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Marco Antonio é Fera!

Ator, comunicador, criador de conteúdo e produtor cultural sorocabano não teme desbravar o mundo

Marco Antonio Fera: de Sorocaba, do Brasil e do mundo . Foto: Kayan Viana

Por Raulino Júnior

Para começo de conversa, ele é de leão. Estreou, como gosta de dizer, no dia 2 de agosto de 1987. Marco Antonio Fera é cuidadoso ao falar que, da sua casa, é o mais à frente do seu tempo. O cuidado, pelo que parece, é pura modéstia. Ele mesmo justifica: “Eu fui o primeiro filho a acessar a universidade [fez Teatro – Arte Educação, na Universidade de Sorocaba (UNISO)] , o único a estudar fora do Brasil [no Chile], através de um intercâmbio, o que mais viaja, o que mais fica fora de casa, o que já morou em São Paulo. Enfim, tenho muita andança pelo mundo”. E essa é uma característica muito forte na personalidade dele. Marco Antonio é uma pessoa que se movimenta e se considera extremamente agitado. “Sou urbano, sou dos grandes centros. Eu gosto de lugares agitados. A pandemia me machuca muito, porque ela me faz estar parado, me faz estar em casa. Eu moro numa cidade [Sorocaba], trabalho em outra [Boituva] e estudo em outra [São Paulo]. Eu vivo em três cidades ao mesmo tempo, nos meus últimos dois anos. E eu gosto de estar no mundo. Eu gosto de andar, eu gosto de transitar”, explica. Por isso, ao ser questionado sobre qual é o seu lugar no mundo, não titubeia: “O meu lugar no mundo é no mundo”.

Agora, por causa da pandemia, o seu lugar no mundo é Sorocaba, perto da mãe (dona Maria Helena) e dos irmãos (Luiz Fernando e João Paulo). O pai, seu José Cassiano, faleceu ano passado. Os genitores influenciaram o pensamento crítico de Marco e sempre foram abertos ao debate de quaisquer questões trazidas pelo artista para dentro de casa. “Eles são de uma outra geração, onde não se discutia racismo, mas se vivia o racismo, de uma forma muito mais pesada e muito mais ferrenha. Os meus pais estão em mim e estarão eternamente. Na educação, na forma de ser e de estar, na forma de me comportar, nos ensinamentos, na ancestralidade. Eles nunca falaram sobre racismo, mas, desde pequenininho, a gente já tinha RG. Em 1994, 1995, não era natural crianças terem RG. Minha mãe falava: ‘Não pode sair sem isso daqui. Em nenhum momento, pode esquecer. Não pode perder de jeito nenhum. Vai no centro da cidade? Não chega perto de nenhum objeto. Olhe tudo de longe, não toque em nada. Não corre na rua! Não empreste nada do amiguinho. O que você quiser, pede pra mim’. Minha mãe e meu pai reviravam as nossas mochilas. Minha mãe olhava todos os cadernos. Nosso caderno sempre tinha que estar limpo, nossa roupa também. A gente sempre tinha que estar cheiroso”.

Causas, questões e posições

Marco Antonio Fera: “A comunidade LGBTQIA+ ainda é regida pelos padrões heteronormativos”. Foto: Kayan Viana

Em junho de 2018, Marco publicou o artigo Ser homem, ser negro, ser gay, ser só, no site da agência de jornalismo Alma Preta. Na ocasião, afirmou: “Sempre acreditei que não merecia amor. Corpo negro em um mundo branco”. A virada nesse pensamento veio com a terapia, que faz há dois anos. “Sem terapia, não teria entendido isso, porque a gente vai para a escola e a escola é um dos piores lugares para as pessoas pretas, não é? Ali, a gente forma identidade, a gente forma a visão de mundo, a gente tem noção de comunidade. E ali é fundado muitos dos nossos traumas, não é? Depois, vai se perpetuar para a nossa vida e a gente acha muito natural tudo que acontece na escola: as piadas, as rejeições por parte do corpo docente e por parte do corpo discente. A gente acaba acreditando que tudo isso é muito normal, muito natural. Então, a gente chega aos 20, aos 30, se acostumando a ser só, se acostumando a não receber afeto, a não receber todas essas coisas que fazem parte desse campo da subjetividade, não é? Depois, a gente começa a pesquisar sobre as questões negras e existe um novo nascimento. Existe o dia que a gente nasceu e existe o dia que a gente teve uma consciência do que é esse universo, do que é esse planeta. Então, eu comecei a entender, através dos livros, a partir dos 22 e 23 anos de idade, o que representava a negritude, o que representava ser um homem negro na sociedade. A partir disso eu começo a entender o que é ser negro, mas essa questão da subjetividade, essa questão do afeto, ela vem mais com a terapia mesmo”, desabafa.

