oportunidade na minha sala. Olhei para aquilo e falei: ‘Gente, eu vou morar fora do Brasil’. Eu não sabia nem para onde eu iria. Eu não sabia falar nenhum idioma, não tinha dinheiro. Em seis meses, eu ajeitei tudo e fui estudar fora do Brasil”], quando encasquetou que ia ao programa de Silvio Santos, para ganhar 50 mil reais [“Em 2010, eu estava assistindo ao programa e aí um cara ganhou 500 mil reais. Eu falei: ‘Vou nesse programa e eu vou ganhar esse dinheiro’. Isso foi num domingo. Eu me inscrevi no programa, mandei minha foto, minhas coisas todas. Na terça-feira, eu estava no SBT fazendo teste para o programa. No domingo seguinte, eu já estava gravando com Silvio Santos e ganhei 50 mil reais”] e quando começou no teatro [“Eu queria muito fazer TV. Na época, estava com 12 anos e tinha aquela novela Chiquititas. A produção fazia uma excursão pelo interior da cidade para descobrir novos e novas Chiquititas, o que era uma grande mentira. Era só pra fazer aquele boom. Fui fazer um teste na minha cidade e não passei. O cara falou assim: ‘Olha, quem não passou, faz teatro, porque na próxima vez, estará pronto para fazer o teste e passar. E aí eu saí dali já pensando que tinha que fazer teatro e fui me inscrever na Oficina Cultural Grande Otelo, que era uma oficina aqui da cidade. Lá, eu me formei. Depois dessa primeira oficina, eu nunca mais parei”].

Não parou e ampliou a atuação nas artes cênicas. Em 2011, com a companheira de trabalho Clarice Santos, fundou o Grupo Trança de Teatro, que tem três espetáculos no repertório: No Voo do Instante (2013), Corpo-Notícia: Relatos sobre o Amor e a Violência (2016) e Ilu Okan: O que Minha Vó Contou (2018). No cinema, só fez curtas, e ajudou num roteiro. “Fiz também um curta meu, Estrela Solitária (2018), que produzi, idealizei e atuei”. Os planos para a carreira artística tiveram que ser modificados, devido à pandemia. “Tinha muitos projetos para fazer, mas eu tenho vontade de fazer um solo no teatro e continuar com meu aprendizado de sanfona, utilizar a sanfona nos meus trabalhos. Mas eu sou uma pessoa sem limites. Para o que me chamarem, eu estou dentro e a fim de de fazer. Acho também que temos que entender esse momento, viver esse processo, produzir durante esse processo. A gente não sabe o que vai ser o normal. Então, é experimentar esse lugar, essa experiência da pandemia”. Para a carreira acadêmica, pretende ingressar no mestrado. “Por uma questão da pesquisa mesmo e por uma questão de ocupar aquele espaço”.

Questionado se acredita que, após a pandemia, os artistas vão usar as redes sociais digitais para difundir mais conteúdo artístico e menos futilidade, Marco é categórico: “Nunca. As pessoas não vão mudar. Infelizmente. Tem uma pandemia aí, mas as pessoas não vão mudar. E o artista é uma pessoa. Ele é um ser humano, ele não está alheio à sociedade. Ele não está isento. O artista possui todas as questões que a humanidade possui. As pessoas costumam endeusar o artista, colocar num pedestal, ver como um santo de porcelana. Na verdade, não. Tem muitos artistas que eu fico com a obra, o indivíduo eu anulo para não deixar de amar a obra e de consumir aquilo que me faz bem. Infelizmente, acho que as pessoas não vão mudar. A futilidade sempre estará por aí”, conclui. Marco se mostra e não teme ser quem é.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

******
******
Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Marco Antonio Fera
Data da entrevista (feita por e-mail): 13/8/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
Padrão
#Esquenta10AnosDoDesde, #NoveAnosDoDesde, Cultura, Gente é pra brilhar!, Jornalismo Cultural

Ele é tudo. Ele faz tudo. Rosberg Adonay é um mundo!

Multiartista radicado em Caruaru “pula, canta, dança e faz acontecer”*

Rosberg Adonay: artista pernambucano inquieto e multifacetado. Foto: Jorge Farias

