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2020: o ano-lupa. O que você enxergava, mas não via?

Imagem: reprodução do site Freepik

Por Raulino Júnior ||Desde Já: as crônicas do Desde||

Em sua coluna Fique de Olho, da Rádio USP, publicada no Jornal da USP em junho deste ano, o professor Eduardo Rocha, que é titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FMRP/USP), explicou para quem quisesse ouvir a diferença entre enxergar e ver. Na ocasião, o docente disse: “Enxergar significa, e se resume, ao ato biológico de registrar com os olhos. E, muitas vezes, algumas ações automáticas são feitas sem que nem percebamos em relação a isso. Ver envolve cognição, envolve interpretação; e assim é um ato cerebral, relacionado à visão, mais profundo”. 2020 foi um ano em que tivemos que parar, devido à pandemia do novo coronavírus. É verdade que muita gente não pôde fazer isso, por falta de condições e por necessidade. Contudo, em geral, as pessoas se viram obrigadas a adiar projetos, a se perceber e a perceber os outros com mais atenção. O ano nos forçou a colocar uma lupa em várias questões. Nesse sentido, o que você só enxergava, mas não via?

Viver no automático, como se fosse um robozinho programado para cumprir uma ação, faz o ser humano não ver muita coisa que acontece no seu entorno, que está diante dos seus olhos. 2020 trouxe isso. Com um pouco mais de tempo, a gente percebeu mais as coisas, as sensações. Vimos quem estava perto, mesmo longe; e quem estava longe, mesmo perto. Quem estava próximo e ficou ainda mais próximo e quem estava distante e ficou ainda mais distante. Quem, de fato, tem carinho por nós; e quem só lembra da gente nos momentos de apuro, quando há algum interesse. É como se tivéssemos tomado uma sacudidela da vida para apurar a vista e ver o óbvio. Isso, infelizmente, vira terreno fértil para decepções.

Eu vi muita coisa. Inclusive, coisas que não queria ver. Sei lá. Tem hora que é bom viver na ilusão. É menos nocivo e a nossa saúde mental agradece. No entanto, vi falsidade, frieza, silenciamentos, invisibilização. Vi gente defendendo ideais fascistas e corroborando práticas que condenava quando quem estava no poder não era gente da sua mesma laia. Vi gente, em público, defendendo ideias que não prejudicam o viver em sociedade; mas, em particular, avalizando opressões feitas pelo seu bloco do prazer. Vi gente confundindo mudança, que é natural e todo ser humano passa por isso, com caráter. Todo mundo muda e pode (às vezes, até deve) mudar, mas caráter é marca. Está lá na etimologia da palavra.

Fazendo um balanço: o ano foi triste, de muitas mortes, de muitos retrocessos. No mundo e no Brasil. Isso ninguém quer ver mais. Por outro lado, teremos que nos manter vigilantes, sempre com uma lupa na mão, para ninguém achar que a gente só está enxergando as coisas. Depois desse turbilhão que foi 2020, a nossa vista vai se manter apurada. A gente vai ver mais e enxergar menos. Isso é bom. E é ruim. É a vida.

Sigamos.

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