É com essa mesma consciência que, no artigo já citado, ele questiona a comunidade LGBTQIA+“Como projetar o amor em uma comunidade que vive o cárcere da heteronormatividade?”. Na entrevista para este perfil, é convidado a responder a própria pergunta: “É uma comunidade muito preconceituosa, muito fechada nas caixinhas. E, por mais que seja uma comunidade LGBTQIA+, ainda é uma comunidade regida pelos padrões heteronormativos, pela heteronormatividade. A heteronormatividade é um malefício para todas as pessoas, inclusive para os héteros. Se você é um hétero mais fora da caixinha, mais desconstruído, você vai passar por uma opressão, você também vai passar por um olhar de desconfiança. Pode ser um lugar de desconforto também. Então, quando a gente vê um homem gay e que, entre muitas aspas, não parece ser gay, vê isso como um benefício. Como se não parecer fosse um benefício, quando, na realidade, é trágico, porque mostra que as nossas identidades, as nossas formas de ser e de estar no mundo, não são validadas, não são legitimadas. Se você não corresponder ao padrão heteronormativo, se você não performar o homem viril, não performar a masculinidade, você vai acabar sobrando, você vai acabar não tendo amor. E quando você é homem, negro, gay, afeminado, você vai ficando mais fora dessa bolha, você vai ficando mais fora dessa comunidade. Então, de fato, é um cárcere e eu não tenho uma resposta para essa pergunta; mas, para viver uma experiência de amor, você precisa do outro. Então, precisaria de uma desconstrução coletiva e sobre isso não tenho segurança de que está existindo. Então, posso falar de mim: um homem negro, de 33 anos, que não viveu a experiência de amor ainda. Eu nunca namorei. Então, esse cárcere ainda predomina na minha vida”.

Pretinho mais que básico

Marco Antonio Fera: “Ser ativista é um lugar que machuca e adoece”. Foto: Kayan Viana

Marco sempre quis trabalhar na TV e ser apresentador. Além disso, gosta de falar, de conversar com as pessoas e é muito curioso. Por isso, em 2016, criou o canal Pretinho mais que básico, no YouTube, cujo lema é: “A nossa cara preta em todo espaço e em todo lugar”. Para ele, o canal cumpre algo que o Estado deveria cumprir: “Um espaço para as pessoas pretas existirem na sua natureza”. Contudo, revela que, muitas vezes, se sente cansado por ter que militar sempre. Reclama que não tem tempo de falar bobagens no canal. “Eu já passei por várias crises, porque, às vezes, eu quero falar de comprar pão, sei lá. Quero falar de uma bobagem, de gente bonita, de que tenho crushes e não dá, porque na mesma semana que eu quero falar sobre isso, eu tenho que falar do cara que teve um discurso racista. E esses discursos matam, esses discursos nos encarceram, esses discursos nos limitam. Esses discursos fazem com que eu, um ator, formado no Brasil, formado fora do Brasil, com curso em televisão, curso em cinema, com experiência, não tenha um trabalho. Não realizei meu sonho ainda de fazer uma novela, não realizei meu sonho ainda de fazer uma série, não realizei meu sonho de fazer um filme, simplesmente porque eu sou negro, porque eu tenho a minha pele preta e as pessoas acham que o meu biótipo não vende, o meu biótipo não forma opinião, o meu biótipo não é popular, mesmo as pessoas que se parecem comigo sendo 56% da população. Então, eu acho que o meu canal vem nessa toada, de naturalizar as experiências, de naturalizar as existências”.