Por Raulino Júnior

“Eu mesmo assumo as funções, pois não tenho orçamento para contratar os profissionais”. É assim que Rosberg Adonay Rodrigues Galvão, 25 anos, há 11 no ativismo artístico, responde à pergunta sobre o que falta ser. Porque, quem acompanha as suas redes sociais digitais, vê que ele é ator, poeta, dramaturgo, diretor, cantor, compositor, produtor cultural, bailarino, figurinista, iluminador… A justificativa: “Eu sempre tive curiosidade em aprender todas as linguagens que têm relação com a arte. Eu me identifico completamente e tenho muita facilidade de aprender. Tenho que aprender de tudo um pouco, para poder realizar o trabalho”.
E o trabalho que Rosberg realiza não é pouco. Além de ser arte-educador na Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos da Prefeitura de Caruaru, ele atua, cria, compõe e produz na Trupe Veja Bem Meu Bem, grupo de teatro que tem como objetivo aproximar o artista do público. “Isso é implementado atingindo as minorias, comunidades, escolas, universidades, grupos parceiros. Atingindo o público de várias formas, adequando espaços e linguagens. Levar a arte até onde existe a ausência da arte”, explica. É também integrante da Trupe Gargalhada (onde é o palhaço Biliro) e da Cia Pernas Pra Circulá. Protagoniza o monólogo Poeta Preto, cujo objetivo é chamar a atenção para o preconceito que os negros sofrem na sociedade, e, nesse momento de distanciamento social devido à pandemia do novo coronavírus, utiliza as redes sociais digitais para compartilhar experimentos cênicos. “Eles partem de um processo de pesquisa sobre a criação individual, independente e orgânica. As plataformas digitais têm suas importâncias, agregam no crescimento artístico do trabalho e é a única opção no distanciamento social para continuar trabalhando e produzindo”. Contudo, apesar de toda essa versatilidade, ao ser indagado como se define artisticamente, Adonay não titubeia: “Ator criador e produtor cultural. Consigo agregar outras definições à palavra criador. O ator que cria sua obra com poucos recursos financeiros, mas com muito profissionalismo e amor”.
Família, Caruaru, formação artística

Rosberg Adonay no seu quarto: espaço de criação artística. Foto: Jorge Farias

Embora tenha nascido em Belo Jardim, Rosberg considera São Bento do Una sua cidade natal e Caruaru a de coração. “Me considero 50% caruaruense. Amo de coração essa cidade, sua história, sua riqueza. Acredito que meus ancestrais eram os cariris, que habitavam antes dos primeiros fazendeiros invadirem suas terras, em Caruaru e nas cidades vizinhas, como PesqueiraArcoverde, Belo Jardim, São Bento do Una… Tenho certeza que minhas raízes estão nesta região”. Ele chegou a Caruru quando criança. Os genitores, Márcia Rodrigues de Moura e Sérgio Rogério Galvão, se separaram e a mãe decidiu fixar residência na cidade, também conhecida como a “Capital do Forró”. Rosberg e as irmãs, Marian e Indiara, foram criados por Márcia e pela avó materna, dona Darcy.
“Foi onde conheci o teatro e a arte”, complementa, ao falar de Caruaru. Conheceu e se formou. Na verdade, a formação de multiartista começou na infância. “Eu tinha um comportamento superartístico, através do rádio, da TV, da Igreja Católica e da escola. Eu ia sempre à missa com minha mãe e minha vó, e decorei as músicas, o texto do padre, as marcações. Chegou um tempo que eu sabia a missa inteira. Decorava comercias de TV e gostava de cantar todos os dias, à tarde, no quintal de casa, as músicas das novelas e as que ouvia pelo rádio. Sempre quis dançar nos eventos da escola, apresentar trabalho na frente da sala; mas eu sempre fui um pouco tímido, reservado. Hoje, ainda sou um pouco, mas não mais no profissional. Hoje, eu me defino como ator criador pelo ato de compor uma obra independente, desde a função de diretor, autor e produtor até as de contrarregra, figurinista, iluminador, cantor, compositor e o que for preciso para fazer o que amo e dar vida à minha obra”. 
 
E para essa obra ganhar vida, Rosberg foi atrás do aprendizado. Passou pelo tradicional Teatro Experimental de Arte (TEA), o Cena Aberta e o Grupo Andanças (de dança contemporânea). Foi fisgado pelo teatro, arte que o possibilita experimentar de tudo, uma arte-mundo. “Eu me encontrei no teatro. Encontrei pessoas com semelhanças parecidas com as minhas, personalidade, forma de pensar. No teatro, eu encontrei respeito, coletividade, companheirismo, disciplina, trabalho, amor…”.

Rosberg e seu mundo artístico

Rosberg em cena do espetáculo Poeta Preto: morte por branqueamento ideológico. Foto: Jorge Farias

Em 2009, quando começou a fazer teatro, Rosberg era Rosberg Alexsander. “Era uma desconstrução social e também pelo fato de escolher um nome artístico para se compor enquanto obra/artista”. Depois, passou a ser Dom Alexsander Preto. “Eu vejo como um processo de descoberta”. Hoje, assina Rosberg Adonay. “Me apeguei ao meu próprio nome, acho que fala mais. O Adonay é muito forte e o Rosberg é marcante”. Marcante também foi o ano de 2014, mais precisamente o 1º de março, quando começaram as vivências artísticas da Trupe Veja Bem Meu Bem [assista ao vídeo em que Rosberg fala sobre o início da Trupe], da qual é um dos fundadores. Já no primeiro ano do coletivo artístico, independente e alternativo de teatro, como Adonay descreve a Trupe, encenou e atuou no espetáculo Cadê o meu amor que não veio? e, com ele, foi premiado Melhor Ator do XVI Festival  de Esquetes de Caruaru (Festec). Contudo, ele não fica envaidecido com premiações e considera o processo artístico mais importante que a obra. “O prêmio é apenas um reconhecimento artístico de uma determinada apresentação. O teatro é como a vida, se renova a cada dia. No meu ponto de vista, o processo é mais importante que a obra, no aspecto de valor artístico e aprendizagem. A descoberta da criação, das possibilidades, da troca com o outro. A obra tem o seu valor, as apresentações que ficam marcadas, a troca com o público. O reconhecimento é mais um passo. O sentido é manter a obra em pé, viva e forte. Tem que fazer sentido dentro, tem que ter amor e humildade”.

Fazer sentido é uma premissa que acompanha o artista desde sempre. Por isso, faz questão de dizer que faz militância na arte. O monólogo Poeta Preto, que estreou em outubro de 2017,  é um grito que reverbera toda essa luta por justiça social. Com texto de Vanderson Santos e direção de Pedro Henrique, o espetáculo aborda racismo e desigualdade, problemas ainda tão comuns na sociedade brasileira. “Sempre levo comigo a questão da militância na arte. Discussão sobre desigualdade, violência, racismo, feminicídio, LGBTfobia, genocídio, intolerância religiosa. O Poeta surge como porta voz da classe oprimida. Não tem arrodeio, é a verdade e a realidade nua e crua na cara da plateia. Ele é a própria consciência humana e desafia a plateia o tempo inteiro a ouvir, pensar e refletir sobre a nossa existência e o que estamos fazendo aqui enquanto seres humanos. O Poeta morre no final do espetáculo, pintando seu rosto de branco e vomita na cara de todos. Ele morre de branqueamento ideológico, frustração, porque ainda existe racismo, ódio, negação nos olhos de algumas pessoas que assistem. Ele morre porque eu, o ator que o interpreta, ainda saio na rua e sou discriminado por ter um black power enorme. Piadas. O olho fala mais em alguns momentos. Ele morre porque a plateia fica em choque emocional, porque alguns não entenderam, não refletiram, nem se quer ouviram. Ele não morre, ele sempre renasce, ele é nós, ele é também nossa voz”, desabafa.Em 2016, fez uma participação no show A mulher do fim do mundo, de Elza Soares. Descreve a experiência como “maravilhosa e encantadora”. “Agradeço demais a Gabriel Sá e a Chico Marinho, grandes artistas da terra, que me indicaram para fazer a participação no show de Elza, no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG). Eu e mais três amigos da arte e militância. A performance era entrar, sentar perto de Elza e criar relação com ela, os músicos, a musicalidade e o público. Acho que a minha entrega nessa cena foi incomparável a qualquer outra que já fiz. Eu estava ao lado da Rainha, da Mulher do Fim do Mundo, aquela que sempre escutei desde pequeno no rádio e na internet”.

Rosberg Adonay durante a videoperformance Por Perto, poema de Pierre Tenório: artista multimídia. Foto: Jorge Farias

Rosberg é multimídia. Participou de curtas (João Heleno dos Brito, de Neco Tabosa; e Ela é artista, de Vander Santos), da série AFROntar (TV Jornal Interior) e do longa Palavras de Rua (Pablo), dirigido por Léo Batista e Paula Monteiro. Está preparando o curso on-line O lugar onde se vê, no qual vai abordar o processo de criação artística e improviso. No final, pretende montar uma adaptação do texto A parte que falta, do estadunidense Shel Silverstein. O projeto é uma parceria da Right Hemisphere Creative Productions (mais uma ação de Rosberg) com a Trupe Veja Bem Meu Bem.