Pretinho mais que básico: “A nossa cara preta em todo espaço e em todo lugar”. Clique na imagem para assistir aos vídeos. Captura de tela feita em 11 de setembro de 2020.

O que o youtuber naturaliza também são as suas formas de ser e mostra por que é mais que básico. “Tudo o que eu faço, eu faço cem por cento, eu me debruço para fazer o melhor possível. Eu acho que tudo que eu faço, eu faço com muito carinho, faço com muita atenção, faço com muito cuidado e com muito profissionalismo. O que eu mais gosto de fazer, e o que eu gostaria de fazer durante toda minha vida, era ser só ator, e youtuber com outras condições. Eu gosto muito de dar aula, mas foi o caminho que eu encontrei para sobreviver. Não foi uma coisa assim: ‘Meu sonho de princesa era ser professor’. Sou professor há 12 anos. O produtor cultural veio porque ninguém me chamava para trabalhar. Ninguém me chamava para fazer teatro. Eu não conseguia fazer filmes, eu não conseguia fazer nada, porque as pessoas não me chamavam e eu cansei de esperar as pessoas. O produtor de conteúdo e o apresentador vieram com essa questão de querer estar na mídia. Eu precisava criar uma mídia. O ativista é porque eu sou uma pessoa preta e preciso estar sempre nesse modo, mas é um modo muito difícil para mim também, porque adoece, machuca, violenta, cansa. Não é uma coisa fácil. É claro que eu queria estar num lugar muito mais confortável e onde eu pudesse produzir as minhas coisas de um outro lugar, um lugar que causasse menos dor, porque ser ativista é um lugar que machuca também e adoece. Se a gente não tiver um suporte, se a gente não tiver ferramentas, é difícil”.

Marco é um crítico do sistema educacional do Brasil. Tanto da educação básica quanto da superior. Para ele, os professores das escolas são caretas e a universidade é castradora. “Os professores são caretas porque muitos deles são professores muito antigos, velhos, que estão lá, têm um pensamento retrógrado e não querem mudar. A educação é o lugar mais deseducado do planeta. É louco imaginar isso. A educação é o lugar onde menos se tem educação, onde menos se tem pensamento, onde menos se tem desconstrução. É uma fôrma mesmo. E é muito triste porque os adolescentes, as crianças entram ali totalmente buchinhas, prontos para ser uma esponja, que absorve, e, infelizmente, a educação, o sistema, tem o pior para oferecer e aí forma adultos preconceituosos, homofóbicos, racistas, machistas, intolerantes. Isso é uma responsabilidade da própria sociedade e, principalmente, do processo educacional. A educação, a escola, é o lugar mais violento, mais perverso e mais nocivo para um ser humano e não sei se os pais se dão conta disso. Transborda caretice. Se fosse só careta, talvez seria um pouco melhor, mas não, é careta e muito violenta”, opina. E a universidade? “A universidade continua castradora. Uma universidade que tem como base o eurocentrismo e desconsidera as contribuições negras para o processo educacional, para a formação de uma nação, é castradora, porque a população não é 100% branca, 100% europeia. Um país que teve como matriz o indígena, a língua tupi, e para você entrar no mestrado, exige o inglês. Isso é castrador porque retira o direito de um conhecimento que é nosso. Então, só por isso é castradora, porque retira o nosso direito de criar as nossas humanidades. O sistema é perverso e a universidade é castradora por causa disso”.