O belo-jardinense carrega traços de seriedade e meninice, na mesma intensidade. Isso, obviamente, se reflete em suas produções. Na Trupe Gargalhada, onde assume a persona do palhaço Biliro, mostra a criança viva que habita o seu corpo. “Com o Biliro, eu volto a ser criança. É meu exagero irônico, meu eu poético. Ainda estou descobrindo esse clown, em processo de criação. O Biliro é mais um filho que crio, mais um grande artista, como o Poeta, a Nega Rhos, Patativa do Assaré, Chicó, Gregório Sampsa, Biriba e mais alguns que não lembro”, enumera os personagens que viveu/vive. Nas composições musicais e poéticas, fala do homem que é, de liberdade. Usa todas as formas de  expressão artística para se sentir nu, livre. “Nada é forçado. Tudo é desejo e arte. Meus poemas são meus pensamentos encharcados de palavras, são explosões de sentimentos presos. Escrever é limpar, é reiniciar seu corpo, sua mente, seu estado de espírito, é conversar com você mesmo, relatando no papel. Um mar de palavras da mente, escritas no papel, organizadas em forma de reflexão e história. Eu lembrei que quando era criança, fiz uma promessa: prometi a mim mesmo que iria aprender a ler e escrever, pois adorava a escola. Escrevo desde que aprendi, na escola pública, lendo livros na biblioteca”. E assim Rosberg segue escrevendo a própria história, caminhando num mundo que não tem limite, porque é dele. 
____

*: referência à música Eclético, de Edu Tedeschi.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

******
Canais de Rosberg Adonay nas redes sociais digitais:
 
******
Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Rosberg Adonay
Data da entrevista (feita por e-mail): 19/8/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
Padrão
#Esquenta10AnosDoDesde, #NoveAnosDoDesde, Cultura, Gente é pra brilhar!, Jornalismo Cultural

“Gente é pra brilhar!”: série de perfis abre pré-comemoração pelos dez anos do Desde

Série integra projeto #Esquenta10AnosDoDesde

Por Raulino Júnior

O aniversário de dez anos do Desde é só em janeiro de 2021, no dia 1º, mas a nossa sede de produzir conteúdos jornalísticos é tão grande que vamos fazer uma pré-comemoração para antecipar o grande feito de estarmos há uma década, ininterruptamente, no ar. Tudo foi pensado no primeiro semestre deste ano e faz parte do projeto #Esquenta10AnosDoDesde. Depois de muitas leituras, pesquisas e imersão no universo do jornalismo cultural, chegou a hora de implementar.
A primeira das ações da nossa pré-comemoração é a série de perfis intitulada Gente é pra brilhar!. Pegamos emprestado um dos versos mais famosos de Caetano Veloso para contar histórias de pessoas que brilham pelo Brasil afora. Queremos investigar se “cada estrela se espanta à própria explosão”.

Card publicado nas redes sociais digitais, em 15 de julho, dando pistas da série pré-comemorativa

Em 2014, para comemorar os nossos três anos, fizemos a série Perfis do Desde. Naquela ocasião, contamos histórias de pessoas próximas, que conhecíamos ou que tínhamos algum contato. Dessa vez, o desafio vai ser ainda maior: vamos contar histórias de pessoas que conhecemos pela internet, nas interações através das redes sociais digitais. Como criar o perfil de alguém que você não conhece tanto nem tem ideia de como a pessoa é? Esse vai ser o grande e saboroso desafio. Jornalismo é percepção, é observação, é atenção. A nossa jornada vai começar no próximo domingo, 30 de agosto. O convite está feito e a “gente quer luzir”!
 
Desde que eu me entendo por GENTE
Bicho (album) - Wikipedia

Capa do disco Bicho, lançado em 1977.

A canção Gente, da qual tiramos o verso que dá nome à nossa série pré-comemorativa, é a terceira faixa do disco Bicho, que foi lançado pelo “bruxo de Santo Amaro” em 1977. O álbum tem outras músicas marcantes da carreira de Caê, como OdaraUm ÍndioTigresa e O Leãozinho. Na página 41 do livro Sobre as Letras (Companhia das Letras, 2003), organizado por Eucanaã Ferraz, Caetano fala sobre Gente:
É uma letra ingênua. Quando eu estava fazendo, achava uma loucura aquela música, que parecia coisa da Broadway, de musical de segunda. No show Transversal do tempo, Elis Regina cantava “Gente” como se estivesse debochando da canção, com o arranjo servindo ao deboche, e aparecia “Beba Gente” escrito atrás, como se fosse Coca-Cola. E ela fazia tudo como se fosse um show de travesti, como se fosse uma bicha. Depois, inclusive, ela pegou aquele hábito de fazer show feito bicha. Em Trem azul, o último show dela, ela apresentava os músicos assim: “Os meus bofes, esse aqui…”. Parecia um espetáculo da Rogéria, era muito bom. A Elis ficou muito melhor no final. Foi melhorando, melhorando, melhorando. Ela era boa musicalmente.
Um pouco antes de morrer, ela me escreveu uma carta dizendo que aquilo que ela tinha feito com a minha música em Transversal do tempo tinha sido ideia dos diretores do show, que ela não queria, que, por ela, não faria aquilo, e me pediu desculpas.
“Gente: espelho da vida, doce mistério”, não é mesmo? A seguir, ouça Gente.

No vídeo abaixo, veja a declamação do poema Gente.

Padrão