Fera nas artes

Marco Antonio Fera: determinação e força para fazer acontecer. Foto: Kayan Viana

Marco é bastante determinado e tem uma força de fazer as coisas acontecerem que nem ele mesmo sabe de onde vem. “Eu não sei de onde vem essa força. Eu não sei de onde vem essa determinação. Eu só sei que eu sou uma pessoa assim. Eu quero aquilo, vou e acontece. É muito louco. É da minha natureza. Gosto de falar que é coisa de leonino, mas não sei também. Estou jogando na roda”. Foi assim quando decidiu morar fora do Brasil [“O cara do Departamento de Relacionamentos Internacionais da universidade foi divulgar a oportunidade na minha sala. Olhei para aquilo e falei: ‘Gente, eu vou morar fora do Brasil’. Eu não sabia nem para onde eu iria. Eu não sabia falar nenhum idioma, não tinha dinheiro. Em seis meses, eu ajeitei tudo e fui estudar fora do Brasil”], quando encasquetou que ia ao programa de Silvio Santos, para ganhar 50 mil reais [“Em 2010, eu estava assistindo ao programa e aí um cara ganhou 500 mil reais. Eu falei: ‘Vou nesse programa e eu vou ganhar esse dinheiro’. Isso foi num domingo. Eu me inscrevi no programa, mandei minha foto, minhas coisas todas. Na terça-feira, eu estava no SBT fazendo teste para o programa. No domingo seguinte, eu já estava gravando com Silvio Santos e ganhei 50 mil reais”] e quando começou no teatro [“Eu queria muito fazer TV. Na época, estava com 12 anos e tinha aquela novela Chiquititas. A produção fazia uma excursão pelo interior da cidade para descobrir novos e novas Chiquititas, o que era uma grande mentira. Era só pra fazer aquele boom. Fui fazer um teste na minha cidade e não passei. O cara falou assim: ‘Olha, quem não passou, faz teatro, porque na próxima vez, estará pronto para fazer o teste e passar. E aí eu saí dali já pensando que tinha que fazer teatro e fui me inscrever na Oficina Cultural Grande Otelo, que era uma oficina aqui da cidade. Lá, eu me formei. Depois dessa primeira oficina, eu nunca mais parei”].

Não parou e ampliou a atuação nas artes cênicas. Em 2011, com a companheira de trabalho Clarice Santos, fundou o Grupo Trança de Teatro, que tem três espetáculos no repertório: No Voo do Instante (2013), Corpo-Notícia: Relatos sobre o Amor e a Violência (2016) e Ilu Okan: O que Minha Vó Contou (2018). No cinema, só fez curtas, e ajudou num roteiro. “Fiz também um curta meu, Estrela Solitária (2018), que produzi, idealizei e atuei”. Os planos para a carreira artística tiveram que ser modificados, devido à pandemia. “Tinha muitos projetos para fazer, mas eu tenho vontade de fazer um solo no teatro e continuar com meu aprendizado de sanfona, utilizar a sanfona nos meus trabalhos. Mas eu sou uma pessoa sem limites. Para o que me chamarem, eu estou dentro e a fim de de fazer. Acho também que temos que entender esse momento, viver esse processo, produzir durante esse processo. A gente não sabe o que vai ser o normal. Então, é experimentar esse lugar, essa experiência da pandemia”. Para a carreira acadêmica, pretende ingressar no mestrado. “Por uma questão da pesquisa mesmo e por uma questão de ocupar aquele espaço”.

Questionado se acredita que, após a pandemia, os artistas vão usar as redes sociais digitais para difundir mais conteúdo artístico e menos futilidade, Marco é categórico: “Nunca. As pessoas não vão mudar. Infelizmente. Tem uma pandemia aí, mas as pessoas não vão mudar. E o artista é uma pessoa. Ele é um ser humano, ele não está alheio à sociedade. Ele não está isento. O artista possui todas as questões que a humanidade possui. As pessoas costumam endeusar o artista, colocar num pedestal, ver como um santo de porcelana. Na verdade, não. Tem muitos artistas que eu fico com a obra, o indivíduo eu anulo para não deixar de amar a obra e de consumir aquilo que me faz bem. Infelizmente, acho que as pessoas não vão mudar. A futilidade sempre estará por aí”, conclui. Marco se mostra e não teme ser quem é.

 Que gente é você?

Por que você brilha? 

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Série Gente é Pra Brilhar! | Ficha Técnica:
Convidado: Marco Antonio Fera
Data da entrevista (feita por e-mail): 13/8/2020
Idealização/produção/texto: Raulino Júnior
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